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Titane (2021): Bodyhorror ganhador de Cannes é inspirado em Simone de Beauvoir, Lévi-Strauss e Sartre, debatendo individualização, feminismo e identidade


Dirigido e escrito por Julia Ducournau, que se tornou a primeira mulher a ganhar a Palma de Ouro sozinha. Uma produção feita entre a França e a Bélgica, estrelando Agathe Rousselle no papel de Alexia, uma mulher que depois de sofrer um acidente na infância, coloca uma placa titânio no corpo e na cabeça. Elenco conta com Vincent Lindon, Garance Marillier e Laïs Salameh, que também participam do filme. 




No início vemos Alexia chutar a parte de trás do assento no carro de seu pai, em consequência, o pai bate o carro e eles sofrem um acidente. Alexia sobre de uma fratura no crânio e tem que colocar parte de uma placa de metal para consertar o ferimento, ela abraça o carro e não os pais quando se recupera. Anos depois, Alexia como adulta, agora tem uma grande cicatriz em sua cabeça, e trabalha como showgirl em um stand de venda de motos. 



Em uma das noites, um fã a segue até o estacionamento, declara seu amor, e a obriga a o beijar. Depois disso, ela mata ele usando seu prendedor de cabelo. 


Enquanto ela volta ao banho, Alexia escuta um barulho vindo do outro cômodo. Ela vai até o carro, e se masturba ali mesmo e chega a gozar. 


É revelado que Alexia é uma serial killer, que matou diversos homens e mulheres nos últimos meses. 


Ela ainda vive com seus pais, que parecem não saber de sua conexão com os crimes. Eles tem um relacionamento difícil e distante. 




Alexia vai para uma festa, e começa a transar com sua colega de trabalho Justine. Aí ela faz um teste de gravidez e o resultado acaba sendo positivo. Ela tenta abordar ferindo seu útero, mas falha. 


Alexia sai do banheiro e assassina Justine, e aí mata os outros que estavam na casa, mas uma mulher consegue escapar. Alexia retorna para sua casa, queima um cobertor e coloca fogo na casa, e tranca seus pais no quarto e vai embora.



Agora procurada por assassinato, Alexia foge e altera drasticamente sua aparência (quebrando até mesmo seu nariz no processo de parecer masculina) e assume a identidade de Adrien Legrand, um garotinho que havia desaparecido quando tinha 10 anos. 





Escondendo sua barriga que começava a crescer, e seus seios. Quando ela é encontrada pela polícia, ela alega ser Adrien. Surge então o pai de Adrien, Vicent, um capitão dos bombeiros, que aceita que Alexia é seu filho desaparecido e recusa até mesmo fazer um teste de DNA para confirmar. 



Vincent leva Alexia para a estação que ele vive e trabalha, e apresenta para seus homens. Os bombeiros acham estranho a persona andrógena, muda e traumatizada de Adrien agora. Mas eles não questionam o comportamento do capitão. 


Alexia se torna aprendiz da estação, enquanto Vincent dá mais responsabilidade para seu filho do que aos outros bombeiros. Um dos bombeiros questiona Vincent sobre a identidade de Adrien. Entretanto, Vincent imediatamente pede para ele nunca mais falar de seu filho.



Vincent tenta preservar sua força injetando esteroides em seu corpo, mas ele descobre que está imune a eles. Entretanto, depois de Vincent experimentar uma arritmia cardíaca de altas doses de esteroides, Alexia decide ficar com ele. 

A ex esposa de Vincent, vem ver o filho que estava desaparecido, e descobre uma altamente grávida Alexia sem seu disfarce tradicional. Ela guarda o segredo para não interferir e magoar o ex marido, e pede para Alexia cuidar de Vincent. Em um dos momentos, Vincent assume sua ilusão certa hora, ao falar para Alexia "Quem quer que você esteja, você é meu filho". Quando ele vê no banheiro os seios não tapados dela, ele apenas tapa e vai embora sem falar nada, e continua morando com ela.


Em uma festa da estação de bombeiros, ele fala para Adrien dançar com a música. Alexia dança como costumava dançar antes, e confunde a todos com sua aparência sexy e feminina. Vincente, muito desapontado, vai embora na multidão. Depois da festa, Alexia transa com um bombeiro. 


O corpo de Alexia gradualmente fica impraticável para esconder, e parte de seu estômago revelam as placas de metal na barriga. Quando ela vai ter o filho, ela conta seu nome verdadeiro para Vincente, tentando entre seduzir ele, e depois implorar por sua ajuda. 



Produção, bastidores, e história por trás do filme


Julia Ducournau já tinha feito seu debute com um filme de 2016 "Raw" ("Cru"), que contava a história novamente de uma jovem chamada Justine, que estuda para ser veterinária, mas começa a querer experimentar carne humana. 


Julia faz parte de uma tendência dentro do cinema francês moderno chamada de "New French Extremity", um termo cunhado pelo crítico James Quandt para a onda de filmes "transgressores" dentro do cinema francês moderno. São filmes modernos, com questionamentos de valores morais, como também utilizam de uma estética do terror para enfatizar certos pontos. Filmes sobre repulsa, bodyhorror fixam você na tela pela proposta de choque com a normalidade esperada, logo são extremamente políticos



Agatje Rousselle foi responsável pela coreografia do carro. Julia também disse que trabalhou com uma dançarina europeia famosa chamada Doris Arnold. 

Em um dos momentos do filme, quando Alexia dança para os bombeiros enquanto Adrien, ela dança de maneira extremamente feminina, apesar de ser Adrien nessa realidade, o que dá todo o contraste do filme e desenvolve bem a duplicidade dos temas de sexualidade e gênero. 




O filme foi lançado em Cannes, em Julho de 2021, onde recebeu a Palma de Ouro, o prêmio principal da noite, sendo exibido também em Nova Iorque, Londres e Toronto. Altitude Film Distribution and Film4 se juntaram para ter os direitos do filme no Reino Unido e na Irlanda em Junho de 2021, antes da premiere em Cannes. 



Minha Crítica do Filme


Titane conta a história de uma psicopata, uma mulher que tem uma placa de titânio na cabeça. Ao ser entrevista em Zoom em Los Angeles, Julia comenta que era fã do trabalho da escritora francesa Virginie Despentes. 


A diretora do filme disse que quer reivindicar a narrativa e tomar conta do olhar masculino, sendo algo que muitas mulheres artistas estão interessadas agora.  



A reflexão do filme parece lembrar a teoria de Michel Foucault, que em seu conceito de biopoder, falava sobre as regulamentações que propunham a vida, e uma delas, é a regulamentação através do fazer viver. 


É através desse índice que é possível observar multiplicidades administradas com referencial estatístico junto com uma noção de padrão de normalidade (o quanto podemos ou ser ricos ou pobres, a expectativa de natalidade e mortalidade, etc.). 


Como Alexia está sempre fugindo, ela não tem acesso a uma normalidade que possa fazer com que ela escolha completamente sua vida e seu destino. 



Em Michel Foucault o biopoder é a articulação (uma caneta) com a qual escrevemos as táticas de regulamentação e normalidade. O que é nítido demais em filmes de trash, terror e afins. Mas aqui o conceito de corpo é mais importante ainda para o entendimento de Titane. 


Essa noção de "impressão" da personalidade é algo que o filme escreve com o corpo, na metáfora dela ser feita (literalmente) com titânio. Para a cineasta, essa medida é um construto social por excelência, e isso faz com que se confunda as linhas de gênero. É filme de suspense, de terror, mas ao mesmo tempo meio político, com tons de comédia, eróticos e românticos.


De alguma maneira, ela disse estar fazendo mímica com o olhar masculino, com a visão de mundo dos homens, e logo com o estilo de filmes que os homens gosta. 


A diretora parece reclamar o poder do olho, que olhando diretamente pela lenta, na verdade, isso está olhando diretamente para você, ela está olhando para você, vigiando a sociedade. O que também é evidenciado pela coreografia da dança inicial. A pose e o controle que ela tem em relação ao carro, representa esse elo narrativo entre as parte orgânicas e mecânicas da sociedade, como distinguia Durkheim. 


O filme tem por isso uma proposta dentro de compressão de que vivemos em um mundo travado existencialismo e no individualismo. As reflexões da cineasta vieram de natureza literária e filosófica, segundo ela, em leituras e reflexões baseadas em Sartre, Beauvoir e seu livro "O Segundo Sexo", como o trabalho de Levi-Strauss influenciou também seu primeiro filme . A ideia do "cru e do cozido" foi uma das principais referências de Julia para fazer o filme (isso segundo a própria diretora em entrevistas). 



Ela também fala do carácter de divisão entre o que é humano e não humano na sociedade ocidental, e que o mais interessante seria o questionamento da própria humanidade, e que isso influencia demais a constituição da sua identidade e as interações possíveis para um indivíduo dentro de uma sociedade estratificada, com gentrificação. Enfim, dentro de uma sociedade que perdeu seus caminhos compartilhados. 



Seu filme parece de um tipo de movimento cultural que é meio "pós do pós". Faz sentido para ao clima atual da Europa, que busca no discurso compensar suas falhas econômicas e estruturais, porém, se perde pelo caminho e renega direitos básicos, além de separar os indivíduos entre "humanos e não humanos". 


O sonho do livre trânsito e o infinito crescimento europeu ficou para trás, e agora a Europa se coloca no desafio de ultrapassar a crítica cultural rasa. Nesse sentido, o cinema de Julia se esforça para não ser apenas mais uma coisa passando na tela. 


Julia conseguiu abordar temas normalmente não tocados em um grande cinema, mas usa do choque civilizacional para provocar narrativamente e na estética. É uma vibe bem de filme europeu. 


Bem, nós como brasileiros, não podemos criticar muito, pois o cinema europeu absorve muito mais do Brasil do que os Estados Unidos. Por exemplo, A Pior Pessoa do Mundo toca uma versão da música Águas de Março no fim do filme e isso ter tudo a ver com a mensagem geral do filme! 


Isso é ouro cultural. Em Titane, os debates econômicos e sociais são sentidos na pele. Como também, em uma das cenas, Vincent ensina Alexia (Adrien) a reanimar uma vítima através de respiração, usando a música argentina Macarena (do Los Del Rio). 


O filme lembra em estética o filme "Crash" (1996) de Cronenberg, onde a excitação sexual era obtida através da ligação cultural com o carro, como a personagem do filme. A mulher dançarina que é bruta como titânio, dança enquanto profissão e é famosa por isso. Porém, não gosta de como a sexualidade que tem é forçada nela, como ela também é uma serial killer que perdeu o controle da vida por estar viciada em adrenalina. 


Ao procurar críticas profissionais sobre o filme, fico com a impressão de que apenas a crítica contrária ao filme, faz justiça ao nível de complexidade do filme. Isso porque quem gostou do filme, não entendeu ele ou refletiu ele direito, enquanto apenas a crítica contrária aponta para as contradições da mensagem abordada no filme, que não deve ser levada totalmente de maneira literal, mas como profundo questionamento em torno da brutalidade e da violência, além de certa ironia. 



Alexia, apesar de traumatizada e de ser mal vista pelas pessoas ao seu redor, também é muito forte, e parece ser, enquanto metáfora geracional, demonstração de uma ideia de individualidade extrema. O filme fala muito sobre abandono e dependência, gênero e sexualidade. 


O título se refere a garota que cresce com a placa de titânio. Mas na mitologia grega, titane é uma referência aos titãs, entidades que criaram e enfrentaram Zeus e os demais deuses olímpicos. A fonte é de Teogonia, atribuída a Hesíodo em um poema épico, "Titanomaquia", (Guerra dos Titãs). A referência aqui é que a personagem do filme, que passa por uma mudança sexual, modificando tudo sobre si para sobreviver (não por identidade) se torna um ser quase mutante no filme. Aqui identifico uma crítica ao feminismo dentro de um quadro geral de pensamentos e emulações, para um quadro que foca mais no empoderamento e prevalêcia do olhar feminino.


Há uma reflexão sobre individualização e neoliberalismo, no sentido bem crítico. A Europa se acostumou a ser o "centro do mundo" (o primeiro mundo), e hoje em dia, não consegue ter a economia e a estrutura geral para manter esse paradigma. 


A vida moderna (cosmopolita) pode esconder armadilhas, o trabalho que liberta Alexia da dependência dos pais (que não a entendem desde de antes do acidente, a acham irritante e violenta), é o lugar onde ela sobre o assédio e a violência que desencadeou as mortes feitas por Alexia. 



Quando ela engravida e tenta abortar, aqui temos a reflexão clássica sobre saúde e liberdade, ela muda de vida para não encarar sua nova realidade de mulher grávida. 


É uma metáfora pesada de desconstrução, mas utiliza demais das próteses de identidade, na ideia do filme, é obrigatório ser alguma coisa, para além disso, é obrigatório se sentir incomodado e quer alterar alguma coisa, mas pensando o contexto atual, até que esse cinema do "choque" tem uma função de questionamento geral. 


Como ela não pôde abortar, e ela não tinha ninguém "humano" no contato com ela, e ela mesmo não era "humana", tinha intimidade com o bruto, com a "máquina", o carro. Uma série de reflexões sobre cuidados femininos, acesso a medicina e coisas como pré-natal e cesariana. Por quê em pleno século XXI todas as mulheres não possuem acesso a inovações científicas tão básicas?


Alexia morrer no fim e seu filho ser igual a ela, também está repleto de significado. Ela morrer é como o fim de um ciclo, o fim de uma época de sacrifício e orgulho da exploração as mulheres que deve acabar. Já o bebê, é preciso lembrar que Alexia não tinha a placa de nascença, mas o bebê sim. Isso parece uma metáfora de que ele já nasceu com aquilo que sua mãe lutou toda a vida para ter, ou seja, nasceu "cascudo". As duas questões tornam o filme uma profunda metáfora geracional, instando uma ruptura com a mentalidade em torno do feminino das gerações anteriores e também teorias pós-modernas.


Alguns críticos levantaram o problema da representação no filme. Uma certa "simpatia pelo cru", Jude Dry do IndieWire descreveu como "um filme profundamente misógino, que mostraria um lado bom da transfobia"(?). As críticas foram pesadas por esse certo sensacionalismo. Mas esqueceram de um detalhe: é um filme que se propõe ao gênero horror. Logo, além de ambíguo, o filme merece certo louvor em saber inovar na proposta audiovisual, e não esquece de passar uma mensagem final. 



O presidente do júri que premiou Julia foi Spike Lee. Por fim, a reflexão é que as marcas deixadas pelos traumas são sobrepujadas pela realidade da vida. O bebê de Alexia nasce tão marcado como ela. Aqui, a justificativa pode ser biológica pela perspectiva da tentativa de aborto que ela fez, como também referência , como pode ser uma metáfora com efeitos simples que mostram a marca que passa de mãe para filho. Realmente um filme inovador, fora da caixa, que, ao mesmo tempo, debate diversos temas sociais interessantes, principalmente para mulheres, mas sem afastar os homens do debate.


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