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Repulsa ao Sexo (1965): Polanski explora a psicose e o trauma para questionar o papel dado à mulher na sociedade patriarcal





Carol Ledoux é uma mulher tímida e sexualmente reprimida, que trabalha como manicure em um salão de beleza londrino. Constantemente, é assediada por um homem extremamente apaixonado, que deseja lhe tirar a virgindade a qualquer custo. Quando sua irmã, com a qual mantém uma relação de forte dependência, vai viajar com o namorado, acaba por ficar sozinha no apartamento que dividem, solitária e gradativamente alucinada. Perturbada, ela revela um lado obscuro de seu comportamento, movida pelo sofrimento e por sua repulsão à sexualidade.



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Repulsa ao Sexo é uma história que questiona as noções gerais de sexualidade, loucura, violência e o feminismo, contada pela perspectiva de uma mulher que sofre de transtorno de aversão sexual e que se isola em seu apartamento, tendo alucinações e cometendo crimes. Usa recursos narrativos e audiovisuais como o contraste entre o som e o silêncio, a fotografia em preto e branco, os planos fechados e os símbolos visuais para criar uma atmosfera de tensão, angústia e claustrofobia, que reflete o estado psicológico da protagonista. 


Seu tom surrealista se mistura ao do cinema de terror, para subverter as expectativas do espectador e provocar reações de choque, repulsa e compaixão pela personagem, que no final das contas, foi realmente assediada antes de qualquer coisa, então sua virada psicológica é bem explicada por esse fator. 


Sua estrutura é circular, que começa e termina com uma foto de Carol na infância, sugerindo que sua aversão sexual tem origem em algum trauma de infância, um provável abuso. Isso faz com que ela tenha uma dupla relação com sua irmã: se por um lado ela é dependente dela, do outro ela considera detestável a postura de sua irmã de sair e se relacionar com homens para ter oportunidades e participar de ciclos sociais. Quando ela se fixa com um namorado, ela passa a ser domesticada e "esposinha" dele, mesmo que ele seja casado, em uma relação que em si já é doentia por isso. 


O filme também se divide em duas partes: antes e depois da viagem da irmã de Carol. Na primeira parte, acompanhamos Carol tentando levar uma vida normal, mas já demonstrando sinais de desconforto e distanciamento com as pessoas e o ambiente. Na segunda parte, testemunhamos Carol mergulhar na loucura, isolando-se do mundo e criando um universo paralelo em sua mente. 



O filme usa o apartamento como um símbolo da mente de Carol, que se deteriora conforme ela perde o contato com a realidade. O apartamento também representa o confinamento e a opressão que Carol sente em relação à sua sexualidade e à sua identidade. Quando Carol começa a deixar tudo sujo, e até mesmo a carne fica exposta e apodrecida é que vemos esse lado mais insano e surrealista da mente da garota, que parece sofrer também de algum transtorno de personalidade.


Entretanto, Carol não está totalmente errada, uma vez que os homens ao seu redor são abusivos e machistas a todo tempo. Se dá primeira vez achamos o comportamento de Carol exagerado, outra vez quando o homem que cobra o aluguel do apartamento tenta abusar dela, entendemos em parte sua visão, algo que é uma óbvia provocação do filme. O filme explora os contrastes entre o interior e o exterior, o sonho e a vigília, o feminino e o masculino, o desejo e o repúdio. Esses contrastes criam uma tensão dramática e psicológica, que se manifesta nas alucinações e nas ações de Carol. 


Os personagens secundários são figuras que representam diferentes aspectos da sexualidade e da sociedade. Hélène é a irmã liberal e independente, que tem um relacionamento amoroso com um homem casado. Michael é o amante infiel e invasivo, que usa o apartamento de Hélène como um motel. Colin é o pretendente insistente e inconveniente, que não respeita os limites de Carol. Madame Denise é a patroa fútil e fofoqueira, que dá conselhos sobre os homens. Bridget é a colega de trabalho simpática e extrovertida, que tenta se aproximar de Carol. 


Todos esses personagens tentam influenciar ou interferir na vida de Carol, mas nenhum deles consegue compreender ou ajudar a protagonista pois de fato não escutam o que foi falado. O filme questiona os papéis de gênero e as relações de poder entre homens e mulheres na sociedade patriarcal, mostrando como a protagonista é assediada, desrespeitada e objetificada pelos homens que a cercam como um processo natural, e como isso sempre é ensinado, ela reage com medo ao novo, nojo e violência a essas situações. Há uma critica a hipocrisia e o moralismo que cercam a sexualidade feminina, mostrando como a protagonista é moralizada por sua educação religiosa e por sua irmã mais velha, que tem um amante casado. 


Por esses fatores, Repulsa ao Sexo é fortemente relacionado ao movimento feminista, uma vez que o filme pode ser visto como uma crítica à sociedade patriarcal, que oprime e explora as mulheres, impondo padrões e expectativas que não condizem com seus desejos e sentimentos.


Carol pode ter uma reação exagerada, mas justamente pois o exagero faz parte da proposta de gênero do filme, comparando os absurdos sofridos por Carol e outras mulheres a uma violência simular aquela que ela vai manifestar.


O filme propõe uma reflexão sobre os limites entre a sanidade e a loucura, entre a realidade e o delírio, entre o desejo e o ódio, entre a vítima e o algoz. Não há uma explicação definitiva para a origem ou a cura do transtorno da protagonista, mas sugere que ele é fruto de um trauma infantil ou de uma reação extrema à opressão social. Ou seja, a genialidade da direção de Polanski nesse filme, é que ele não julga nem condena a protagonista por seus atos, mas sim expõe sua fragilidade e sua solidão originais.



Mawr Gorshin fez uma interpretação psicanalítica e feminista do filme, tentando compreender os conflitos inconscientes, traumas e fantasias da protagonista, relacionando-os com sua história pessoal, sua família, sua religião e sua cultura. Também explorou os símbolos presentes no filme, como o coelho morto, o espelho quebrado, a rachadura na parede, a navalha e as mãos que saem das paredes, que representam aspectos da sexualidade, identidade e violência de Carol.


Lee Pfeiffer fez uma interpretação estética e referencial do filme, elogiando a atuação de Catherine Deneuve, que transmite com sutileza e intensidade a complexidade da personagem de Carol. Ele também comparou o filme com outras obras do cinema surrealista e do cinema de terror, que tratam de temas semelhantes, como alienação social, loucura, medo e horror.


Fabricio Duque fez uma interpretação sociológica e psicológica do filme, contextualizando o filme na época em que foi produzido, década de 1960, marcada por transformações culturais, políticas e sexuais. Ele também analisou o filme como uma crítica à sociedade patriarcal, que oprime e explora as mulheres, impondo padrões e expectativas que não correspondem aos seus desejos e sentimentos. Essa interpretação ela é bem interessante pois abre para a interpretação histórica do filme: ele influenciou e foi influenciado pelos movimentos feministas, muito fortes nos anos 60.


Polanski, o diretor do filme, é conhecido por seu uso habilidoso de movimentos de câmera, edição, design de som e efeitos visuais para criar uma sensação de tensão, suspense e horror. Ele também tem o dom de provocar performances sutis e expressivas de seus atores, especialmente Catherine Deneuve (que fez também Um Filme Falado), que interpreta a personagem principal Carol.


O filme é influenciado pelas próprias experiências de trauma e violência de Polanski, como sobreviver ao Holocausto. Ele usa o filme como uma forma de explorar os temas de isolamento, loucura e paranoia, bem como os efeitos do abuso sexual e da repressão na saúde mental das mulheres.


Polanski se inspira em outras obras do cinema surrealista e do cinema de terror, como Un Chien Andalou de Luis Buñuel e Salvador Dalí, e Psicose de Alfred Hitchcock. Polanski empresta alguns elementos desses filmes, como a lâmina de barbear, o motivo do olho, a cena do chuveiro e o final da reviravolta, mas ele também os subverte e dá a eles seu próprio toque original.



História por trás do filme


A história de "Repulsion" (título original), foi concebida por Roman Polanski e Gérard Brach, que escreveram um esboço do roteiro em Paris. Polanski, que recentemente se mudou de sua Polônia natal para o Reino Unido, decidiu ambientar o filme em Londres. De acordo com Polanski, a inspiração para o roteiro foi derivada de uma mulher de quem ele e Brach eram conhecidos mútuos, e que Polanski soube mais tarde sofria de esquizofrenia.


Polanski e Brach lançaram o filme para vários estúdios ingleses, incluindo British Lion Films e Paramount Pictures, mas cada um desistiu do projeto. Eles finalmente propuseram o projeto para a Compton Films, um pequeno estúdio inglês conhecido por fazer filmes de exploração e pornografia softcore. Os dois principais executivos da Compton Films, Michael Klinger e Tony Tenser, ficaram impressionados com o roteiro e concordaram em ajudar a produzir e distribuir o filme.


De acordo com Polanski, o filme foi rodado com um orçamento modesto de £ 65.000. As sequências externas do filme foram filmadas no distrito de South Kensington, em Londres, enquanto os interiores da mansão de Carol e Helen foram construídos em um pequeno lote no Twickenham Studios. A fim de capturar uma aparência autêntica, o diretor de arte do filme, Seamus Flannery, e o diretor de fotografia, Gilbert Taylor, fotografaram o interior de vários apartamentos locais reais compartilhados por mulheres jovens em uma área decadente de South Kensington.  Comentando sobre a aparência do apartamento, o biógrafo de Polanski, Christopher Sandford observa: "Ao contrário da representação pesada usual de um bloco londrino, os detalhes e observações do local são exatamente corretos; você pode acreditar que duas garotas estrangeiras acabariam ali."


As filmagens foram desafiadoras para Polanski, pois ele não estava familiarizado com os locais de filmagem em Londres, e tanto ele quanto a estrela Deneuve não eram fluentes em inglês. Além disso, Polanski era meticuloso com os tiros: Michael Klinger lembra-se de testemunhar Polanski atirar em um simples quadro da mão de Deneuve vinte e sete vezes. A produção acabou ultrapassando o orçamento, em parte devido às tendências perfeccionistas de Polanski, totalizando aproximadamente £ 95.000 em oposição aos £ 65.000 orçados. 


As tensões aumentaram entre Polanski e alguns membros do elenco durante as filmagens, incluindo Yvonne Furneaux, a quem Polanski tratou duramente. Além disso, Ian Hendry, que interpretou Michael, freqüentemente voltava ao set após o almoço embriagado, tornando-o difícil de dirigir.


O filme foi marcado por Chico Hamilton. A "trilha sonora" oficial foi lançada em CD em 2008 pela gravadora britânica Harkit, especializada em trilhas sonoras britânicas dos anos 60. Algumas músicas da trilha sonora, nem sequer são ouvidas no filme, como "Seduction in the Dark" e "Repulsion Nocturne". 


A faixa principal do filme se chama "Carol's Walk". A música também faz parte do álbum Chic Chic Chico de Hamilton



Mesmo em uma época onde o cinema colorido já era popular, o filme foi rodado em preto e branco, o que aumenta o contraste entre luz e sombra e cria uma atmosfera sombria e opressiva. Polanski usa várias técnicas para transmitir o ponto de vista subjetivo de Carol, como close-ups, fotos de baixo ângulo, fotos de mão, zooms, dissoluções e sobreposições. Ele também usa espelhos, janelas, portas e rachaduras para criar uma sensação de distorção e fragmentação.


Seu uso inovador do som, que desempenha um papel crucial na criação de clima e tensão. Polanski usa silêncio, ruídos ambientais, música, diálogos e efeitos sonoros para manipular as emoções e expectativas do público. Ele também usa o som para sugerir alucinações e delírios de Carol, como sinos tocando, vozes sussurrando, mãos tateando e homens atacando. Um filme chocante, impactante e pedagógico, que pode nos ensinar um pouco mais sobre questões que afetam o gênero feminino e, consequentemente, também afetam o universo masculino. Um filme necessário que com certeza vai te provocar e surpreender. 


Comentários

  1. Registre-se que a morte da Sharon Tate é posterior ao filme, não cabendo, portanto, o comentário de ter influenciado no roteiro deste,
    como uma das experiências traumáticas vividas por R.Polanski.

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