Senna (Netflix, 2024): Do herói que o Brasil precisava ao ícone midiático que marcou a TV (e agora o streaming)
A minissérie Senna (2024), criada por Vicente Amorim e Júlia Rezende, mostra a trajetória do piloto brasileiro Ayrton Senna em seis episódios: do kartismo no Brasil à consagração na Fórmula 1 e sua morte em 1994, além de aspectos pessoais como amores, família e legado.
A série constrói uma narrativa clara: Senna como herói técnico e emocional, quase um mito do Brasil moderno. Simplificando bastante, era ditadura militar no Brasil, mas a ditadura já não ia bem e a ideia de democracia já voltava a arejar a imprensa. Senna era então um ícone perfeito, pois podíamos estar atrasados, uma vez que nunca houve equipe brasileira na F1, mas pelo menos temos o piloto, ou seja, apesar da ditadura somos um país moderno e industrial, que conseguem ter um brasileiro na maior competição de automobilismo do mundo.
Isso traz à tona duas problemáticas centrais: Iconografia e hagiografia. O piloto é retratado como impecável, o que dá pouca margem à complexidade humana real do Senna. Aquele discurso mais social e consciente do Senna ficou de fora.
Personagens reais viraram figuras unidimensionais, se confundindo com personagens fictícios, como a jornalista fictícia Laura Harrison.
A série começa muito bem, com um grande hype dos anos iniciais de Senna, algo que pelo orçamento e passado histórico a série representou muito bem. Mas ela vai perdendo a força ao longo dos episódios, muito devido ao final derradeiro e trágico de Senna.
Episódios x Cronologia Real da Vida e Corridas de cena
A série é composta por seis episódios que podemos correlacionar com os marcos reais da carreira de Senna:
Episódio 1 – Calling (“Vocação”)
Na série: Mostra a transição de Senna do kartismo para a Fórmula Ford na Inglaterra. Ele quase vence o Campeonato Mundial de Kart em 1979, mas perde em critério controverso (roubo) da FIA. Ganha o título na Fórmula Ford e promete retornar ao Brasil.
Na vida real, Senna realmente perdeu o título mundial de kart em 1979 em decisão polêmica e se mudou ao Reino Unido em 1981. Disputou e venceu na Fórmula Ford, chamando atenção das categorias superiores.
Episódio 2 – Belonging (“Pertencimento”)
Na série: Ele conquista o título da Fórmula 3 (provocando o apelido “Senna”) e é promovido à Fórmula 1 em 1984. Aumentam tensão conjugal e profissional.
Na vida real: Senna venceu o campeonato inglês de Fórmula 3 em 1983 após uma recuperação decisiva com motor atualizado e conseguiu a vaga na Fórmula 1 em 1984, iniciando com a Toleman.
Episódio 3 – Ambition (“Ambição”)
Na série: O senso de “dever para com o Brasil” se intensifica (representado por Galvão Bueno). O clima de rivalidade com Alain Prost começa antes do Campeonato de 1988.
Na vida real: Senna ingressou na McLaren em 1988, seus confrontos com Prost se intensificaram nessa temporada e suas emoções eram acompanhadas com fervor nacional.
Episódio 4 – Passion (“Paixão”)
Na série: Foco no relacionamento com Xuxa no fim de 1988, seguido de conflitos públicos e falhas técnicas que aumentam a hostilidade com Prost.
Na vida real: Após o título de 1988, Senna apareceu no programa Xou da Xuxa e enfrentou desafios técnicos e de imagem pessoal que vinham deixando a rivalidade com Prost mais aguda.
Episódio 5 – Hero (“Herói”)
Na série: Aborda o Grande Prêmio do Japão de 1989 e os conflitos com a FISA (que exigiram uma retratação pública), além da vitória dramática em Monza em 1990 e o terceiro título mundial.
Na vida real: Senna foi desclassificado de Suzuka em 1989 após colisão com Prost, enfrentou pressões da FISA e, em 1990, conquistou a vitória em Monza e seu segundo título em 1991 e o terceiro ainda em 1991.
Episódio 6 – Time (“Tempo”)
Na série: Ele passa para a Williams, enfrenta acidentes com amigos (como Barrichello e Ratzenberger), pressiona por mais segurança e se prepara para sua corrida final em Imola.
Na vida real: Em 1994, Senna já estava na Williams; aquele fim de semana trágico, com mortes de Ratzenberger e acidente de Barrichello, intensificou suas críticas à segurança — momentos que antecederam sua fatalidade em San Marino.
A série assume uma postura mais dramática e familiar do que documental, explorando a vida de Ayrton fora das pistas — romances, relações familiares, espiritualidade —, o que contrasta fortemente com o estilo clássico de documentários esportivos.
Isso traz a discussão sobre “mitificação” de Senna: ele é mostrado como herói trágico, e não apenas como esportista. A estética e a montagem aproximam-se de narrativas épicas.
Nacionalismo e identidade brasileira
O seriado reforça a ideia de Senna como símbolo nacional durante os anos 80/90, em um Brasil em crise econômica e social. É interessante destacar como e porquê uma produção atual da Netflix (uma empresa global) resgata essa narrativa nacionalista do Brasil da época, mas traduzida para o público internacional. Qual seria o interesse da Netflix em vender o lado emocional do nacionalismo brasileiro para o mundo?
Para o diretor, Vicente Amorim, como brasileiro, pode-se pensar na noção de “soft power” cultural, onde a imagem de Senna é usada não apenas como biografia, mas como emblema do Brasil no streaming mundial. E como veremos, é da direção onde vem o maior brilho da série.
Espiritualidade e religiosidade
A série mostra nuances da espiritualidade de Senna, um ponto que não é tão explorado em outros retratos. Essa parte da série serve para reforçar a visão dele de missão e destino, o que reforça a dimensão quase messiânica que ele tinha de si e de sua missão de representar o Brasil. Além disso, aproxima-o do povo brasileiro, que é muito religioso.
Questão da memória e do espetáculo esportivo
A série encena de forma estilizada momentos das corridas, mas sempre pela lente da narrativa ficcional. Isso pode ser discutido em paralelo com Guy Debord e a espetacularização: As corridas tornam-se espetáculo televisivo (anos 80/90). No mundo, pela reabertura dos mercados globais e pela presença de grandes pilotos no grid, como o próprio Prost. Mas no Brasil, como sempre dito, o povo acordava de manhã no domingo para ver o Senna correr. Havia uma grande energia sinérgica e ritualística entre os feitos de Senna na pista e o povo que o acompanhava pela televisão. Na série, nota-se bem esse movimento de espetacularização da Fórmula 1 e como Senna estava no meio desse turbilhão de mudanças nas corridas, tornando-se algo mais pessolista e ao mesmo tempo grande e mais vendável. Entretanto, como isso prejudicou e incomodava Senna ficou mais ou menos de fora. Essa energia entre o público e o piloto também ficou de fora, obviamente por remeter a material televisivo que pertence a Globo, sendo melhor explorado em outros produtos audiovisuais de Senna, como documentários.
Hoje, a Netflix reinsere isso em um novo espetáculo global, transformando memória esportiva em produto de streaming.
Diferença em relação a outros registros de Senna
O documentário “Senna” (2010), de Asif Kapadia, prioriza imagens de arquivo e entrevistas, com foco quase jornalístico.
Já a série da Netflix aposta na dramatização ficcional para conquistar um público mais amplo (até quem não acompanha Fórmula 1). Aqui podemos discutir o risco da ficção sobrepor-se ao fato, criando uma versão “novelizada” de Senna que pode não corresponder ao real, mas que alimenta o mito. Porém, acho que isso é tão comum hoje em dia, em produtos audiovisuais sobre figuras muito mais questionáveis, onde tornar mito alguém como Senna que tinha uma mensagem a passar, não soa nada mal.
Aqui temos a dramatização versus fidelidade histórica: o romance com uma baronesa monegasca e sub-representação de relações importantes, como com Galisteu ou a amizade com Galvão Bueno, geram ruído com públicos que conhecem melhor a história.
2. Estética, direção e feitos técnicos
O maior feito da série para mim foi sua qualidade técnica: Com orçamento estimado em US $170 milhões, é a série brasileira mais cara até hoje. Foi rodada em quatro países, com 2.000 VFX shots, replicação de 30 circuitos e 22 réplicas de carros — muitos deles filmados em estúdio LED com tech de ponta.
O resultado é incrível. Recria perfeitamente o cenário e a atmosfera das corridas vintage, principalmente na parte das categorias mais iniciais.
Os takes de corrida de dentro e de fora do carro estão estupendos. O diretor soube não só decupar os planos de maneira a passar a sensação de que a narrativa está se desenrolando junto com corrida, como soube convergir emocionalmente esses afetos internamente dentro de cada episodio.
A direção de fotografia de Azul Serra (ARRI ALEXA 35) proporciona cenas de corrida intensas e realistas, elevando o nível das sequências de pista.
É convincente em termos de série, principalmente se pensar que muitos que gostam de Senna já conhecem todas essas histórias. Só que a série apresenta esses momentos chave da carreira do piloto em cronologia com os sentimentos e vida pessoal do Ayrton. Isso faz com que coisas que todo mundo sabe sobre ele não pareçam óbvias pela forma narrativa como são bem apresentadas e compiladas, podendo agradar tanto a fãs do Senna piloto, do Senna figura pública e aqueles que ainda não conhecem o piloto.
Vicente Amorim e Júlia Rezende trazem equilíbrio entre drama pessoal e espetáculo esportivo. Podemos dizer que a série mistura o filme nacional, com telenovela e blockbuster norteamericano, valorizando figurinos, locações e até a caracterização de personagens e ambientes muito bem.
A performance de Gabriel Leone pode ser elogiada. Ele conseguiu ir do distante e confuso "bandido gato" de Dom, para o carismático e popular Senna. Porém, Senna era muito mais carismático justamente por uma simplicidade popular difícil de imitar: ele apenas era aquilo. E por mais Gabriel Leone seja um dos melhores atores brasileiros da atualidade, sua escolha para o papel pareceu se dar muito mais por sua participação em Ferrari (2023), de Michael Mann.
Por sua vez, é impossível não reparar como a série influenciou o novo filme de Brad Pitt, produzido por Jerry Bruckheimer, "F1 - O Filme" (2025). Desde a atuação despojada de Pitt que parece inspirada na atuação de Gabriel Leone, até a os takes das corridas, que são idênticos aos da série, só que em uma produção com muito mais orçamento.
O problema talvez venha da falta de profundidade narrativa e principalmente dos personagens secundários e suas respectivas interpretações.
Só que, para mim, o maior erro da série é que é uma grande produção de uma história desgastada: quase todo brasileiro conhece. E além de tudo: tem um final trágico. Aí entra o elemento da hagiografia. A história de Senna é contada como a história de um santo, onde sabemos tudo que vai acontecer e revivemos para tirar lições.
Em resumo, a série reaproxima públicos da figura de Senna e reforça sua dimensão simbólica — dentro e fora das pistas. Foi um fenômeno de audiência no Brasil, gerou discussões intensas e foi indicada ao Critics’ Choice como Melhor Série em Língua Estrangeira.
Vale a pena — especialmente por sua força visual e narrativa de herói. Mas não espere uma biografia profunda: ela é mais espetáculo e mito do que introspecção.
Curiosidades dos bastidores
Em setembro de 2020, a Netflix anunciou que estava financiando "o primeiro drama fictício" sobre a vida de Ayrton Senna, e que a série seria produzida pelo estúdio brasileiro Gullane Entretenimento em colaboração com a família Senna.
É a série brasileira mais cara da Netflix: orçamento de US $170 milhões.
Embora a série estivesse inicialmente programada para estrear em 2022, a produção foi suspensa devido à pandemia de Covid-19.
Como brasileiro e fã de automobilismo de longa data, Amorim já conhecia a carreira de Senna. Ele disse que, embora a Fórmula 1 tivesse muitos "ídolos" ao longo de sua história, Senna era seu único verdadeiro "herói", pois ele não só era talentoso, mas também "percebia o tempo ... de uma maneira completamente diferente de todos nós".
Ele acrescentou que queria contar uma história sobre como Senna conquistou a Fórmula 1, que "sempre foi manipulada para favorecer os pilotos europeus" antes da chegada de Senna. Amorim entrevistou os familiares de Senna para “saber mais sobre Ayrton como homem” e obteve “acesso sem precedentes aos arquivos pessoais de Senna”, incluindo gravações de telefonemas e cartas da carreira júnior de Senna na Inglaterra.
As filmagens começaram no final de 2023. A série foi filmada em São Paulo e Angra dos Reis, com filmagens adicionais ocorrendo na Argentina, Uruguai e Irlanda do Norte. Para criar carros com precisão de época, a Gullane contratou o fabricante argentino Crespi Automotive para construir 22 réplicas de carros para a série, incluindo cópias de todos os carros que Senna correu em sua carreira.
Carros de fundo adicionais foram criados com CGI, quando necessário. Para se preparar para as cenas de direção, os atores treinavam em karts várias vezes por semana. Escala gigante: 980 horas gravadas, equipe com mais de 2.200 profissionais e mais de 3.300 entre elenco, extras e VFX.
Alta tecnologia: 2.000 planos com efeito digital, estúdio LED, réplicas de carros e locações em Brasil, Argentina, Uruguai, Irlanda do Norte.
A série foi criticada nas redes sociais brasileiras por dar à última namorada de Senna, Adriane Galisteu, três minutos de tela, ao contrário de Xuxa, cujo romance com Senna dominou o quarto episódio. De acordo com o Metrópoles, o tempo de tela limitado de Galisteu foi um acordo entre os produtores, que achavam que Galisteu deveria estar na série, e a família Senna, que discordou. Após o lançamento da série, Galisteu emitiu uma declaração nas redes sociais comentando o caso e reforçando carinho que sentia por Senna.
Comentários
Postar um comentário