Há álbuns que parecem nascidos de um tempo e há outros que o transcendem. Clube da Esquina, lançado em 1972, pertence a essa segunda categoria. Surgido no coração da ditadura militar, quando a censura e o medo pareciam sufocar a expressão artística, o disco de Milton Nascimento e Lô Borges não responde à opressão com a ira, mas com o sonho. É um álbum que, em vez de erguer barricadas, constrói pontes invisíveis entre Minas, o Brasil e o mundo, entre a fé e a dúvida, entre a infância e a consciência política.
Enquanto o país se endurecia, um grupo de jovens mineiros se reunia em esquinas e quartos modestos para fazer o contrário da guerra: música. O que nasceu dessa convivência foi mais que um álbum, foi uma comunhão. Aquilo que costumam chamar de "banda". Milton, Lô, Beto Guedes, Tavito, Wagner Tiso, Fernando Brant e Ronaldo Bastos formaram uma irmandade artística movida pela ideia de que criar juntos era uma forma de resistência.
A coletividade, no Clube da Esquina, não é só temática, é estrutural: o disco inteiro soa como uma conversa contínua, feita de vozes que se cruzam, instrumentos que se respondem e melodias que parecem emergir de uma memória compartilhada.
O país vivia sob censura e repressão, mas também num período de efervescência cultural, em que a música popular servia como um dos poucos espaços de liberdade poética e crítica. O movimento tropicalista havia explodido alguns anos antes, misturando vanguarda e crítica social, e a MPB se consolidava como um gênero de resistência e identidade nacional.
Primeiro, comentando a capa do disco. É contado que essa foto de capa é um foto "orgânica", que o grupo registrou de dois meninos sentados em uma estrada de Minas Gerais. Acontece que ela é, ao mesmo tempo, cheia de semiótica e e significados implícitos. Primeiro o fato que os dois meninos são extremamente parecidos com Milton e Lô Borges, como se fosse uma amizade que perdura desde a infância. Outro detalhe, é que o menino negro, de rosto fechado, usa sapatos e roupas que parecem mais urbanas. Já o menino branco, que carrega um lindo sorriso amigável, parece alguém do interior, com roupas mais simples e os pés na terra. Uma semiótica única de Brasil.
O Clube da Esquina não nasce como um protesto explícito. Ele brota de Minas Gerais, da convivência orgânica. O álbum é fruto de um olhar interiorano sobre o Brasil, misturando regionalismo e cosmopolitismo, fé e melancolia, política e transcendência. É uma resposta menos combativa e mais contemplativa à realidade opressora, uma fuga pela arte e pelo sonho.
Entretanto, o curioso é que essa obra, tão associada à alma mineira, não foi gestada entre montanhas, e sim à beira-mar, na praia de Piratininga, em Niterói (RJ). Foi ali, num casarão simples, que Milton, Lô, Beto Guedes, Wagner Tiso, Tavito, Fernando Brant e Ronaldo Bastos se isolaram para gravar o disco. O cenário era outro: as ondas quebrando, o vento úmido do litoral, o horizonte aberto — tudo em contraste com a introspecção de Minas Gerais. Esse deslocamento geográfico dá ao álbum um caráter quase místico: é como se a montanha e o mar se encontrassem, como se o interior e o infinito conversassem pela primeira vez.
O Clube da Esquina nasce dessa tensão entre dois mundos. De um lado, a solidão mineira, feita de silêncio e neblina; de outro, a vastidão fluminense, feita de luz e horizonte. O resultado é uma música que parece oscilar entre o recolhimento e a liberdade.
Musicalmente, é uma tapeçaria improvável. O rock dos Beatles se mistura à mineiridade contemplativa, o folk americano dialoga com o lirismo da MPB, e tudo é atravessado por uma espiritualidade que não é dogmática, mas sensível. Em canções como “Tudo que Você Podia Ser”, “Cravo e Canela” e “O Trem Azul”, há uma vibração juvenil, uma urgência de liberdade. Já faixas como “Cais”, “San Vicente” e “Um Gosto de Sol” revelam o outro lado do espelho: a melancolia, a introspecção e o sentimento de "exílio". Tanto o exílio imposto pelo regime quanto o exílio interior de quem se sente deslocado em seu próprio país, afinal Milton e o pessoal do Clube nunca foram exilados, mas havia um claro movimento para desarticular a música brasileira e a cultura brasileira de maneira geral.
Os arranjos de Wagner Tiso criam uma atmosfera quase cinematográfica, onde o piano e os metais constroem paisagens sonoras que lembram o relevo mineiro: montanhoso, nublado, misterioso. É uma música feita de espaço e silêncio, onde cada pausa parece carregar o peso daquilo que não se pode dizer.
Logo na primeira faixa, Tudo que você podia ser, tudo começa com uma batida de violão isolada, épica, cheia de carga dramática. A segunda coisa que escutamos é a voz afinadíssima de Milton, que começa com um lindo: "Cooooom sol e chuva...". Esse início é tão marcante, tão épico. Representa muito bem a lógica da era de ouro dos "álbuns", discos que buscavam ter uma estrutura conceitual, e não serem apenas o release das mais novas canções de um artista. Depois da primeira estrofe, tudo culmina em uma virada épica de bateria, que introduz o ritmo da música em si, com a batida de violão que marcam as notas mais agudas lindamente.
Depois dessa mistura de drama e euforia da primeira faixa, temos uma profunda melancolia em Cais. Uma cação mais lenta, triste, mais que faz uma referência histórica que poucos conhecem. Na segunda estrofe, Milton canta: " Invento o amor. E sei a dor de me lançar". A palavra lançar aqui não é aleatória, uma vez que a música se refere a um "cais". Lançar aqui significa navegar, se "lançar" ao mar. Essa expressão se refere aos "lançados", também conhecidos por tangomãos, eram negociantes portugueses que se dedicavam ao comércio na costa ocidental africana de forma particular, a partir do século XV. O termo "tangomão" estava sobretudo associado ao tráfico negreiro. Só que Milton é ele mesmo um homem negro, dando todo um sentido ambíguo a música. Eu conheci esse conceito através do livro A Manilha e o Libambo: a África e a Escravidão, de 1500 a 1700, de Alberto Costa e Silva mas outros historiadores também exploram o tema.
A faixa seguinte, O Trem Azul, já caminha por outra vertente, mais alegre, combinando com o que se via na música psicodélica internacional da época. Uma canção que carrega toda simplicidade mais "pop" de Lô Borges.
Entretanto, se a maioria das canções busca encontrar a brasilidade em sua força de expressão, "Dos Cruces" busca ver esse lado latino americano do Brasil, algo que remete bastante para mim ao livro Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano. Ou seja, por mais que o Brasil seja "moderno", luso fônico, ainda se localiza geograficamente na América do Sul, um continente com muita desigualdade social, como o Brasil.
"Um Girassol da Cor do Seu Cabelo" diz muito sobre ao que o Clube da Esquina veio. É pop, é um roquinho, mas ao mesmo tempo profundamente brasileiro. Como já disse, marca única da genialidade simplista de Lô Borges.
Esse disco é difícil pois quase todas as canções do disco são complemente perfeitas. Mas para ser breve, vou destacar apenas mais duas faixas: Cube da Esquina N°2 e Trem de Doido.
A faixa “Clube da Esquina nº 2”, presente no álbum Clube da Esquina (1972), foi originalmente lançada como uma peça instrumental. Naquele momento, ela era assinada por Milton Nascimento e Lô Borges, e se destacava pela melodia introspectiva, suave e levemente melancólica, construída sobre harmonias sofisticadas — uma das mais belas do disco, aliás.
A letra veio bem depois, mais precisamente no final da década de 1970. O letrista Márcio Borges, irmão de Lô e parceiro frequente de Milton, decidiu finalmente escrever versos para aquela melodia, que já era muito conhecida entre os músicos do “clube”. A versão com letra, intitulada também “Clube da Esquina nº 2”, foi gravada pela primeira vez por Milton Nascimento em 1978, no álbum “Clube da Esquina 2”, lançado naquele ano pela EMI-Odeon.
Já a expressão “trem de doido” se refere à histórica rota ferroviária que levava pessoas supostamente "loucas" ao Hospital Colônia de Barbacena, mas muitos inclusive pessoas sem diagnóstico de doença mental, por motivos sociais ou estigmas. Entretanto, "trem" no jeito mineiro de falar, pode ser referir a "coisa", ou seja, "coisa de doido".
O Clube da Esquina fala de amizade, de fé, de liberdade e de amor, mas também fala de dor, tristeza, melancolia por ver o projeto de Brasil escorrer pelas mãos. Tudo isso de um modo elíptico, simbólico. As letras sugerem mais do que afirmam ou explicam, e talvez seja essa ambiguidade que o torna tão profundo, algo típico da MPB. “Nada Será Como Antes”, por exemplo, parece tanto uma constatação histórica quanto uma confissão íntima. A frase serve ao país e à alma. E assim é todo o disco: cada verso pode ser lido como política ou poesia, denúncia ou reza.
À época, a crítica não soube bem o que fazer com aquela obra desobediente às formas. Era um álbum duplo, sem unidade comercial, sem hits claros, sem rótulo fácil. Mas com o passar dos anos, Clube da Esquina se revelou uma das pedras fundamentais da música brasileira, não apenas por sua genialidade melódica, mas por sua concepção de mundo. É o tipo de arte que não busca vencer o tempo, mas reinterpretá-lo de outra maneira.
Hoje, mais de meio século depois, o disco ainda soa atual. Ele não pertence aos anos 70, pertence a música mundial. É um lembrete de que a arte pode ser uma forma de esperança.
Ouvir Clube da Esquina é caminhar por uma estrada cercada de neblina: não se vê o destino, mas se sente a presença do caminho. É um disco que convida a andar, a acreditar, a não desistir do sonho; mesmo quando o mundo parece ter esquecido o que isso significa. Milton e Lô, junto de seus companheiros, nos deram mais que um álbum: nos deram uma casa sonora. E, como toda casa verdadeira, ela continua de portas abertas para quem precisa se abrigar da tempestade.
Você pode escutar o disco completo a seguir (no Youtube e Spotify). Também deixarei, por último, o documentário sobre o Clube da Esquina, que vale muito a pena:




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