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Ataque dos Cães (2021): Faroeste foi inspirado na história do escritor Thomas Savage durante os anos 1920



Em 1925, em Montana , os irmãos proprietários de um rancho, Phil e George Burbank, conheceram a viúva e proprietária de uma pousada, Rose Gordon, durante uma viagem de gado. O bondoso George rapidamente se apaixona por Rose (Kirsten Dunst), enquanto o volátil Phil, muito influenciado por seu falecido mentor "Bronco" Henry, zombava do filho de Rose, Peter, por seu jeito afeminado. Adaptação do livro "Power of the Dog", de 1967, de Thomas Savage


George e Rose logo se casam. Rose usa o dinheiro de George para mandar seu filho para a faculdade para estudar medicina e cirurgia, enquanto ela se muda para a casa da fazenda em Burbank. Phil imediatamente não gosta dela, acreditando que ela se casou com George por causa do dinheiro dele. Seus modos rudes e provocadores a enervam e a todos ao seu redor.




História por trás do filme 


Embora seja difícil dizer o quanto é verdade e o quanto é ficção, o livro "O poder do cão" foi pelo menos em parte inspirado na vida de Thomas Savage, que escreveu o romance de 1967 com o mesmo nome. O romance de 1967, The Power of the Dog, foi semiautobiográfico, baseado em parte na época em que Savage cresceu como um adolescente em um rancho em Montana.


Em uma coletiva de imprensa para o filme após uma exibição no Festival de Cinema de Nova York em outubro, Campion disse ao público que sentiu Savage, pelo menos parcialmente, baseado no personagem de Peter, interpretado no filme por Kodi Smit-McPhee, em si mesmo (Savage morreu em 2003, aos 88 anos).




Campion disse: “Ele veio para o rancho de maneira semelhante a Peter - sua mãe se casou com um irmão, naquela época, Ed Brenner, que na verdade é a inspiração para Phil Burbank.” 


Campion expandiu as semelhanças que encontrou entre Savage e Peter em uma entrevista para a RNZ , a estação de rádio pública da Nova Zelândia: “Eu acho que [Savage] realmente tinha um tio que o intimidou e que morreu de envenenamento por antraz, embora aparentemente não dele, mas em uma lasca de um poste. Savage era um homem gay que era, naquela época, não abertamente gay. Na verdade, ele se casou ”, explicou Campion na entrevista coletiva da NYFF. "Eu imagino que ele se considerava Peter de certa forma."




Dito isso, Campion acrescentou que o verdadeiro Savage não era conhecido por ser tão feminino e ignorante sobre a vida no rancho quanto Peter. “Ele andava a cavalo e a primeira coisa que escreveu foi sobre quebrar broncos. Mas ele certamente tinha uma relação muito mais complexa com a literatura ocidental do que outros.”


A diretora e roteirista Jane Campion, que adaptou o livro, visitou o rancho onde o autor Thomas Savage, um homem gay, cresceu em Montana e se encontrou com seus parentes vivos para entender melhor essa história. 





Campion e sua equipe puderam ver fotos de pessoas reais que puderam ter inspirado a história, incluindo alguém que a família viva de Savage que acreditava ser a inspiração para bronco Henry, o mentor por quem o personagem de Cumberbatch, Phil Burbank, estava "apaixonado".


O ator, Benedict Cumberbatch afirmou a revista People, que ele teve uma overdose de nicotina e que ficou sem tomar banho ao longo das filmagens: “Foram cigarros sem filtro, cena após cena. Tive envenenamento por nicotina três vezes. Quando você tem que fumar muito é genuinamente horrível”. O ator revelou também que passou muito tempo sem tomar banho para ter o mau cheiro de Phil. “Eu queria adicionar essa camada de fedor em mim. E não era só nos ensaios. Eu saia para comer e encontrar amigos sem tomar banho. Fiquei constrangido pela pessoa que limpava a casa em que eu estava morando”, revelou.


Diferenças do livro em relação ao filme


No livro Ataque dos Cães, a história começa ainda na juventude de Phil Burbank, quando o personagem de Benedict Cumberbatch e John Gordon tentam decidir os caminhos que desejam seguir. Gordon é caracterizado como um médico competente, mas sem grandes ambições. O personagem tem uma alma gentil, e trata até mesmo os pacientes que não podem pagar. 


No entanto, ele não consegue dar à bela esposa Rose a vida confortável que havia prometido. Alguns dos moradores locais também enxergam John como um rapaz “fraco”. Enquanto Peter sofre com bullying na escola, seu pai decide enfrentar Phil, mas o cruel rancheiro e seus capangas espancam o médico com grande violência.


John até tenta se recuperar fisicamente e emocionalmente, mas acaba caindo se afundando na bebida e eventualmente cometendo suicídio. No livro, Thomas Savage descreve perfeitamente a deterioração mental de John, e deixa claro que a morte do personagem foi causada indiretamente pelos atos de Phil. Embora John não tenha revelado detalhes de seu sofrimento para Rose e Peter, o livro dá a entender que mãe e filho sabem que Phil causou a morte do médico. 


Dessa forma, o desfecho de Ataque dos Cães na Netflix ganha contornos ainda mais dramáticos. O filme da Netflix corta completamente essa trama e começa sua história em 1925, provavelmente para condensar a narrativa, mas o que fadou o filme a ser uma má adaptação. No livro, o final de Phil é ainda mais dramático. O personagem se esforça para descer sozinho as escadas mais uma vez, e mesmo doente fatalmente, tenta performar sua masculinidade tóxica pela última vez.




Leitura do filme 


A crítica desse filme sem spoilers é difícil. Primeiro de tudo: Phil é talvez o primeiro cowboy "incel" da História do Cinema. "Incel" é como são conhecidos membros de uma subcultura virtual que se definem como incapazes de encontrar um parceiro romântico ou sexual, apesar de desejarem ter, um estado que descrevem como "inceldom". Auto identificados "incels" são em sua maioria composta de homens heterossexuais. As discussões nos fóruns "incels" são frequentemente caracterizadas pelo ressentimento, misoginia, misantropia, autopiedade, auto ódio, racismo, e senso de direito ao sexo e pelo endosso da violência contra pessoas sexualmente ativas.


É exatamente essa a descrição de Phil. Ele odeia Rose sem motivo, desaprova o relacionamento dela com seu irmão e tem gosto em humilhar o jovem Peter que parece ser gay. Ele parece não se entender com ninguém e trabalha castrando os bois da fazenda (o que é uma excelente metáfora para sua personalidade).  




Após a virada do filme, Peter é visto sentado em sua cama lendo a Bíblia. No texto, está o título do filme, encontrado no livro de Salmos, 22:20: “Livrai a minha alma da espada; minha querida do poder do cachorro.”


A implicação é que Phil é o cachorro e que ele perturba a vida dos outros personagens, sempre vigiando e "latindo" para todos. Há muito mais correlações a serem feitas a partir do contexto do versículo e do capítulo da Bíblia, que fornecem mais informações sobre o poder do cão.




Embora o versículo visto no filme possa parecer direto, o “ poder” mencionado no Salmo 22:20 permanece em grande parte misterioso. Entende-se que o cão do texto é o personagem de Benedict Cumberbatch, mas seu poder permanece indefinido e sujeito à interpretação do observador - embora esteja indubitavelmente presente.


Phil não tem confrontos, escondendo-se em quartos com seu banjo e deixando sua ausência falar mais do que sua presença, mas ele exerce uma intensa força psicológica sobre os outros personagens do filme que é simultaneamente gentil e cruel. Isso leva à conclusão de que o poder referido em O poder do cão é de força psicológica, e não física. Em outras palavras, o poder da submissão para provar seu ponto, algo que Peter aprende bem no desfecho do filme.




O poder de Phil vem de humilhar as pessoas para mostrar sua masculinidade tóxica. Phil queima as flores de papel de Peter e assobia de uma janela enquanto se esconde em seu quarto para que Rose saiba que ele a está observando. Ele toca a peça de piano de Rose perfeitamente em seu banjo sem nunca dizer uma palavra e chama seu irmão George  de "gordo". Ele abusa emocionalmente de outras pessoas até que a visão de si mesmas seja seu maior inimigo. É a capacidade de Phil de se aproveitar das inadequações e inseguranças dos outros - fazendo-os questionar seu valor e se sentirem como vermes. 


Por isso, o nome do filme foi mal traduzido para o Brasil. A ideia é mais "O Poder do Cão". Ataque dos Cães ficou parecendo que ia ser sobre um ataque real ao longo do filme.


Todas essas características nos rementem ao arquétipo dos conservadores que emergiram na política da América, do Sul e do Norte, nos últimos anos. Com a característica de que o filme propõe um resultado para esse tipo de personagem. 




Ao final, é difícil determinar quem está envolvido ou não com o desfecho, podendo até mesmo ser auto-infrigido, já que o personagem do cowboy "incel" parece ter tido uma descoberta pessoal que frustrou sua própria filosofia de vida. 




Só que de maneira geral, o filme tem problemas. A fotografia é bem legal, o som, a atuação e ambientação, sendo um filme convincente pela técnica de grande produção. O filme também não tem músicas na trilha, o que tornou monótono (no sentido de apresentar continuamente o mesmo tom). Porém, o roteiro além de não muito bem adaptado, o final ficou meio vago em sua linguagem, sendo para a compreensão de poucos, tornando-o um filme menos popular. 


É certo que o cinema é um "barato audiovisual", valendo mais o som e a imagem do que o roteiro, mas é uma adaptação literária, não é mesmo?! E a escolha que a diretora fez em certos momentos tornou o filme as vezes desagradável de se assistir na escolha do que mostrar nas cenas, e como essas cenas funcionariam ao longo do filme como um todo. Mostrar, em plano detalhe, uma mosca pousando no cavalo é mesmo necessária ou é só pro diretor parecer cult e sensível? Cenas de boi sendo castrado e cavalo apanhando, também desagradaram espectadores. É totalmente possível passar pelo filme e dizer: "entendi, mas e aí?", pois o caminho do filme foi afobado e mal construído, se escorando em torno de uma conclusão simples demais.


Mas admito que foi uma boa sacada da Netflix, BBC e produção de adaptar esse filme agora, já que o cowboy incel da história lembra muito os atuais líderes conservadores da política mundial atual. Mas para o próprio Estados Unidos, a narrativa pode parecer um pouco saudosista, e por isso um pouco conservadora, sendo bom faroeste mas não entra para a lista dos melhores western da História. 


Disponível no Netflix.





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