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Rainha Charlotte: Uma História Bridgerton (2023): Série spin off surpreende e consegue acertar em suas raízes históricas

 

"Rainha Charlotte: Uma História Bridgerton" é uma série da Netflix que saiu em maio de 2023. Continuando a história transversal dos "Bridgerton", dessa vez, vemos a história do casamento do George III (vivido por Corey Mylchreest  e James Fleet ) e da Rainha Charlotte (Golda Rosheuvel e India Amarteifio). É um drama histórico spin off prequela da série Bridgerton. 



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Todo mundo sabe que Bridgerton sofreu uma torrente de críticas por focar em romance mais do que substância, afinal, era um entretenimento da época da pandemia em estilo de temática histórica, e feito pela produtora famosa americana e criadora de várias séries de sucesso Shonda Rhimers, em cima de livros de romance de Julia Quinn. A criação dessa série foi ousada e gerou repercussão por acharem um tipo de série mais para o consumo do público feminino. Rainha Charlotte ainda bebe em muito da fonte de romance de Bridgerton, mas sabe acertar em ser menos piegas em alguns detalhes. Essa nova série dá mais assistir homens, mulheres, é mais integradora na audiência em geral e levanta alguns pontos de tese super interessantes. 


A série spin off foi muito gostada, estreando em 91 países, e ficando no topo da Netflix, como top 10 dos dez filmes ingleses mais assistidos. A premissa consiste em duas linhas do tempo, uma começando com a cobrança da rainha pelos herdeiros de seus filhos, e a outra conta o começo do casamento em 1761, dela com o rei George.  Explora na série o tema das doenças mentais de bipolaridades e como elas eram tratadas. O que o rei tinha era uma doença similar a porfiria (transtornos digestivos, junto com bipolaridade, que era agravada pelos tratamentos da época que só serviam para piorar a doença. 


Com críticas e polêmicas a parte, Bridgerton foi muito criticada por usar demais da estética e entregar pouco os plots de origem e defesa das teorias que a série utilizou, que até que são baseadas em casos da vida real. Por exemplo, em 1996, na PBS (emissora pública), houve uma matéria que teria afirmado segundo alguns historiadores revisionistas que a Rainha Charlotte tinha ascendência de uma mulher que teria sido amante de um rei português, Afonso III. Ou seja, a polêmica sobre a série veio muito antes da série. 


Começando a série com um aviso para os chatos de plantão com algo do tipo 'a série não busca retratar a história exatamente como foi", que todos nós já sabíamos, já que Bridgerton foi uma série muito mal falada por retratar atores negros no meio desse tipo de produto cultural de história (que é sempre um show de branquelos de todos os tipos), e por isso a série foi muito bem sucedida, mesmo sendo fraca com temas mais relevantes e históricos, era a fantasia histórica pró ficar em casa na pandemia perfeita. 


Já essa série traz poucos elos com Bridgerton, mas nos apresenta uma grande nova história de amor, dos camareiros do rei, como houve cenas cortadas que explicariam o sumiço do personagem, que explicariam porque o camareiro fiel da rainha ficou sozinho na velhice. Um momento tocante que deixou todos esperando uma resposta. O encaixe para falar dos Bridgerton é ótimo, apesar de uma família de baixo contato com a nobreza, a matriarca, mãe da mãe de Daphne era uma mulher meio insana e racista, explicando o motivo dela ser corna para Lady Danbury, diferente da filha, mãe de Daphne. Outro segredo revelado. 


Essa parte até que foi muito bem pensada na forma de escrever a trama, onde o rei George entrava em crise toda vez que era cobrado dele (através do parlamento ou de sua mãe), uma postura de liderança e autoridade. A ideia da série é que ele era um "nerd",e que por isso gostou de Charlotte, já que ela conseguia lidar com a carga dos compromissos normalizadores públicos que ele tanto detestava. É verdade que o rei gostava de ser chamado de "o agricultor", e também que eram amantes das artes, a série mostra isso com o pequeno Mozart tocando para a rainha. 


A série conta também a história secreta do romance de Lady Danbury com o pai da mãe da protagonista da primeira temporada de Bridgerton, e também conta como era a mãe de Daphne antes. Dessa vez eles acertaram ao abordar o tema do racismo e do colorismo na história, com a questão dos pintores que "embranqueciam" a rainha no retrato, ou a tática suja da mãe de George, que achava que o casamento era mais uma obrigação com ducados alemães e portugueses que poderiam ser chave para a aliança com a Inglaterra da época. Eu gostei da provocação. no sentido de apontar, que por conta do racismo, e das tentativas de apaziguar o racismo com acordos entre as próprias elites. 


A teoria que é plausível da série, pega o exemplo de Lady Danbury, e mostra que ela era esposa do filho do rei de Serra Leoa, explicando que era por isso que a integração racial era para o parlamento inglês um "grande experimento". Outra referência histórica aqui importante demais é que Serra Leoa é uma região da África que se fala inglês e o Krio (krio seriam a elite local em contato com os ingleses), aos poucos, a Inglaterra fez reformas para colocar seus homens nos postos de poder na região. Ou seja, a série explorou uma possível rivalidade entre Lady Danbury e e a Rainha como reflexo da própria história real, onde o colonialismo entrou em crise, tanto com a Revolução Americana (1776), quanto na Revolução do Haiti (1791).


A tática da mãe era deixar o casamento dar errado naturalmente, apontando que "o rei não se interessaria por ele" e que sem um herdeiro para a continuidade da linhagem o lugar da rainha consorte na Inglaterra sem foi historicamente ponderado. Vale lembrar que nessa época, já havia ocorrido o governo de Elizabeth I e claro, antes, Henrique VIII tinha virado líder da Igreja Anglicana. 


Por isso a esposa alemã, aqui temos uma piada histórica de enlouquecer qualquer racista. Colocando Charllote como uma rainha alemã, estamos dizendo que os ducados alemães não obedeciam regras do catolicismo espanhol. Na vida real, Charllote havia tido ancestrais mulçumanos através de casamentos da família real portuguesa, e por isso era diferente um pouco do modelo de mulher inglesa. O interessante da impressão que tive da série, é que foi mais historicamente próximo da realidade. Também tinha o elemento de construção de personagem e identidade nos protagonistas. 


Nós somos levados a admirar a rainha e a descobrir com ela o poder que ela poderia ter. Além de ser um tema realmente inglês, o governo bem sucedido na Inglaterra é o governo gerenciado por mulheres, os grandes ciclos, digamos assim. Se a rainha Elizabeth foi coroada com desconfiança de todos, no século XVII, não é difícil pensar que era mais fácil o poder feminino cantar ali, especialmente no caso do rei não estar totalmente hábil em suas faculdades mentais. 


Penso que a história também pode ser real se comparamos ao caso Bridgeton brasileiro, também do século XVII, no Arraial do Tijuco, uma ex escrava, Chica da Silva se tornara senhora e oficial esposa do comendador local (um cargo de extremo prestígio na hierarquia portuguesa), e os filhos de Chica com ele foram para Portugal com o pai e cursaram universidade. 


Ou seja, é a mais "bridgerton" de todas as histórias, e o melhor é que é vida real mesmo. Por isso que gostei da série, se na Inglaterra a ideia de Bridgerton pode parecer estranha e não verossímil, mas no Brasil, Bridgerton é uma realidade, quem nunca ouviu falar dos casos de Carlota Joaquina?  Ou mesmo de Chica da Silva e todo seu poder em uma época em que ainda vigorava as leis de escravidão na maior parte do mundo. Eram mundos de distinção total, mas onde esses cruzamentos obviamente existiram e foram apagados da história ou não são muito comentados. 


Penso que a série mostrou um ângulo curioso, mesmo se fosse verdade que a rainha era negra, isso poderia completamente ser apagado da história oficial apenas pelo exercício do "racismo estrutural", mas as ideias de separação de valor das raças veio mais com o século XIX  e as ideias de craniometria que se vendiam como científicas e não exatamente no século XVII. O que provaria essa ligação seria Margarita de Castro e Sousa, uma nobre de um clã negro da família real portuguesa. Sendo descrita por um cronista português Duarte Nunes de Leão como uma "moura".


O senso de conservadorismo é que nós torcemos para o romance do rei George III, o homem que os Estados Unidos fez uma revolução em cima. Seria esse o aspecto conservador de Bridgerton, mas pensando também que os Estados Unidos era a "terra da liberdade" apenas para os brancos (mesmo se eles forem os 'pais fundadores", é o que explica a ironia de podermos gostar da série e do casal. Além da mais apimentada fofoca de todos, que a família real atual é herdeira de algum tipo de miscigenação, o que não é completamente mentira. 


Depois da Reconquista, houve diversos acordos nas trocas entre o ocidente e o oriente, um dos exemplos disso foi o Reino de Granada, que tentou manter os dois mundos, as tradições antigas com a submissão ao reis católicos da época, mas acabou caindo e sendo invadida completamente aos poucos. A Inglaterra se afastava cada vez mais da Espanha e da França, gerando uma cultura europeia um pouco divorciada da própria Europa. A descendência do rei da Inglaterra atual é dela, o que faz do questionamento da série mais interessante ainda, devido de todo o racismo tradicional dos monarcas, reforça aquela ideia de que a maioria da população mundial é miscigenada, até mesmo a monarquia que tenta sempre ser branca.


Apesar de ser mais uma fantasia histórica, a série atualiza os debates em torno das famílias reais e sobre o racismo que existe no meio. O fator entretenimento também não é esquecido, e somos agraciados com um spin off muito melhor que a série original. Em termos acadêmicos, vemos a utilização de teorias revisionistas de história, que posicionam qual seria a real origem étnico da família real da mesma família que está no trono inglês. 


A série é mais sólida que Bridgerton e um pouco mais romântica e tradicional, admitindo que para ser tornar rainha ela teve que assumir mais a identidade da nova família inglesa do que da sua antiga, facilitando esse esquema de mudança de percepção. já que as pinturas da época dos retratados podia diferir muito da realidade. 


Já que Charlotte é como se fosse a fundadora dessa família. Acho que, nessa vertente, a série ficou muito boa e entreteve com certa seriedade que eu não esperava. Apesar de alguns momentos anacrônicos já esperados, a substância do conteúdo se tornou mais didática, envolveu alguns reais debates em voga sobre esse período da história, ou pelo menos, a provocação pode nos fazer estudar mais, para quem se interesse por esse papo de genealogia dos reis é muito interessante.


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