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Farrapo Humano (1945): O filme mais realista e sincero ao retratar o vício



Baseado no livro The Lost Weekend de Charles R. Jackson, o filme ousou enfrentar um tabu profundo em uma sociedade que preferia esconder seus vícios. A história acompanha Don (Ray Milland), um escritor e alcoólatra em plena espiral de autodestruição. Ao longo de um fim de semana, Don tenta se livrar da bebida, mas é constantemente vencido pela tentação e pela culpa


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Em 1945, o Código Hays ainda estava em vigor, restringindo conteúdos considerados “imorais”, mas Billy Wilder conseguiu contornar a censura com inteligência e sutileza narrativa, abrindo espaço para o que depois seria chamado de realismo psicológico em Hollywood.


Lançado logo após a Segunda Guerra Mundial, Farrapo Humano surgiu em um momento em que Hollywood começava a abandonar o escapismo típico dos anos 1930 e a se abrir para temas mais realistas e sociais. O filme foi uma das primeiras grandes produções do pós-guerra a tratar o alcoolismo não como alívio cômico ou moralismo barato, mas como uma doença devastadora, algo inédito para a época.


A estrutura do filme é claustrofóbica: boa parte da ação se passa em ambientes fechados, refletindo o aprisionamento interno do protagonista. A câmera frequentemente se aproxima do rosto de Don, captando o suor, o tremor das mãos e o olhar perdido, ensejando expressões físicas do colapso mental.


Quando o filme começa, o alcoolismo de Don já é conhecido. Por isso, sua namorada e seu irmão querem o levar para um retiro de final de semana, buscando com que ele ficasse limpo e conseguisse ter paz para escrever seu livro. Entretanto, Don está envolvido demais na situação e tem planos diferentes. 


A coisa se revela preocupante logo de cara, quando vemos que Don criou um sistema para esconder sua última garrafa de bebida do irmão, pendurando a mesma em uma corda dispendida pela janela do apartamento. Inicialmente, muito por causa dessa garrafa na corda, simpatizamos com Don. Pensamos "coitado, o homem só quer tomar sua bebida". Mas a coisa não é tão simples como parece, e só o jeito bobo de Don tentar esconder a garrafa já entrega que as coisas não vão bem, pois enseja que ele quer manter uma fachada de normalidade para a namorada e para o irmão, mas no fundo está apenas esperando eles virarem as costas para beber. 


Eles descobrem a garrafa, mas então Don consegue uma prorrogação da viagem, argumentando que para um fim de semana inteiro, sair cedo ou sair as 18h não fará diferença. Assim que seu irmão e a namorada saem, começa o desespero de Don por um trago. Toda a sua grana (não que seja muita pelo visto) foi pega por seu irmão e namorada. Todos os esconderijos de bebida foram esvaziados e aqui vemos o quão viciado ele está. 

Chega então a diarista que limpa o apartamento de Don ocasionalmente. Ele a dispensa, dizendo que não precisa que o apartamento seja limpo, pois ele vai passar o fim de semana fora. A pobre senhora então pergunta se poderia receber o seu dinheiro logo, para poder fazer compras para o final de semana. Don diz que não tem dinheiro, mas a senhora diz que o irmão a informou que deixaria o dinheiro para ela escondido em um pote. Aqui Don maquina sua ideia obscura, revelando que seu problema é mais grave do que pensamos. Ele acha o dinheiro escondido e diz para a pobre mulher que não encontrou, que infelizmente não vai poder comprar coisas para sua casa, pois Don quer usar o dinheiro para beber. 


Ele espera ela sair e sai em seguida, indo obviamente para o bar da esquina. Chegando lá, o atendente revela que o irmão de Don também esteve lá e disse para não vender nenhuma bebida para Don. Entretanto, o atendente do bar é muito amigo de Don, fica com pena dele e serve a bebida mesmo assim. Ao longo da conversa com Don, o cara do bar percebe várias vezes que tem algo de errado no discurso de Don, mas faz vista grossa ou apenas ignora. Isso começa a nos entregar que o filme é mais do que sobre o vício desenfreado de apenas um homem.

O plano de Don era tomar uns tragos para ficar calmo e ir pegar o trem das 18h com seu irmão e namorada. Entretanto, Don bebe demais e perde a viagem. Isso obviamente frustra seu irmão e sua namorada. 


Ao chegar em casa, ele vê Wick e Helen na rua e, escondendo-se, ouve Wick dizer que desistiu de ajudar Don e está indo embora, repreendendo Helen por decidir ficar e esperar por Don. Don volta sorrateiramente para o apartamento e esconde uma garrafa enquanto bebe a outra.


Para resumir bastante, Don vai a uma boate, percebe que não pode pagar a conta e rouba dinheiro da bolsa de uma mulher. É pego, expulso e mandado nunca mais voltar. E aqui temos mais um sinal do evento maior: por que deixaram Don ir sem chamar a polícia? Porque provavelmente aquilo é mais comum do que parece. Ao chegar em casa, encontra a garrafa escondida por acaso e bebe até cair em um estado de estupor.


No sábado, Don está falido e se sentindo mal. Ele decide penhorar sua máquina de escrever para comprar mais álcool, embora tema a caminhada até a loja por estar se sentindo muito mal. Ele descobre que as casas de penhores estão fechadas para o Yom Kippur, feriado judeu, e a maioria dos bares pertencem a judeus. 


Desesperado por dinheiro para beber, ele visita Glória, uma prostituta que está apaixonada por ele. Ele chega a beijá-la, se prostituindo ele próprio. Ela lhe dá algum dinheiro, mas ele cai da escada e fica inconsciente.


No domingo, Don acorda na ala de alcoólatras do Hospital Bellevue, onde um enfermeiro, Bim Nolan, zomba dele e de outros pacientes. Bim se oferece calmantes para ajudar Don com a abstinência, que certamente virá, mas Don rejeita a ajuda e foge enquanto a equipe está ocupada com um paciente furioso e violento.

Entretanto, foi aqui que a verdade maior do filme foi revelada. Don não está sozinho nessa, nem a intenção do filme é acompanhar o drama pessoal de Don. Toda a questão do vício é abordada de maneira profundamente sociológica pelo filme. Isso quer dizer que o ponto aqui não é analisar ou julgar a moral de Don, mas sim o aspecto social do alcoolismo: era uma sociedade de alcoólatras. 


Aqui vale destacar algumas coisas que notei sobre o filme. Primeiro, a data do filme: 1945, o exato ano do fim da Segunda Guerra Mundial. Imagine quantos soldados voltaram do combate e, sem oportunidades dentro da sociedade, se entregaram a bebida para tentar continuar levando a vida e superar os traumas. E a outra coisa que não dá para ignorar do filme, é como a sociedade, a cidade, é mostrada como um lugar inóspito, monótono, sem destino compartilhado para além do vício e autodestruição. Se Don não fosse para o bar, para onde ele poderia ir? O que poderia o inspirar a escrever? Era uma sociedade em trauma com a guerra, com a economia começando a estagnar e o custo de vida começando a aumentar.


Na segunda-feira, Don rouba uma garrafa de uísque de uma loja após ameaçar o dono e passa o dia bebendo. Ele está no buraco. Antes ele só tinha tremedeiras quando não bebia, mas agora ele está bêbado e ainda assim tem tremedeiras. Ele alucina uma cena de pesadelo em que um morcego voa pela janela e mata um rato, derramando seu sangue. Seus gritos alertam o inquilino, que entra em contato com Helen, que imediatamente vai até lá. Encontrando Don desmaiado e em estado delirante


Na manhã de terça-feira, Don escapa e penhora o casaco de Helen, aquele que os uniu. Ela o segue até a loja de penhores e descobre pelo penhorista que Don trocou o casaco por sua arma, para a qual ele tem balas em casa. Ela corre de volta ao apartamento de Don e o interrompe no momento em que ele está prestes a se matar. A cena é tensa pois Don não parece mal, não parece nervoso, nem doidão e nem em crise de abstinência. Ele está completamente normal, lúcido e ainda assim sua mente está totalmente fora do lugar.


Ela implora, chegando ao ponto de implorar para que ele beba a última porção de uísque que restava na garrafa que ele havia roubado e que ela havia escondido. Entende? Se opção é se matar, talvez seja melhor ele beber, apenas controlar a quantidade. Ela declara que prefere que ele viva como um alcoólatra do que seja um sóbrio morto. Ele se recusa e, enquanto discutem, Nat chega para devolver a máquina de escrever de Don. Depois que Nat vai embora, Helen finalmente o convence de que "Don, o escritor" e "Don, o bêbado" são a mesma pessoa, tanto que as pessoas reconhecem isso e devolvem sua máquina de escrever pois sabem que foi um rompante e sem ela não pode escrever, não pode trabalhar e viver. Isso quer dizer que todos encaram sua bebedeira, como havia dito antes, como uma "pesquisa de campo", a inspiração que ele precisa para poder continuar escrevendo. Don termina o filme se comprometendo em escrever seu romance, que se chamará "A Garrafa" , dedicado a ela, que narrará os eventos do fim de semana; ou seja, o roteiro do filme.


O roteiro de Wilder e Charles Brackett alterna momentos de lucidez e delírio, mostrando como o álcool domina o pensamento de Don. O filme se torna quase uma descida aos infernos, com direito a alucinações, cena muito visualmente bem construída ao tentar passar a ideia de "estar fora de si" na linguagem audiovisual.


O filme caminha entre o fracasso criativo e a autodestruição como fuga. Don é um homem dividido entre o desejo de ser um grande escritor e o medo do próprio fracasso. O álcool é tanto uma muleta quanto um cajado do roteiro: entrega o fracasso do homem, ao mesmo tempo que critica como o dinheiro e a estrutura são responsáveis por tudo isso.


Há uma crítica sutil à sociedade americana do pós-guerra, que pregava o sucesso e a produtividade como medidas de valor humano. Quantos filmes clássico enaltecem o glamour, sem notar que é um sistema onde poucos participavam. Don é um corpo estranho nesse mundo de otimismo artificial, um homem que não se encaixa, que tenta escrever um livro. Quantas pessoas hoje em dia ainda tenta escrever um livro? Mas ele é engolido não só por sua própria insegurança mas como por uma estrutura que subjuga a experiência individual. Imagino que essa experiência de não pertencimento era bem comum nas cidades dos anos 40, uma vez que naquela época o êxodo rural para as cidades era mais recente, principalmente no Brasil. 


O filme mostra ainda o contraste entre a empatia feminina (representada pela personagem de Jane Wyman) e o desprezo masculino pela vulnerabilidade emocional, um tema recorrente na obra de Billy Wilder, que gostava de revelar a hipocrisia social por trás do moralismo de sua época. Reparem como o irmão e o atendente do bar são dois polos opostos de desprezo. O irmão, só quer humilhá-lo, mostrar como ele está errado. O cara do bar, que só quer lucrar, claro, minimiza seus problemas para que ele sinta que tomar um gole já resolve.

A direção de Wilder é contida, psicológica, quase documental, mas pontuada por momentos de cinema mudo, principalmente do expressionismo, herança direta do cinema alemão (que ele conheceu antes de fugir do nazismo).


A fotografia em preto e branco de John F. Seitz cria uma atmosfera sombria, com sombras densas e luzes urbanas marcantes, refletindo a confusão mental de Don.


A trilha sonora de Miklós Rózsa foi revolucionária: usou um theremin, instrumento eletrônico ainda novo, para representar os estados de alucinação e desespero do protagonista. Esse som etéreo, quase alienígena, seria depois usado em inúmeros filmes de ficção científica dos anos 1950, surgindo aqui para traduzir um tormento interno do personagem.


Ray Milland entrega uma das atuações mais intensas da década. Ele evita o melodrama e constrói Don como um homem inteligente e autodestrutivo, cuja lucidez apenas aumenta o sofrimento. Sua performance lhe rendeu o Oscar de Melhor Ator, e o filme levou também Melhor Filme, Diretor e Roteiro Adaptado, conquistando as quatro principais estatuetas que qualquer filme busca ganhar.


Farrapo Humano é um dos filmes mais importantes da história do cinema americano. Não apenas pelo realismo com que retrata o vício, mas por ter aberto caminho para o cinema psicológico e moralmente ambíguo do pós-guerra, que reflete como elementos estruturais agem no indivíduo. Billy Wilder transformou o drama pessoal em crítica social, e Ray Milland deu um rosto humano à dependência química, décadas antes de isso se tornar pauta de saúde pública. É um filme duro, desconfortável e profundamente moderno.

Curiosidades e bastidores do filme


A Paramount temia que o filme fosse um fracasso, por abordar um tema “deprimente”. A maior parte do filme foi rodada nos estúdios da Paramount em Hollywood. Wilder, no entanto, insistiu que parte do filme fosse filmada em locações na cidade de Nova York para criar uma nítida sensação de realismo. 


Em 1º de outubro de 1944, Wilder e sua pequena equipe começaram a filmar em Nova York, principalmente ao longo da Terceira Avenida, no centro-leste de Manhattan. Para criar uma atmosfera ainda mais realista, Wilder e sua equipe usaram câmeras escondidas, colocando-as atrás de caixas ou na carroceria de caminhões, e capturando Milland enquanto ele caminhava pela Terceira Avenida entre pedestres reais que não sabiam que um filme estava sendo feito. A produção também obteve a permissão inédita de filmar dentro do Hospital Bellevue, na ala de alcoólatras, um pedido que seria negado a filmes futuros. Após concluir as filmagens em Nova York, o elenco e a equipe retornaram à Califórnia para retomar as filmagens principais, onde recriaram vários locais de Nova York, incluindo uma réplica do PJ Clarke's, uma taverna frequentemente frequentada pelo escritor Charles Jackson.


O filme tornou famoso o efeito de câmera "personagem caminhando em direção à câmera atordoado enquanto o tempo passa".


Billy Wilder enfrentou resistência de patrocinadores ligados à indústria de bebidas, que tentaram impedir o lançamento do filme. Além disso, após sua conclusão, o filme foi exibido para uma plateia de pré-estreia, que riu do que considerou um filme exagerado, e o estúdio cogitou engavetar o filme. Parte do problema era que a cópia exibida na pré-estreia não continha a trilha sonora original de Miklós Rózsa, mas sim uma faixa temporária com música jazz animada, passando a ideia de uma comédia. No entanto, assim que a trilha de Rózsa foi incluída, juntamente com uma nova filmagem da cena final, o público e a crítica reagiram favoravelmente.

O próprio ator Ray Milland chegou a se internar em bares de Nova York disfarçado para observar o comportamento de alcoólatras, o que o deixou profundamente abalado.


O autor do livro original, Charles R. Jackson, também era alcoólatra e sua experiência pessoal dá ao texto um tom quase confessional.


A cena em que Don tenta vender a máquina de escrever foi filmada de forma quase documental, com figurantes que não sabiam que estavam sendo filmados.


Assista aqui o filme dublado:


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