A série começa apresentando Matt Murdock (Charlie Cox), um advogado cego desde criança após um acidente químico que aumentou seus outros sentidos a níveis sobre-humanos. De dia, ele tenta fazer justiça com o amigo Foggy Nelson (Elden Henson) no pequeno escritório Nelson & Murdock; à noite, veste uma máscara preta e sai às ruas como o vigilante Demolidor, determinado a limpar o bairro de Hell’s Kitchen, Nova York, que está afundado pela criminalidade.
Estranhamente, apesar de ser uma série produzida pela Netflix, a série só está disponível oficialmente no Disney+, clique aqui para conferir. Isso porque o contrato da Netflix com a Marvel acabou em 2018. Por isso a série foi cancelada na 3° temporada e agora está sendo distribuída pela Disney.
Vale mencionar que Matthew fez o ato que o deixou cego para salvar um velhinho que seria atropelado. Isso já o dá certa fama inicial no bairro, pois todos lembram dele como o menino que ficou cego para salvar uma pessoa, uma coisa quase como um santo do bairro. Algo que considero bem mais fiel aos quadrinhos do que a versão do filme do Ben Affleck do Demolidor (2003), filme esse que vou usar muito como referência nessa análise por ser a maior adaptação do Demolidor no audiovisual até essa série, que já logo de caro eu digo: É superior ao filme.
No filme, Matt teria ficado cego pois viu seu pai cobrando uma divida para o mafioso local. O pai está espancando o homem num beco, Matt vê sai correndo, sei lá por qual motivo, cruza com uma empilhadeira do porto, que para não matar Matt, acerta um barril do fluido radioativo que faz ele ficar cego. Algo mais metafórico, porém que passa uma certa culpabilização para Matt e para as crianças, pois lá ele fica cego por culpa dele. Já na série, apesar de o pai de Matt também ser boxeador como no filme, não há menção dele ser um fora da lei. Ele morre por não aceitar perder uma luta combinada para ele perder, como no filme. Mas curioso que o filme de dá uma justificativa para a roupa de demônio do Demolidor, uma vez que seu pai era conhecido como boxeador pelo nome Demônio Murdock. A série não se importa em explicar esse ponto.
Fechando esse parêntese do filme por hora, o grande antagonista da série da Netflix é Wilson Fisk (genialmente interpretado por Vincent D’Onofrio), um homem de negócios que acredita estar “salvando” a cidade mas o faz com métodos brutais, controlando o crime organizado e eliminando quem se opõe. Ele é o vilão conhecido como Rei do Crime, vilão que com certeza é o maior de todos os inimigos do Demolidor. Mas ele também é vilão em Homem Aranha e em arcos de outros super heróis da Marvel que na narrativa morariam em Nova York.
Faz sentido ter uma introdução lenta e gradual a quem seria Rei do Crime, Wilson (Witzel) Fisk. Ele aparece de maneira genial na série, apenas como um cara bem sucedido, que dá em cima da artista da galeria de arte. Ele parece um cara normal, carismático até, um trabalho que foi bem sucedido pela muito boa dublagem de Mauro Ramos no Brasil. O problema é que essa cena premia quem não tem muito contato com o universo do Demolidor ou da Marvel, pois para quem já sacou que ele é o Rei do Crime, ser introduzido como um cara normal é assustador. E ele passa grande parte da primeira temporada tentando conquistar Vanessa, artista da galeria de arte.
Apesar de ser legal a exploração de quem é o Rei do Crime, humanizar ele eu já acho um pouco demais. Temos todo um arco da primeira temporada para mostrar como o pai de Wilson Fisk era um cara deplorável, uma bandido não muito bem sucedido, que vivia fazendo apostas, cobrando e fazendo dívidas e que sem dar muito spoiler foi o responsável por introduzir a violência na vida de jovem Wilson.
Apesar de ser interessante esse "origens" do rei do crime, é um pouco chato pois para quem conhece Fisk sabe que ele é fascistóide. Ter empatia por alguém que destrói a vida de milhares de pessoas é uma decisão confusa da série, mas tá valendo.
A temporada constrói lentamente o confronto entre os dois: Matt e Fisk são dois homens com o mesmo ideal: melhorar Hell’s Kitchen e a cidade de Nova York, mas com visões morais opostas. Sendo bem pragmático, Fisk quer melhorar a cidade para os ricos, aqueles que chegaram lá e querem paz, sendo que ele mesmo é um cara impossível de viver em paz devido aos seus traumas. Como veremos nas próximas temporadas, Fisk possui até mesmo diagnóstico de psicopatia.
Já Murdock quer melhorar a cidade para os pobres. Ou seja, Matt é de esquerda. Não há dupla interpretação aqui. Como advogado Murdock tenta pegar causas populares, de pessoas até que, como Karen, não podem pagar pela defesa. Por outro, como Demolidor ele tenta impedir os criminosos mais emergencialmente, pois como ele mesmo chega a contar na série, ele possui uma super audição e isso o atrapalha a dormir, principalmente quando ele consegue ouvir crimes acontecendo no bairro. E aqui agente pensa: que horas esse cara dorme? Acho que por isso que os arcos de demolidor de maneira geral sempre começam com ele combatendo criminosos pequenos, como assaltantes, abusadores e tal; mas sempre terminam com ele enfrentando os chefes de organizações, como o Rei do Crime. Pois se ele tenta acabar com a criminalidade incipiente e constante, além de ficar sem tempo em sua vida diária, entra em confronto com sua atividade como advogado, uma vez que muitas das vezes defende pessoas que foram falsamente imputadas crimes por serem pobres.
Entretanto, um problema estético que percebo de Demolidor desde os quadrinhos é que apesar de fazer mais sentido ele querer pegar grandes criminosos, esteticamente é gostoso de ver o Demolidor nos becos sujos porrando os bandidinhos de bairro. Demolidor tem esse diferencial: uma estética de pobre, que coisa de pobre é legal, pois é a vida real das pessoas. Além de se manter em Hell's Kitchen por ter nascido ali e possuir certa fama ali, outro detalhe que a primeira temporada mostra, é que Matt mora em um apartamento que foi mais barato pois fica de frente para um letreiro de neon insuportável, que não deixaria ninguém dormir. Segundo Matt, a imobiliária acho que estava se dando bem em cima do ceguinho, já ele acha que se deu bem em cima da imobiliária: achou um bom apartamento e barato.
E isso revela muito de quem é o Matt, pois ele não só aprendeu a lidar com os problemas, ele aprendeu a usar suas fraquezas como armas, algo profundamente sociológico. Mas meu ponto é que esse apartamento fica na área de pobre não só pelo fato de Matt ser um jovem advogado por não ter muita grana, mas pelo fato de Matt não ver problema em ser pobre. Ele não acha que deve nada a alguém e se fosse bem sucedido, isso só seria meritocracia, onde ele saberia que nem todos tem suas habilidades e continuam ali, sofrendo, todos os dias. Isso é vencer? Vale destacar que é interessante o fato de em todo esse arco inicial, Matt usar uma roupa preta improvisada, ao que remete aos quadrinhos, já que Demolidor demorou a ter sua roupa padrão que todos lembramos.
Essa introdução de Matt e do Demolidor, e de Wilson Fisk se tornando o Rei do Crime, dão um ritmo lento gostoso a série. Não há pressa, tudo foi muito bem escrito e pensado. Cada acontecimento em tela está amarrado de maneira geral ao desenvolvimento da temporada. E o clima de Nova York chuvosa e suja, dão um tom a mais a esse ritmo mais denso da série.
Temos episódio só para apresentar a Karen e como ela vira funcionária da firma de advocacia. Vale destacar desde já que a Karen foi muito melhorada pela série. Além de escolherem uma triz carismática, ela apresenta um padrão de caráter bem melhor que a Karen dos quadrinhos.
Temos episódio só para introduzir como Foggy se tornou amigo de Matt. Assim como Karen, Foggy foi melhorado pela série. Nos quadrinhos Foggy é mais bobão e oportunista. Aqui ele é aquilo que costumam chamar de bon vivant. O alívio cômico da série mas também a pessoa mais próxima a Matt. Uma mudança interessante dos quadrinhos é que Foggy aqui é uma das primeiras pessoas a descobrir a identidade secreta de Matt.
Tudo na série é muito detalhado, lembrando um pouco a escrita de CSI, onde descobríamos coisas sobre os personagens ao longo dos episódios.
Ainda tempos outros personagens recorrentes, como Claire Temple (Rosario Dawson), enfermeira que ajuda Matt a se recuperar após suas batalhas. A personagem não funciona muito bem, estando mais na temporada para servir como primeira namorada de Matt. E também Ben Urich (Vondie Curtis-Hall), icônico jornalista veterano do New York Bulletin que investiga Fisk, que na série é interpretado por um ator negro mas era branco nos quadrinhos. Uma decisão que achei interessante se não fosse um detalhe e aqui vou ter que dar spoiler: eles matam Ben no final da primeira temporada. Que decisão merda, cara. Ben nos quadrinhos conseguiu passar pelo arco da Queda de Murdock sem morrer, mesmo enfrentando o Rei do Crime. Eu acho que foi pelo fato de Ben ser um jornalista do impresso, da velha guarda, que resiste a fazer seu próprio "Blog", algo ao que ele se refere como algo menor, pejorativo, mas que supostamente "os jovens só se informam por lá". Ou seja, morreu último jornalista honesto do impresso, saca?! Mas o personagem é muito icônico para morrer tão fácil.
A trama se equilibra entre o drama jurídico e a ação urbana. No final da temporada, principalmente no último episódio é quando tudo acontece. A tentativa de Wilson de se vender como bom cidadão e solução para a cidade, culmina na verdade com sua incriminação, afinal quantas vozes foram caladas por ele. E quando ele finalmente é preso e pensamos que ele vai apenas aceitar, ele piora tudo ao chamar um grupo tático de mercenários que fuzilam os policiais enquanto Fisk faz uma análise sinistra sobre a parábola do bom samaritano.
Matt finalmente tem um motivo para assumir o traje clássico vermelho do Demolidor e salvar a cidade: derrota Fisk, entregar ele à polícia, mas sem perder a consciência de que o crime e a corrupção continuarão sendo uma guerra interminável. Tudo converge a uma batalha final épica em um beco sujo. E por mais que Wilson Fisk possua carisma, principalmente por causa de seu ator, sabemos que ele está errado e o Demolidor está certo pois Fisk luta por si, por seu egoísmo e interesse próprio. Já Demolidor não luta por si, por isso tem que usar a máscara. Se justifica o uso da "fantasia" por sua motivação ser a mais correta.
A 1ª temporada de Demolidor se destaca por romper com o tom leve e colorido do MCU dos cinemas. Aqui, o clima é sombrio, realista e violento, mais próximo de produções como Batman Begins do que de Os Vingadores.
Matt Murdock é um herói profundamente moral e religioso, atormentado pela culpa e pelas contradições entre fé, lei e justiça. A série explora isso com peso filosófico: “O que é justiça quando a lei falha?” ou “Até onde alguém pode ir para fazer o bem sem se tornar o mal?”. Se não fosse ele, o Rei do Crime teria fugido. Mas não é assim na vida real? O que significa a utopia proposta pelo Demolidor?
As coreografias de luta são um destaque absoluto. Tem muita luta de corredor na série, parecendo muito inspirado por aquele filme sul-coreano, Oldboy. A famosa sequência do corredor (episódio 2), filmada em um único plano, é brutal e exaustiva, mostrando o herói cansando, errando e sangrando algo raro no gênero de super-heróis. Isso reforça a humanidade e a vulnerabilidade de Matt. Mas isso se torna clichê ao longo da série, parecendo que Matt fica mais episódios quebrado do que bem.
Vincent D’Onofrio entrega um Fisk sensível, introspectivo e assustador, um homem que ama genuinamente apenas uma coisa: Vanessa (Ayelet Zurer), mas cuja visão distorcida o torna um monstro. Explorando um pouco Vanessa, ela é uma personagem muito confusa. Ela está aqui para gerar familiaridade no espectador que nunca viu nada de Demolidor e logo acredita que o Fisk pode ter um lado bom. Ao mesmo tempo, ela é uma artista talentosa, uma mulher inteligente e independente que sem nenhum motivo está disposta abrir mão de tudo por Fisk. Tanto não faz sentido que depois da primeira temporada ela some da série, sendo só um referencial que Fisk fica mencionando.
Na temporada tem uma cena bem engraçada de Matt tentando saber mais de Fisk através dela. Porém fica parecendo que Matt está talaricando a namorada do Rei do Crime. Tanto que Fisk aparece na hora, do nada, e assim Murdock e Fisk se conhecem pessoalmente a primeira vez.
A fotografia escura, os tons avermelhados e a direção minimalista reforçam o aspecto noir da série. A cidade é quase um personagem suja, viva, opressora. As cenas no apartamento de Matt são tão profundas, que sentimos que conhecemos o lugar, como a casa de um amigo.
A primeira temporada de Demolidor é mais do que uma história de super-herói: tenta cruzar a linha e se tornar um drama urbano sobre a justiça, a ética, a moral, violência e a fé. Ao que redefiniu para mim o universo Marvel MCU, que para mim nos filmes é bem chato. Com atuações intensas, roteiro com diálogos afiados e uma identidade visual marcante, ela consolidou o Demolidor como um dos personagens mais humanos e complexos da Marvel moderna.








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