O debate já não é novo, mas segue urgente: o streaming salvou o audiovisual moderno ou foi um cavalo de Troia que enfraqueceu o cinema tradicional e prejudicou produtores locais? Neste artigo eu tento equilibrar o olhar: o que o streaming ajudou, o que atrapalhou, quais os números que explicam a força de ambos e como essa transformação tem impacto concreto em um mercado com características próprias, como o Brasil.
Em 2024, segundo o site The Numbers, o mercado mundial de bilheteria em salas registrou algo como US$ 8,6 bilhões em receita e cerca de 760 milhões de ingressos vendidos — sinais de que o cinema ainda movimenta público e dinheiro, embora longe do pico pré-pandemia.
Já o consumo por streaming cresceu numa escala muito maior: segundo o Exploding Topics, estimativas do setor apontam centenas de milhões (e hoje, entre 2024–2025, relatórios setoriais chegam a falar em mais de 1 bilhão de assinaturas/usuários globais para serviços de vídeo), mostrando que a audiência migrou para o on-demand em velocidade impressionante, formando um novíssimo mas grande ecossistema de audiovisual.
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No Brasil, 2024 foi um ano de retomada do público e crescimento de lançamentos: foram lançados 456 longas (197 brasileiros) e o parque exibidor atingiu 3.510 salas, o maior número da série histórica e, ainda assim, os resultados de público para filmes nacionais permanecem abaixo dos níveis pré-pandemia. Ou seja: salas existem e o público volta, mas a dinâmica mudou.
Plataformas quebraram barreiras geográficas: filmes e séries que antes iriam circunscrever-se a festivais ou circuitos locais chegaram a milhões de casas em semanas. Para títulos brasileiros isso, muitas vezes, significou visibilidade internacional.
A necessidade de catálogo (e de conteúdo “local” para mercados específicos) trouxe dinheiro para produções de TV e longas: contratos de desenvolvimento, séries e coproduções se multiplicaram. Isso gerou emprego e profissionalização em várias áreas do audiovisual.
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Isso também leva a nossas possibilidades de experimentação de formatos. Séries longas, minisséries, documentários em episódios e híbridos surgiram como forma de contar histórias que o circuito de cinema tradicional não acomodaria tão bem. Existem também fenômenos como da Pluto Tv, que permite assistir on-demand de graça, uma série de conteúdos mais antigos e nostálgicos.
O que nos leva a outra questão: a preservação e arquivamento. Obras de acervos e filmes de catálogo ganharam nova vida. Muitos espectadores redescobriram clássicos através de curadorias digitais.
Entretanto, um problema que o streaming trouxe foi a canibalização de janelas (windowing) e receita das salas. Quando grandes lançamentos estreiam simultaneamente (ou com janela curta) no streaming, as salas perdem a exclusividade que justificava a ida ao cinema. Isso reduz receita de exibidores e altera contratos de distribuição. No Brasil, a redução do tempo de sala em favor do VOD tem sido ponto explícito de crítica no setor.
Esse ponto em particular é profundamente contraditório. Se por um lado pode desvalorizar a experiência de ir ao cinema e todo o campo profissional ligado a essa prática, é preciso notar que o público tende a preferir assistir as coisas em casa, uma vez que o ingresso do cinema, mais pipoca de cinema, transporte e tudo mais; estão cada vez mais caros. Além disso, durante os anos da pandemia, podemos ver que os filmes que saíram diretamente no streaming ou com uma janela menor, foram muito mais debatidos, ficaram mais na "boca do povo" do que lançamentos mais recentes, vide por exemplo o filme Ataque dos Cães.
Outro problema é a concentração do poder de decisão. Plataformas globais controlam algoritmos, dados de audiência e orçamento. Elas decidem que tipo de projeto merece investimento e isso pode priorizar formatos “seguro-comercializáveis” em detrimento de propostas arriscadas ou autorais, muito comuns no cinema nacional. Quem define o que aparece na sessão de "recomendados"?
Também há a precarização de circuitos curtos e festivais menores. Com parte da oferta migrando para o streaming, a janela festival → sala → público ficou fragmentada; muitos filmes que dependiam de circulação em festivais e circuitos regionais perderam terreno.
Cotas informais vs. verdadeira curadoria. Ter um catálogo com “conteúdo brasileiro” não garante público para obras independentes: aparecer no catálogo não é o mesmo que ser recomendado, exibido em destaque, ou receber campanhas de marketing. Artistas e diretores, principalmente brasileiros, reclamam que uma aparente presença digital oculta a falta de investimento real em distribuição e divulgação, resultando em produções mais precárias.
Nos últimos anos cresceu um movimento entre artistas, produtores e alguns setores da cadeia (exibidores, festivais) pedindo regulação do streaming no Brasil. As reclamações centrais:
Investimento obrigatório: Plataformas internacionais geram receita local mas, segundo parte do setor, não recolhem nem investem proporcionalmente no fomento como as empresas tradicionais. Manifestos cobraram percentuais mínimos de investimento (por exemplo, propostas de 10–12% do faturamento ou mecanismos via Condecine / Fundo Setorial).
Proteção da janela de exibição: redução exagerada do tempo de sala para priorizar lançamentos streaming enfraquece a cadeia exibidora e a renda dos pequenos circuitos.
Concorrência desigual: produtores locais competem com estúdios globais com orçamentos maiores e com poder de marketing; muitas vezes as séries e filmes internacionais ocupam o topo das recomendações das plataformas, deixando pouco espaço para o trabalho autoral brasileiro, que precisa de visibilidade e suporte para alcançar público.
A reação não é apenas retórica: houve manifestações públicas, cartas e petições, assinadas por artistas consagrados, como Kleber Mendonça Filho, Fernanda Montenegro, Malu Mader, Walter Salles, Wagner Moura e outros; pedindo uma “lei de streaming” que combine cotas, investimento obrigatório e políticas de fomento. O objetivo declarado é preservar diversidade cultural e cadeia produtiva nacional.
Então, o cinema vai substituir o cinema? A pergunta é mal formulada se pensarmos em “substituição definitiva”. Como alguém formado em Estudos de Mídia, sempre estudamos muito que um mídia não substitui a outra: elas e sobrepõe. Não parece plausível que as salas desapareçam: elas recuperaram público (como mostram os dados do Brasil em 2024) e mantêm um papel cultural e social difícil de replicar em casa — o ritual coletivo, a escala da experiência, o formato de evento.
Mas o modelo econômico e a cadeia de distribuição mudaram. O desafio é construir regras e práticas que permitam melhores condições para grandes produções. Janelas mais inteligentes, que combinem exclusividade inicial e janelas razoáveis para sala + VOD, quando o filme precisa da sala para construir ecos e receita.
Também obrigações de investimento e transparência, para que plataformas que lucram em mercados locais também alimentem fundos e estruturas (festivais, salas, formação). Várias propostas públicas estão na mesa e o debate legislativo/administrativo no Brasil tem avançado.
Curadorias híbridas. Festivais, crítico/curadoria humana e listas editoriais das próprias plataformas devem dialogar para que o catálogo global não sepulte a diversidade local.
O streaming mudou o que significa “lançar” e “ver” um filme: a experiência virou fluida, fragmentada, medida por dados e algoritmos. Para espectadores, há ganhos claros de acesso e variedade. Para o ecossistema cultural — especialmente em países com cinematografias vulneráveis, como o Brasil — os ganhos vêm acompanhados de riscos reais: concentração de poder, precarização de janelas e invisibilidade de obras autorais.
A saída não é escolher um lado puro (tudo ao cinema ou tudo ao streaming), mas construir regras e circuitos que permitam aos dois ambientes existir de forma complementar — com sala como evento cultural e plataformas como forte motor de circulação, desde que haja contrapartidas reais, transparência e políticas públicas que garantam diversidade e viabilidade econômica para produtores locais. O debate sobre isso já está em curso no Brasil e vai definir boa parte do audiovisual nacional nos próximos anos.

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