Em julho de 2005, em uma realidade alternativa dos Estados Unidos, duas cidades no Texas (El Paso e Abilene) foram destruídas por ataques nucleares, matando milhares de pessoas e desencadeando uma catástrofe de proporções inimagináveis. A América entrou em um estado de anarquia e histeria, bem como uma Terceira Guerra Mundial, começada com a Guerra ao Terror conduzida pelo governo. Do mesmo diretor de Donnie Darko, o filme é um clássico cult contemporâneo, que foi subestimado em seu lançamento mas está sendo redescoberto por críticos e espectadores
A Lei PATRIOT estendeu a autoridade a uma nova agência conhecida como US-IDent, que mantém vigilância constante sobre os cidadãos - até o ponto de censurar a Internet e exigir impressões digitais para acessar computadores e contas bancárias.
Em resposta à recente escassez de combustível na esteira da guerra global, a empresa alemã Treer projeta um gerador de energia inesgotável, que é impulsionado pelo movimento perpétuo das correntes oceânicas, chamado "Karma Fluido". No entanto, seu inventor Baron von Westphalen e seus associados estão escondendo o fato de que os geradores alteram as correntes do oceano e fazem com que a Terra diminua sua rotação, e que a transmissão de Fluid Karma para receptores portáteis (via emaranhamento quântico) está abrindo buracos no tecido do espaço e do tempo.
Los Angeles (conhecida como "The Southland" pelos habitantes locais) é uma cidade distópica à beira do caos.
Ao mesmo tempo, observamos o crescimento de uma organização neomarxista underground.
O filme segue os destinos entrecruzados de Boxer Santaros, ator de cinema de ação mas que está com amnésia; Krysta Now, uma ex- estrela pornô, que está no meio da criação de um reality show; e os irmãos gêmeos Roland e Ronald Taverner, cujos destinos se confundem com os de toda a humanidade. Os gêmeos Taverner revelaram ser a mesma pessoa pelos engenheiros do Treer, duplicado quando Roland viajou por uma fenda no espaço-tempo, enquanto Boxer se tornou o homem mais procurado do mundo, apesar de seus laços políticos e de ter o destino de futuro, na forma de um roteiro profético que prediz o fim do mundo, em suas mãos.
A História por trás do filme
Richard Kelly escreveu Southland Tales pouco antes dos ataques de 11 de setembro. O roteiro original envolvia chantagem, uma estrela pornô e dois policiais. Após os ataques, Kelly revisou o roteiro. Ele disse: "O roteiro original era mais sobre tirar sarro de Hollywood. Mas agora é sobre, espero, criar uma peça de ficção científica sobre um problema realmente importante que estamos enfrentando, sobre liberdades civis e segurança interna e a necessidade para sustentar ambas as coisas e equilibrá-las. "
Ele descreveu o filme como uma "tapeçaria de ideias todas relacionadas a alguns dos maiores problemas que acho que estamos enfrentando agora ... combustível alternativo, a crescente obsessão por celebridades e como as celebridades agora se entrelaçam com a política ". Com a premissa do filme de um ataque nuclear ao Texas, Kelly queria dar uma olhada em como os Estados Unidos reagiriam e sobreviveriam enquanto construíam uma "grande comédia sádica".
Kelly havia ganhado fama por dirigir Donnie Darko, de 2001. Mas Darko saiu junto com a assinatura do governo Bush do Patriotic Act.
Em entrevistas, o polêmico Kelly disse: "Southland Tales será apenas um musical no sentido pós-moderno da palavra, já que é um híbrido de vários gêneros. Haverá dança e canto, mas será incorporado à história em muito cenários lógicos, bem como ambientes de sonho de fantasia. "
Kelly disse que as maiores influências do filme são Kiss Me Deadly, Pulp Fiction, Brazil e Dr. Strangelove. Ele o chamou de "um estranho híbrido das sensibilidades de Andy Warhol e Philip K. Dick". O filme frequentemente faz referência a obras religiosas e literárias. Um policial diz "chore minhas lágrimas", referência a um romance de Philip K. Dick com esse nome. O piloto Abilene (Justin Timberlake) cita a escritura bíblica do Livro do Apocalipse ao narrar o filme e faz alusão a Robert Frost 's The Road Not Taken , em uma versão alterada por TS Eliot de The Hollow Men.
Em março de 2004, Kelly e Cherry Road Films começaram o desenvolvimento de Southland Tales. Os cineastas entraram em negociações com os atores e conseguiram um elenco de peso: Seann William Scott (o Stifler de American Pie), Sarah Michelle Gellar eterna Buffy), Jason Lee , Janeane Garofalo, Tim Blake Nelson, Amy Poehler (de 30 Rock), Kevin Smith, Ali Larter e The Rock, hoje o ator mais bem pago de Hollywood.
O músico Moby foi chamado para compor o projeto e interpretar a trilha sonora do filme. Kelly conscientemente procurou atores que ele sentia que haviam sido rotulados por seus personagens e queria mostrar seus "talentos não descobertos".
Entretanto, o filme flopou. Southland Tales arrecadou $275.380 em lançamento nas bilheterias norte-americanas e com um total mundial de $374.743, contra um orçamento de produção de $ 17 milhões e um elenco de dar inveja.
Em uma entrevista de 2013, Kelly disse que considerou este trabalho como "a coisa de que mais me orgulho e sinto que é uma espécie de criança incompreendida ou a criança banida".
Para muitos, o filme como Donnie Darko é incompreensível, confuso demais na história e alegórico demais na conclusão. Mas vou tentar dar algumas perspectivas minhas do filme.
Minha leitura do filme
Como em muitas narrativas distópicas, muitas das respostas que precisamos estão no background da história, e servem como guia moral para os acontecimentos, surgindo apenas como "pistas" na narrativa.
Uma das primeiras pistas é perceber que na exibição do inicio do filme, os republicanos vem constantemente ganhando dos democratas no congresso, em uma alegoria cômica do elefante transando com o burrinho. Isso faz com que eles tenham a hegemonia dos projetos que guiam a sociedade americana.
Outra pista boa é quando a personagem de Sarah Michelle Gellar está falando na TV, em um reality que parece a mistura de "De Férias com o Ex" e jornal, aparece na escrito na CG que foi George Bush que indicou a chefe do US-IDent, dando ares de que o projeto de vigilância de todos os cidadãos, foi ideia dos republicanos.
Outro elemento que nos dá pistas é a participação de Seann William Scott como Soldado Roland Taverner e Oficial Ronald Taverner, irmãos gêmeos idênticos. Um é policial da UPU2, o outro está trabalhando para o grupo neomarxista. Apesar de parecer o plot mais viajado, é dele que melhor dá para extrair significados do filme.
Primeiro, ele é apenas um dos irmãos: o neomarxista. Ele vai se infiltrar na polícia para ajudar a organização neomarxista. Só que no caminho ele impede um suicídio, como se não fosse nada, e chega a presenciar outros policiais executando mendigos. Vou discorrer mais sobre seu irmão, mas vamos por partes.
Há também uma referência a Donnie Darko no filme, onde ao fundo de Sarah Michelle é possível ver desenhos do coelho Frank, ensejando que os filmes de Kelly formam um universo entre si, pelo menos semiótico.
A participação de Justin Timberlake é genial mas tão complexa que fica difícil de sacar, explicando porque Justin já deu declarações dizendo que nunca entendeu o filme. Ele aparece basicamente 3 vezes no filme, um no início lendo a bíblia, dando ar de que está em uma missão de fé. E depois sua principal aparição é para salvar o personagem de The Rock, que está sendo assediado por uma maluca que quer transar com ele.
Pode parecer louco mas essa cena entrega o filme. No mundo de Southland Tales, as celebridades americanas, mesmo do pornô, ganharam status e importância política e diplomática.
Por isso, devem ser protegidos o tempo todo, o que fez com que Los Angeles se tornasse uma cidade militarizada.
A cena que comprova é quando a personagem de Sarah Michelle está gravando uma reality show, vai a um bar com as amigas. Ela vai ao banheiro do bar, onde a privada é estampada com a cara de Marx, sai e é confrontada por algozes.
Quando ela foge pelas ruas cheias do comércio, um militar abate os dois. Uma ótima metáfora de como artista faz merda, que custa a vida de pessoas, mas é protegido e quer se passar de "socialista" depois.
A cena que se segue também é carregada de significados. Ao mostrar o painel das câmeras de vigilância da US-IDent, vemos cenas de jovens se divertindo, fazendo merda e enchendo a cara, ao lado de cenas de guerra e bombardeios externos. Como se a empresa de vigilância garantisse a farra e a festa interna para desviar atenção das pessoas do que acontece na política externa.
Também é interessante ele mostrar o departamento de de vigilância fazendo exercícios motivacionais, algo que previu a onda do "coaching".
Então temos a sequência de The Rock no dirigível. Apesar de parecer meio louco ele ameaçar a si mesmo de morte, faz sentido já que ele é visto como um símbolo para os planos de controle da US-IDent. Vemos também os neomarxistas e outros rebeldes se juntando, matando a líder da agência de vigilância e explodindo seu prédio. Mas o principal não é a conclusão e sim o que é mostrado: estádios de futebol em festa.
Desde Donnie Darko, Kelly se mostrou mago da viagem no tempo, debatendo como coisas podem ser mal julgadas em uma época e se tornarem um sucesso depois. É isso exatamente que vemos em Southland Tales.
O filme tem uma pegada profética, que prevê as viradas políticas dos últimos anos na América. Na época do filme, Bush ainda era presidente, fazendo haver uma paridade entre os democratas e os marxistas. Com a eleição de Obama e a onda do "Yes, we can", essa aliança rompeu, fazendo os democratas defenderem o establishment de guerra ao terror que haviam prometido cessar.
No ano que o filme foi lançado, 2006, o mundo via o agravamento da crise no Oriente Médio, a eclosão do conflito entre Israel e o Líbano, o acirramento da violência no Iraque, a condenação de Saddam Hussein à forca, a derrota republicana nas eleições legislativas dos EUA, a morte do ditador chileno Augusto Pinochet e a doença do líder cubano Fidel Castro, passando o governo para seu irmão Raul Castro. Ou seja, foi um ano de muitas mudanças.
Por sua vez, isso entregou os marxistas, ou pelo menos a ideia de luta de classes e contra o status quo, ao republicanos, algo visto no movimento QAnon. A vulgarização de Marx é uma constante no filme.
De alguma maneira o filme associa essas mudanças com os grandes eventos, como olimpíadas e copa do mundo, anunciado que esses representarão o "fim do mundo", algo que nos brasileiros hoje entendemos bem. Assim, o filme mostra como Bush era um baluarte que garantia a união das esquerdas na América, permitindo avanços dos países do Sul, como Brasil. O sinal máximo da crise desse modelo são os personagens de Sean Scott, que representam como a polícia passou de uma postura prudente e quase socialista, para uma visão de mundo miliciana.
Isso faz de Southland Tales quase como uma peça de um tempo esquecido e que nunca seria feito com a mesma liberdade hoje em dia. Ao mesmo tempo, se consagrou como "filme cult" e "subestimado" com a volta dos republicanos ao poder com Trump. Eles são uns vermes, mas enquanto Trump estava eleito víamos celebridades e artistas defendendo discursos de esquerda, e alguns que denunciavam retrocessos no Brasil, como incêndios na Amazônia. Bastou Biden ser eleito para todas essas pautas e o destaque para o Brasil e Amazônia desaparecerem.
Southland Tales é um filme que vai te divertir, até mesmo seu elenco nonsense. O final é confuso, mas se você é do tipo que curte mais o caminho que a chegada, vai curtir. A montagem, direção e edição do filme são show, com poucos erros de continuidade. A fotografia é meio tosca de propósito, explorando ângulos geométricos estranhos, com uma cor meio opaca, ignorando a estética pulp de quadrinho. Mas a direção de arte, com detalhamento de cada ambiente que passa o filme é bem legal.
Transgressor sem ser vulgar ou politicamente incorreto. Com certeza um clássico contemporâneo esquecido e que precisa ser descoberto. Disponível na Amazon Prime Vídeo.
Em 2021, Richard Kelly anunciou que desenvolvimentos estão em andamento para expandir o filme em uma franquia com a intenção de que o elenco original retorne. O cineasta explicou que o filme original está nos capítulos 4-6, enquanto um projeto anterior explorará os capítulos 1-3 com as intenções de fazê-lo por meio de animação; enquanto projetos adicionais podem explorar eventos que acontecem em 2024. Kelly mais tarde lamentou ter lançado os últimos capítulos primeiro no filme original, afirmando que isso colocava o público em desvantagem. O cineasta afirmou que estão em curso discussões sobre se os projetos devem ser lançados em filme ou em formato longo através de um serviço de streaming. Que assim seja.
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