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Porco Rosso: O Último Herói Romântico (1992): Como o fim da União Soviética inspirou Miyazaki a criar o filme


Lançado em 1992 pelo Studio Ghibli, Porco Rosso é um dos filmes mais singulares da obra de Hayao Miyazaki. Ambientado na Itália da década de 1920, em meio ao entre guerras, a narrativa acompanha Marco, um piloto veterano que, misteriosamente, foi transformado em um porco antropomórfico. Muito além da fantasia, a obra aborda temas como desilusão política, liberdade, amor e a melancolia diante de um mundo em transformação.


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O pano de fundo de Porco Rosso não é aleatório. A Itália do período retratado vivia sob a ascensão do fascismo, e Miyazaki utiliza essa atmosfera para discutir o desencanto dos indivíduos que resistem à homogeneização política e à guerra. Marco, ex-piloto de guerra, se recusa a servir a qualquer governo, preferindo viver como caçador de recompensas independente. Sua transformação em porco funciona como metáfora da descrença na humanidade e no romantismo heroico do combate.


No final dos anos 80 e início dos 90, com a queda da União Soviética e o fim das divisões leste-oeste, muitos países viviam (ou temiam) novos tipos de conflito ideológico, nacionalismo étnico, tensões por identidades, guerras civis etc. Exemplos claros: os conflitos nos Bálcãs, a dissolução da Iugoslávia, com guerras na Croácia, em Sarajevo — essas situações chocaram o mundo e colocaram em pauta o que significa nacionalismo extremo, limpeza étnica, autoritarismos novos ou revigorados. No Japão, os anos 90 foram marcados por uma crise econômica (a “bolha” estourada no final da década de 80, os problemas financeiros, estagnação), incertezas sociais e culturais. Também há debates sobre o papel do Japão na Segunda Guerra Mundial, memória, pacifismo, revisões históricas, e sobre identidade nacional.

Com o fim da Guerra Fria, muitos regimes e ideologias começaram a ser problematizados. No Japão, havia (e há) tensões entre correntes que querem reafirmar uma identidade nacional sem muito remorso e aquelas mais críticas que enfatizam os custos da guerra, responsabilidade histórica e pacifismo.


Segundo reportagens, originalmente o projeto de Porco Rosso era para ser um “curta-médio” para entretenimento em voos da Japan Airlines, com tom mais leve, mais homenagem à aviação antiga.


Com o estouro da guerra na Iugoslávia (1991), Miyazaki ficou impactado, e decidiu enriquecer o filme com uma crítica mais séria aos regimes autoritários, totalitarismos e à violência política, e pôr mais peso no pano de fundo político. Ou seja: ele transformou o que era um tributo mais inocente à aviação num filme carregado de preocupações sobre guerra e ideologia. Há também que esses conflitos recentes fizeram com que o tema do fascismo europeu, nacionalismo agressivo, autoritarismo, voltasse à tona como alerta, não como mera história distante, mas como algo cujas implicações são contemporâneas.

Essa ideia fica mais notável se pegarmos uma frase que parece ser o mote do filme: “I’d rather be a pig than a fascist” (melhor um porco do que um fascista). É uma frase que aparece como linha-chave do filme, mas também como expressão do que Miyazaki queria dizer como diretor do filme. E o contexto da Iugoslávia serviu para intensificar a crítica ao nacionalismo e autoritarismo, onde então essa frase funciona como contraponto ideológico. 


Sacaram? É melhor ser comunista do que ser um fascista. Era legal a ideia do mundo aberto e global que o fim da União Soviética trazia, mas o que vimos na prática foi ver que os países que compunham o antigo bloco soviético tiveram muito mais prejuízo que benefícios com o fim da URSS. Isso fez com que a extrema direita tivesse um vantagem narrativa que faz com que controlem politicamente esses países, afinal podem dizer "os comunistas foram embora, era uma mentira". Fora a constante crise econômica a qual passam esses países desde o fim da sovietização. 

Só que um detalhe foi inserido de maneira interessante como um signo escondido, que ao ser decifrado reforça minha teoria: Marco não é russo, Marco é um porco italiano. Isso é interessante pensar a luz do fato de que o filme não é russo nem italiano, é do Japão, retratando esse contexto histórico. Miyazaki, o diretor, é japonês. E o Japão assim como a Itália, por serem países, como denominado por historiadores e economistas, "de formação tardia", sentiam-se injustiçado na corrida do imperialismo global. Assim, acreditavam que ficar ao lado do Eixo e da Alemanha na Segunda Guerra Mundial poderia servir para ajudar nisso. O que aconteceu todo mundo já sabe. 


Nesse contexto, por isso Marco é um herói niilista, um anti-herói clássico. Ele não trabalha para o governo de seu país, pois seu país estava alinhado ao fascismo. Nisso ele se viu com a liberdade de ser um ser livre, sem pátria. O problema é que os outros não vão ver assim, vão o ver como italiano e logo alguém que não pode ser "de esquerda", algo que ele também usa ao seu favor ao exibir com orgulha a bandeira da Itália no seu avião. 

Acredito que a ideia de Miyazaki aqui é evocar essa ideia para se referir a si mesmo e ao Japão: melhor um país que é entregue a cultura pop ou ser um niilista do que ser um fascista. Ele esta usando a ideia do seu porco voador, para evocar o japonês médio e comum e lembrar da História e do perigo que pode trazer a nação e a si mesmo se alinhar com ideais autoritários como na época com o fascismo. Dai o subtítulo muito bem dado no Brasil de "o último herói romântico": é como Miyazaki se vê. Por isso considero que Porco Rosso, mais do que nenhum dos filmes e personagens de Miyazaki, tem um tom autobiográfico e autoral muito forte. 

 

Usando aqui mais uma vez Cinema e História, de Marc Ferro, dá para perceber que o filme é a tentativa de evocar essa ideia do fracasso, da perda da nação e da identidade nacional com a aproximação de ideais autoritários da Segunda Guerra Mundial, onde não por acaso a Itália estava junto com Japão. O filme é um alerta contra o ressurgimento do autoritarismo e nacionalismos radicais. Ao mostrar o fascismo italiano entre guerras, a decadência moral ou política de regimes que valorizam o poder militar, e um protagonista que recusa essas lealdades, Miyazaki oferece uma metáfora para qualquer sociedade (incluindo o Japão ou o Brasil de 2025) que precise resistir à pressão autoritária, revisionista ou militarista.

O filme também reflete muito sobre culpa, memória histórica e responsabilidade. Marco (Porco) é um veterano de guerra, marcado, transformado — simbolicamente por culpa, desilusão ou decisão moral de não participar daquilo que considera errado. Essa transformação pode simbolizar como uma nação ou um indivíduo vive com os fantasmas da história; como lida com os erros passados, com o peso de ser parte de regimes ou guerras, que muitas vezes não concorda. No Japão, onde ainda se debate a memória da Segunda Guerra Mundial e os papéis do país, isso tem ressonância forte.


É evidente ao longo do filme a crítica ao heroísmo militar e romantização da guerra. Nos anos 90, com guerras “reais” acontecendo (como nos Bálcãs) que não seguem o esquema de vilão claro/herói limpo, Miyazaki poderia estar rejeitando narrativas simplistas de heroísmo militar, nacionalismo épico, exaltações patrióticas. Porco Rosso mostra heróis “feridos”, moralmente complicados, que já não desejam bandeiras ou glórias, e que lutam não pelo Estado, mas pela própria autoestima, pela dignidade. Mas também tudo é muito bobalhão, com um tom cômico que é arquetípica mas não leva muito a sério aquilo tudo.

Todo filme de Miyazaki reflete certo universalismo pacifista e solidariedade humana que casão muito com as ideias de Globalização que estava, em alta na época (Miyazaki é formado em economia)Embora seja ambientado em Itália, o filme é japonês, e sua mensagem transcende nacionalidades. Ele fala sobre valorizar a individualidade, a liberdade de pensamento, e a recusa de violência institucionalizada. Ele conecta com uma tradição de pacifismo no pós-guerra japonês, que embora entre tensões com correntes nacionalistas, ainda é presença cultural forte.


O filme é repleto de nostalgia e evasão como formas de crítica. Miyazaki frequentemente exibe nostalgia em aviação antiga, hidroaviões, formas de vida mais lentas, artesanais (Miyazaki é fã de aeromobilismo). Essa nostalgia não é ingênua: ao recordar o passado com carinho, ele também mostra suas fragilidades, seus perigos — regimes autoritários, guerras. Passado contemplado para alertar, não para glorificar. No Japão dos 90, especialmente numa década de crise econômica, existe também uma insegurança social, uma sensação de perda (do sonho econômico, de crescimento static), uma busca por valores mais humanos, menos mercantis.

No contexto do filme , os conflitos nos Bálcãs faziam o mundo reconsiderar a paz no pós-Guerra Fria. Há uma necessidade cultural de reafirmar valores como democracia, liberdade, e de alertar contra novos totalitarismos e nacionalismos. Miyazaki, como autor, usaria o cinema para participar desse debate intelectual/político.


No Japão da época, havia tensão entre memória e revisionismo: o país tinha (e tem) debates sobre educação, sobre como as guerras são ensinadas, sobre mostrar responsabilidade vs orgulho nacional. Um filme como Porco Rosso contribui para essas reflexões, embora de maneira simbólica e ficcional.


Como Miyazaki a essa altura já era conhecido por seus filmes anteriores, ele queria e podia inserir uma narrativa complexa, com ambiguidade moral, pacifismo, crítica política, sem depender apenas de propaganda direta. Ele podia dialogar com públicos diversos (jovens, adultos), tanto no Japão quanto internacionalmente.


Outro aspecto é que a aviação, os heróis fora de pátria, as fronteiras, o indivíduo contra regimes, tudo isso ressoa com um mundo globalizado que começava a se confrontar com fluxos transnacionais, migração, identidade, e onde “ser cidadão” e “lealdade nacional” estavam sendo repensados. Afinal, todos lembram dos pilotos kamikaze do Japão e como isso impactou o imaginário mundial: para que vencer uma guerra onde não se verá as consequências?


Por isso, diferente de heróis clássicos do estúdio, Marco não é apaixonado e veemente: é cínico, melancólico e distante. Muitas vezes lembra até mesmo Bogart. Ele não busca salvar o mundo, mas apenas sobreviver mantendo sua autonomia. Essa postura, somada à aparência de porco, revela um sujeito que renuncia às glórias da guerra e prefere a solidão dos céus. O filme, assim, subverte a figura tradicional do piloto aviador — muitas vezes retratado como símbolo de patriotismo — para apresentar alguém que rejeita bandeiras e fronteiras.

Como em outras obras de Miyazaki, o voo é elemento central. Os céus do Adriático, retratados em animações fluidas e cheias de lirismo, não são apenas cenários, mas espaços simbólicos de liberdade. O avião de Marco é sua casa, sua trincheira e seu último elo com um mundo no qual ainda acredita. A leveza das sequências aéreas contrasta com a densidade temática do filme, criando uma experiência poética que equilibra ação e contemplação.


Também há um espaço no filme para um debate entre arquétipos femininos da sociedade, mas principalmente do cinema. De um lado a inteligente, pragmática e simples Fio, a jovem engenheira que reconstrói o avião de Marco. De outro, a femme fatale Gina, a cantora de cabaré, desempenham papéis fundamentais. Ambas representam diferentes formas de esperança através do uso de figuras femininas em papel de destaque: Fio traz o entusiasmo do futuro e da juventude, enquanto Gina carrega a maturidade da perseverança, afinal as mulheres não são todas iguais. A presença delas contrasta com o pessimismo de Marco em níveis diferentes, onde a interação entre esses personagens funciona como contraponto e motor narrativo.

O desfecho de Porco Rosso mantém o tom ambíguo que percorre toda a narrativa. O mistério sobre a condição de Marco — se permanecerá porco ou voltará a ser humano — nunca é resolvido de forma definitiva. Essa escolha reforça a dimensão alegórica da obra: mais importante do que a resolução mágica é a mensagem sobre dignidade, resistência e a luta por uma liberdade pessoal diante das forças opressoras da história.

Porco Rosso é um filme que, embora muitas vezes considerado “menor” dentro da filmografia de Miyazaki, revela uma das obras mais maduras e politicamente carregadas do diretor. Entre a aventura e a reflexão, o longa propõe um olhar crítico sobre a guerra, a ascensão de regimes autoritários e a solidão do indivíduo que insiste em não se curvar. Ao transformar seu protagonista em porco, Miyazaki nos lembra que, às vezes, manter-se fiel aos próprios princípios é mais humano do que parecer humano.

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