Donnie Darko é um filme controverso. Sua temática psicológica, com um protagonista conturbado, e o debate sobre viagem no tempo fizeram muitos o considerarem um filme complexo e até mesmo impossível de entender. Mas um detalhe simples, mas oculto, ao longo do filme pode mudar toda sua perspectiva da história, e isso começa por relativizar o foco no protagonista
O diretor do filme, Richard Kelly teve a honra e o trauma de ter Darko como seu primeiro longa. Então obviamente o orçamento era limitado, impedindo o diretor de tornar ele mais explicativo. Isso começa pelo orçamento do filme. Primeiro, por questões técnicas e orçamentárias. Isso porque quem procurar questões envolvendo a produção do filme, o orçamento e a distribuição do filme dificultaram e muito com que a construção narrativa do filme fosse mais "clara" para o público médio, que pode não ter entendido o filme.
Primeiro, pelas músicas. O diretor por exemplo, queria "Never Tear Us Apart", da banda INXS. Mas a música possuía um copyright muito caro, e por isso foi utilizado "Killing Moon" na versão original. Várias cenas foram cortadas para que o filme ficasse com menos de 2h de duração. E nisso o principal fator foi excluído do corte original do filme: a questão da viagem no tempo e o fictício livro "Filosofia da Viagem do Tempo".
Na história original, a questão da viagem no tempo, totalmente ligada ao final do filme, é justificada por Donnie encontrar o livro fictício, e que de certa forma o dá vantagem sobre os acontecimentos que se acontecerão.
Quando lançado originalmente, lá em 2001, o filme "flopou", por ter uma narrativa densa e diferente dos filmes da época. O fato de a trama envolver a queda de uma turbina e ser lançado logo após o 11 de setembro, dificultou sua aceitação.
Entretanto, o filme se "salvou" no Reino Unido, quando começou a ser exibido já em 2002 naquele país. O jovens ingleses adoraram o filme e o elevaram ao status de cult mal compreendido e BBC Two deu projeção ao filme. Isso fez o filme ser reinterpretado ou até descoberto pelos críticos como clássico contemporâneo.
Isso fez com que o estúdio pedisse ao diretor Richard Kelly para fazer um "directors cut" (versão do diretor) do filme, que o tornou mais claro e maior, com alterações na trilha e nos efeitos visuais também.
Encurtando a história, o texto apresenta uma explicação para o cenário e os eventos do filme, incluindo novos conceitos que não haviam sido mencionados anteriormente no lançamento original. De acordo com a filosofia da viagem no tempo, muito do enredo do filme se passa em um instável "Universo Tangente", uma duplicata do "Universo Primário" do qual Donnie se origina, que é criado espontaneamente depois que o motor a jato cai no quarto de Donnie. Donnie é descrito como o "Receptor Vivo" neste novo universo, e é concedido superpoderes como força, telecinesia (movimentação de objetos sem o toque ou contato físico) e premonição.
A tarefa de Donnie ao longo do filme é devolver o motor a jato (chamado de "Artefato" no livro) ao Universo Primário para evitar um desastre apocalíptico. Durante sua busca, ele é auxiliado por "The Manipulated Living" e "The Manipulated Dead"(Frank).
Todos esses fatores, provam que a história vai pra além do próprio Donnie. É claro que Donnie é importante para a narrativa, afinal o filme leva seu nome (escolha que atrapalhou a divulgação do filme). Mas o ponto é que por muitas vezes pela fato do filme se dar em torno de um protagonista, acabamos por ofuscar a participação de outros personagens na trama, focando mais nos aspectos psicológicos ou morais do personagem.
Entretanto, quero propor exercício, para aqueles que já vira ou ainda vão ver o filme, para que ao longo da história tentem ao máximo ver Donnie não como especial ou protagonista, mas sim como um cara comum, um colega de classe. Ou seja, como parte de um coletivo, uma sociedade.
Donnie sofre de sonambulismo, com pequenos traços de esquizofrenia. O filme começa com Donnie jogado no meio de uma estrada, acordando sem saber onde está. Ele já sabe que foi o sonambulismo, então monta logo em sua bicicleta e volta para casa, em uma cena épica com mostrando onde mora: os subúrbios norte-americanos.
Os subúrbios norte-americanos são conhecidos por sua características congeladas no tempo, como casas todas iguais e costumes provincianos de bairro que já não fazem mais sentido. E isso é o que se vê quando Donnie chega a sua casa. Um easter egg nessa sequência é o livro que mãe de Donnie lê no jardim: "It - A Coisa", de Stephen King.
A família de Donnie não sentiu a sua falta e nem ficou preocupada com sua ausência, interpretando o ato como uma "malandragem" para curtir a noite e usar drogas, algo que todos assumem que Donnie faça, fato evidenciado no recado no quadro da geladeira "Onde está Donnie?", dando caráter rotineiro ao fenômeno. A relativização de seus problemas psicológicos é uma constante no filme.
A sequência que segue é a da turbina e ela é marcada por 3 momentos chave: 1 - Donnie toma seus calmantes e vai dormir, mas acorda sonâmbulo e sai de casa antes da turbina de avião cair em seu quarto, como uma metáfora de que seus calmantes são o que causam o sonambulismo. A medicalização "salvou" sua vida. 2 - O pai está vendo TV momentos antes do acidente e assiste a um pronunciamento onde fala ninguém menos que George Bush pai, que seria eleito naquele ano de 1988, ensejando o pai ser republicano. 3 - A primeira aparição de Frank, o sinistro homem coelho e mensageiro do futuro.
Aliás sobre o ano, vale esclarecer que o filme foi feito no ano 2000, mas retrata 1988, algo feito com primor pelo filme que emula a fotografia e linguagem de filmes dos anos 80. Mas voltando a história, quando volta para casa, Donnie vê carros de polícia, bombeiros e as câmeras da mídia. A cena está montada: o jovem se tornou famoso e até para alguns um herói por sua condição de especial de saúde e que o traumatiza, ser justamente aquilo que o salvou e deu projeção.
Essa sempre pode ser a metáfora de diferenças geracionais, já que condições psicológicas específicas era mal vistas e escondidas antes, e depois dos anos 2000 vários jovens passaram a querer ter problemas como depressão e afirmando ter tal condição mesmo sem diagnóstico algum, por verem algum estilo ou "moda" para soar diferente.
É então que chegamos nas cenas na escola e tudo fica mais claro. São nessas que a presença e problemas de Donnie podem ser totalmente ignorados para repararmos a sociedade que só pode descrita com uma palavra: doente.
A cena das menininhas dançando, dão o caráter de "parade", festa cívica que acontece mesmo sem motivos para comemorar. As aulas são um show a parte. A principal professora da turma de Donnie, uma moralista e negacionista, dá todas as aulas com a televisão, exibindo palestras motivacionais de um "coach", genialmente representado por Patrick Swayze. Como se as aulas fossem mais sobre como se tornar um espectador passivo, que aceita tudo que vem até ele como uma injeção na veia. A outra professora, interpretada por Drew Barrymore pode parecer melhor mas também é péssima. Na cena onde ela lança a frase "sente-se ao lado do garoto que acha mais bonito', para a aluna novata (Jena Malone) que virá a se interessar por Donnie, sua atitude foi antiética e buscou deliberadamente constranger não só a aluna mas também todos os alunos. As interações de Donnie com a professora também nunca rendem grandes frutos, sendo ela uma personagem que é demitida depois por incentivar comportamento "rebelde" dos jovens através da leitura de clássicos adultos da literatura.
O professor mais legal na escola é o de física, e mesmo assim quando os questionamentos de Donnie romperam a barreira da ideologia, ele deu um passo para trás, alegando ter medo das conversas com Donnie o custarem seu emprego, revelando uma barreira ideológica até então oculta.
Quando Donnie confronta o coach na palestra na escola, o filme chega ao ápice. Essa atitude de Donnie faz sua mãe ver a verdadeira face da professora. Isso faz com que ao invés de cartigar Donnie, seus pais o recompensam, e então o coelho Frank reaparece, como um sinal.
A cena do cinema com Donnie, a namorada e o coelho, é poética e simbólica, já que o cinema estava completamente vazio, algo um pouco irreal. Mas, o pano de fundo é que nela fica claro que o coelho aparece toda vez que Donnie usa condição como álibi, para fazer uma "malandragem".
Eis que vamos a cena do encontro de Donnie com Frank e descobrimos que o coelho maligno era um mensageiro para alertar que, a "autoestima" de Donnie e o uso de sua condição como autoridade, o levava a um ciclo de autoritarismo automático. Frank era o motorista do carro que viria a atropelar sua namorada. Um mensageiro de que suas escolhas gerariam mais dor e consequências para todos.
Donnie então utiliza seu conhecimento para prever um "buraco de minhoca" para viajar no tempo e poder ficar em seu quarto na noite do acidente com a turbina e morrer. Como ele projeta sua matéria através do buraco para viajar no tempo e como exatamente ele volta especificamente para o dia? Acredito que o filme jogue com o fato filosófico de que basta que Donnie tenha consciência para que a viagem aconteça. Por coincidência, ou não, a turbina do avião que cai no processo é do avião onde está sua família, que faz uma viagem. E assim a turbina do futuro cai no passado e na metáfora altruísta Donnie se matou para salvar sua família.
Minha leitura do filme é a seguinte: o filme se passa em 1988, em um EUA pouco antes do fim da Guerra Fria. Toda a sociedade, família, escola e amizades são marcados pelo anticomunismo como doutrina contra a União Soviética, que viria se dissolver logo depois, mas isso estava fora do alcance dos olhos daquela sociedade. Na perspectiva dessa sociedade todos que são diferentes são alvo de bullying e exclusão. Logo para todos Donnie Darko é alguém ideológico, e logo, para se manter distância. Por sua vez, Donnie também odeia a sociedade que faz parte por saber que as pessoas representam ritos congelados que em breve não farão mais sentido.
A viagem no tempo é uma metáfora de que Donnie tem a mente à frente de seu tempo e por isso não o entendem. Ele vê uma oportunidade de utilizar seu conhecimento para ludibriar as pessoas e parecer descolado, mas isso custa sua sanidade. Ele decide então se "auto sacrificar", como em uma narrativa clássica de redenção para salvar sua família, ou seja, aceitar sua condição para poder aproveitar seu tempo com a família. A turbina é uma metáfora do peso que todos carregamos da criação em família e o que por muitas vezes sentimos ser para em nossas famílias. Mas além da metáfora fílmica catastrófica, a mensagem é positiva: se você sofre bullying, tem problemas ou não se encaixa socialmente, isso não importa se você "pertence" a algum lugar e tem alguém que se preocupa com você. A escola e tudo mais passará, mensagem que parece voltada para possíveis "school shooters", tão comuns aquele país.
Donnie Darko é um filme que junto com uma leva de outros "filmes puzzles", que busca provocar debates justamente como estratégia de marketing do próprio filme. Por isso apresentei minha análise mas diversas perspectivas são bem vindas.
Destaques ficam para trilha sonora com clássico do rock da época (como em "Mad World"), figurino e ambientação do filme e fotografia, são perfeitos em representar os anos 80. A paleta de cores, com tons predominantes de azul e preto é vistosa. Dá para esquecer que o filme é dos anos 2000. A montagem original do filme dá arrepios de tão desritmada em relação as transições do filme, algo que só a versão de 2004 corrigiu, então ok. A atuação dá maioria dos atores é horrível. A galera parecia meio com má vontade no set, vide a atuação da atriz que faz par com Donnie. Só o ator de Donnie se salva, verdadeiro esculacho de interpretação.
Não deixem de ver esse clássico contemporâneo.
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