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Cão Danado (1949): A distinção da autoridade e até onde ir para provar que se é bom

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Um jovem detetive chamado Murakami (Toshiro Mifune) tem sua pistola roubada em um ônibus lotado. Com medo de perder o emprego, já que as pistolas ainda eram muito raras e caras em 1949, ele decide procurá-la, apesar da tarefa parecer impossível. À caça de um ladrão em uma das maiores cidades do mundo: Tóquio. 


Ele tem a enorme sorte de localizar em um arquivo de suspeitos a mulher que se encostou nele no ônibus. Nada pode ser provado e ela era apenas uma cúmplice, pois o ladrão era um homem, mas ela lhe diz para investigar o mercado negro de pistolas. Disfarçado de "soldado que voltou da guerra", ele caminha com Ueno e Asakusa, perguntando às pessoas e, eventualmente, é abordado por um dos comerciantes de pistola. O filme utiliza de uma técnica e uma proposta etnográfica, onde uma pista leva a outra, de uma pessoa para outra, enquanto passeamos pelos mercados populares e toda a beleza do lado mais popular do Japão da época.


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Eventualmente, Murakami  e seu chefe de seção (Takashi Shimura) vão para a casa do ladrão, e então para o show feminino onde sua amiga está trabalhando. 


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Cada pista os leva mais longe, mas, entretanto, acontece um roubo e um assassinato. Murakami, apreensivo por ser sua arma que está sendo usada, lembra que durante o treino de pistola acertou o toco de uma árvore atrás do alvo. Ele desenterra a bala, calibra-a - e isso prova que de fato a arma usada era sua. Isso cria um suspense psicológico no filme, já que a arma simplesmente não desapareceu: virou arma de um psicopata.

 

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Shimura chega ao hotel, percebendo que a polícia está por perto, atira e foge. Murakami, descobre a garota que o assassino se encontrou com ela. Murakami, o persegue, luta com ele em um lamaçal, recupera sua pistola e o captura.


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A História por trás do filme


A história deste filme é baseada em algo que realmente aconteceu. "A anedota é bem verdadeira", diz Kurosawa, "A ideia original para o filme surgiu quando ouvi sobre um verdadeiro detetive que foi tão infeliz naqueles dias de escassez que perdeu sua pistola." Levado pela ideia e vendo suas possibilidades, Kurosawa decidiu escrever um romance sobre ela - e o fez, embora o romance permaneça inédito. "Gosto muito de Georges Simenon", diz ele: "E queria fazer algo à sua maneira."


Minhas principais fontes para analisar esse filme foram os livros de Donald Richie, The Films Of Afira Kurosawa, e o livro de Stephen Prince, The Warrior's Camera: The Cinema of Akira Kurosawa


Segundo Richie, o que mais atraiu Kurosawa na anedota original foi sua adaptabilidade, suas possibilidades, e assim muitos de seus filmes assumem a forma de pesquisa quase acadêmica.


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Em outros filmes de Kurosawa, os criminosos foram tema, como em High and Low e The Bad Sleep Well; a busca pela verdade é o assunto de Rashomon; ouro é o objeto em The Hidden Fortress; e o sentido da vida é procurado em Ikiru


Kurosawa gostava dos filmes de John Ford por eles tratarem de dilemas morais que muitas vezes incorporam todos os elementos da grande busca. 


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Quando ouviu a anedota, Kurosawa pensou primeiro em Simenon, pois todas as histórias de detetive são variações da busca. Além disso, o detetive faz buscas em todo o centro de Tóquio, e Kurosawa sempre gostou de mundos fechados, microcosmos. Segundo Richie, ele e De Sica tiveram a mesma ideia ao mesmo tempo. Ladrões de bicicletas é a alegoria mais completa. Como alegoria social, Stray Dog fica no "inferno". Isso, ao que parece, se encaixa no quadro. Sempre apaixonado por extremos, Kurosawa começou seu romance com: "Foi o dia mais quente do ano..."


Kurosawa novamente usa o calor extremo quando deseja novamente mostrar uma cidade inteira exausta, temerosa, indefesa, em Registro de um Ser Vivo. Seu comentário, em ambos os filmes, é que as pessoas estão prostradas: no filme de 1955 por medo da desintegração atômica; na imagem de 1949 pela longa guerra e a nova civilização empacotadora de tapetes. Está muito quente até para se mover, quanto mais para andar, quanto mais para correr. 


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Ainda assim, embora Murakami sue tanto quanto o resto, ele está continuamente correndo. Ele tem que fazer isso, pois ele é o homem que está procurando, e ele está procurando por muito mais do que sua pistola perdida. 


O personagem do detetive é o único que anda entre os ricos e os pobres, algo interessante da visão do filme. Quando ele perde a pistola, ele se sente não tripulado, pior, ele se sente sem identidade. Segundo Kurosawa, um detetive não é um policial. Ele não tem uniforme. Sua única identidade é sua pistola. Se você tirar isso dele, você tira tudo. 


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Murakami já acredita que perderá o emprego. O perigo disso acontecer não é grande e mais tarde no filme ele recebe outra pistola. A questão é que ele pensa que sim. Se ele perder sua posição, ele não terá lugar na sociedade, a qual ele constantemente julga com olhar de ódio, apesar de se misturar e comer entre os pobres. 


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Ele se torna um "vira-lata". Este é o início da confusão proposital entre policial e ladrão, entre Murakami e o criminoso, que tanto enriquece este filme. Presumimos que o título se refere ao criminoso e os policiais frequentemente descrevem o bandido assim. 


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Shimura diz: "Parar o próximo crime é importante. Uma vez não cria um hábito, mas duas vezes ... um cachorro vira-lata se torna um cachorro louco. Certo?" Mais tarde, quando Murakami está sentindo a tensão, o detetive mais velho se volta para ele. Shimura então diz: "Policiais que são todos nervosos não são bons". Murakami: "Sinto que estou prestes a desabar". Shimura: "Parece que você já fez isso. Olha, os assassinos são como cães loucos. Você sabe como um cachorro louco age. Há até um ditado sobre eles: 'Os cães loucos só podem ver o que procuram". Para Richie, isso, ironicamente, se aplica a Murakami tanto quanto ao assassino.


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O policial tem que se infiltrar tanto na "lama" para entender tão bem o bandido, que se identifica com ele. E o mesmo acontece com Kurosawa e o espectador. Já houve indícios dessa mutualidade antes. Durante a primeira perseguição, que é mostrada como comédia, Murakami segue a senhora batedora de carteiras por todo o centro de Tóquio e essa sequência engraçada termina com eles lado a lado, mas se ignorando, engolindo hambúrguer e refrigerante porque está calor e eles são humanos, já que perseguições deixam as pessoas com sede. Mais tarde, ela desiste e conta a ele sobre os comerciantes do mercado negro. Eles estão sentados em uma ponte. Então ela se inclina para trás e há uma única cena curta filmada de baixo, mostrando os dois e o céu de verão cheio de estrelas. A mulher, que foi mostrada tão bruta a ponto de ser divertida, se inclina para trás, olha para cima e diz, em uma voz suave e até infantil: "Oh, olhe. Que lindo. Por vinte anos inteiros eu esqueci como as estrelas bonitas podem ser." Para Donald Richie, Stray Dog, também insiste na humanidade idêntica de todos os humanos. 


A sequência final do filme é profunda e bela, todos os elementos do filme se juntam. As imagens são de amor e esperança: nascer do sol, galo, flores, crianças, cotovia. Entretanto, aqui estão dois homens adultos na lama tentando se matar. Terminada a batalha, eles se revelam idênticos. E é então que ocorre o confronto. A missão de Murakami termina e ele se vira para ver o que isso fez com ele - e ele encontra um homem assustado que percebe que pode nunca mais ouvir uma cotovia, ver uma flor ou ouvir Mozart. Os homens não são gatos e cães - cujo ódio é instintivo. A luta do homem contra o mal é artificial, o próprio homem é herói e vilão em si mesmo.


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Já Stephen Price fala como Stray Dog é um filme visualmente inquieto. Kurosawa preenche os quadros durante as cenas em boates e salões de dança com uma espécie de desordem de von Sternberg, como redes, plantas suspensas, gaze e escadas obscurecem a vista e os personagens têm que negociar seu caminho através desses obstáculos. Frequentemente, ele coloca no quadro distrações visuais sutis que desviam nosso olhar do fio da narrativa. Como observa Richie: "A tela está continuamente vibrando com o movimento dos jornais dobrados". 


A vibração desses ventiladores, mecânicos e manuais, cria uma corrente subterrânea de energia visual que é onipresente entre os raccords. Durante uma cena em que um policial interroga a senhora de uma casa de gueixas. duas mulheres acendem uma faísca no canto inferior direito do quadro, e as palavras do detetive devem competir com sua chuva de luz. Essa inquietação visual também se manifesta na alternância de sequências de montagem rapidamente cortadas com cenas filmadas em uma única tomada longa. Isso resulta em uma qualidade push-and-pull dinâmica que caracteriza todo o filme.


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Grande parte da trama é filmada silenciosamente, exceto por fontes ambientais de música que competem entre si e são cortadas como uma montagem acústica. Enquanto o policial passa o tempo, tentando parecer alguém deslocado pela guerra, pega chuva, faz as refeições, dorme em um albergue, é interrogado por um policial desavisado e caminha muito; o tempo narrativo é vivido de um novo modo, como duração. A estrutura de montagem, convencionalmente usada em filmes para fornecer breves transições narrativas, torna-se uma sequência em si mesma e, em vez de colapsar o tempo, como costumam fazer essas transições, expande-o a um grau surpreendente. Esta é a sequência puramente formalista que Kurosawa já criou.


Asakazu Nakai

Em sua miséria, o bandido Yusa relembra um dos personagens da obra do autor favorito de Kurosawa, Raskolnikov, de Crime e Castigo de Dostoiévski. A perspectiva multifacetada do filme sobre o ladrão é muito semelhante ao modo de apresentação do romancista. Uma apresentação intensamente compassiva da angústia espiritual de Yusa é associada a uma consciência horrorizada das injustiças de seus atos. Esses atos estão cuidadosamente enraizados nas condições de colapso social e econômico e são sintomas de uma desordem da época. 


Yusa tinha sido um soldado cumprindo seu dever na guerra. Quando ele voltou para casa, nenhum emprego foi encontrado e todos os seus pertences foram roubados. Yusa responde à desordem com criminalidade. 


Kurosawa não vê bem este filme. "Eu queria fazer um filme à maneira de Simenon, mas falhei. Todo mundo gosta do filme, mas eu não. É muito técnico. Toda essa técnica e nenhum pensamento real nela. Shimura é muito bom, mas eu não vi muito profundamente seu personagem - nem o de ninguém, aliás. Se eu vi alguém, foi o assassino.


Aparentemente, ele pretendia mais com Stray Dog e sua comparação é entre esse ideal e o filme acabado. Suas observações sobre a técnica são interessantes, entretanto, porque tecnicamente a imagem é um tanto desajeitada. Um dos erros de cálculo mais gritantes é o uso de um narrador no início do filme, uma intrusão ainda mais injustificada porque, no final do filme, a voz fora da tela se transformou em Murakami e, portanto, há divergência básica entre as narrações. Kurosawa percebeu isso. “Lembro que a primeira cena do filme era para ter sido a cena de abertura na delegacia. Vimos as pressas e não adiantaram. Reli meu romance e finalmente entendi o porquê. No romance se explicava esta cena. No filme não havia contexto para isso. O livro começava com uma série de detalhes, que era o dia mais quente do ano, por exemplo. Depois de levar isso em conta, deu tudo certo. " 


Em outras palavras, uma vez que o contexto não surgiu da situação inicial e do primeiro impulso de Kurosawa imaginar a cena (pois ele estava escrevendo um romance em vez de um roteiro), todas as tentativas posteriores apenas turvaram a imagem. 


Um dos momentos mais mágicos do filme é também um dos mais irracionais. Vimos o calor, até parecemos senti-lo. Repetidamente, as pessoas dizem: "Gostaria que chovesse." Os detetives vão ver a amiguinha durona do assassino. Ela discute com eles, depois discute com a mãe e então - de repente - começa a chorar. Desta vez, as lágrimas são reais (antes ela chorava apenas para se livrar dos policiais) e enquanto ela chora há trovões, o céu se abre e há uma tempestade de nuvens. Pessoal, tudo fica encharcado instantaneamente. O calor está realmente apagado porque logo depois disso o criminoso é descoberto. É como se alguém precisasse quebrar e admitir a humanidade antes que os céus se abrissem e o reinado do mal acabasse. 


É interessante que Kurosawa achasse que só viu o caráter do assassino. Mesmo descontando sua conhecida predileção por seus vilões, esse personagem é completamente anônimo. O criminoso então é mau e seu caráter é mau. Mas para Kurosawa o mal é apenas a escolha errada no momento da verdade. Ao sugerir que o bem e o mal, policiais e ladrões, são um só, ele nos mostrou que somos bons e maus, tanto o policial quanto o ladrão. A diferença entre eles não é essencial. Tem a ver apenas com identidade. O personagem do assassino é de fato o mais importante porque só ele (entre todos os outros no filme) fez a escolha de não caçar, de não se encontrar, de não perseverar, de não acreditar. É por meio dele que o próprio Murakami decide e percebe que compaixão e compreensão não são suficientes. Deve-se agir, deve-se escolher.


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Minha leitura do filme


Duas cenas são essências para decifrar o filme. Primeiro, o fundido encadeado com os olhos do policial Murakami, zangados e inquietos, olhando para todos e os julgando o máximo possível, quase como um exercício prático de distinção social. Como se o próprio ato de se misturar mas ter ódio daquela sociedade o ajudasse a encontrar sua arma.  





Segundo, a cena final onde para parar o bandido, o policial esquece toda a pompa e traço cultural que gosta de exibir ao longo do filme, e se joga na lama. Psicologicamente essa cena fala muito, pois se pensarmos nela como uma simbologia para a corrupção, a "sujeira" do policial", aí podemos de fato chegar na resposta do filme. 


Se o próprio Kurosawa apontou para o duplo psicológico entre policial e bandido, não é difícil imaginar que eles na verdade foram a mesma pessoa todo tempo. 


Não há provas de que o policial de fato perdeu sua arma, apenas sua palavra e autoridade, algo nunca questionado por ninguém no filme. Depois, por uma consciência quase mágica, sua arma passa a ser usada em assassinatos? Fica óbvio para quem é cachorro velho que na verdade o policial não passa de um miliciano, e o plot da arma foi como ele conseguiu expandir seu poder territorial nos bairros mais pobres de Tóquio: como um cão, brigando e marcando território. 


Além disso Yusa, o bandido, é descrito como um ex-soldado, algo que também Murakami era, e quando ele se veste de soldado nas cenas iniciais, o duplo psicológico é reforçado: ele está procurando ou ele está estudando o território e se infiltrando?


Ninguém mais conhece o bandido, e ninguém sabe em quais condições o assassinato cometido com sua arma aconteceu pois nada é mostrado. A garota é a única que parece saber que o policial é também o bandido, e por isso quando pressionada ela entra em sincope. Por último, na batalha final, ao derrotar o bandido, o policial exausto se deita ao seu lado e na mesma posição. Aí ele lembra, procura a arma, a encontra e depois deita de novo: ele pode estar na mesma situação do bandido mas agora recuperou sua arma, aquilo que garante sua distinção social.


Outra cena demasiadamente irônica e má de Kurosawa é quando o policial mais velho fala para Murakami que ele não acredita na psicologia. Segundo ele, como na guerra, só existiam pessoas boas e más. E quando refletimos o perigo de um policial interpretar seu trabalho como de um soldado numa guerra temos um problema. 


Para Kurosawa, o universo das armas, da violência, da criminalidade e até mesmo de sua repressão, representavam o lado degenerado do ser humano; seu lado animal. 


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É inclusive uma expressão comum chamar o jornalismo policial de "jornalismo mundo cão", algo que expressa bem o "inferno" do filme. Em Cão Danado, é mostrado como a polícia a partir daquele momento dos anos 50, passou a tomar uma postura criminosa e corrupta para poder justamente combater os criminosos. Não por bem ou mal, mas como cães, por território. Nos fazendo o espectador se indagar: até onde estou disposto a ir para provar um ponto ou que sou bom?


A fotografia de Asakazu Nakai para o filme é maravilhosa. O calor transparece na tela de maneira abafada e húmida. Você de fato sente a pressão da cena, principalmente nas sequências das feiras e mercados, as minhas favoritas por mostrarem toda a diversidade das ruas de Tóquio, e que no filme não soam muito diferentes das ruas da cidade do Rio de Janeiro. 


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