Machado de Assis foi o melhor escritor brasileiro de longe e sem dúvidas. Mas sabemos bem que sua figura suscita questionamentos e raiva até hoje por parte de seus críticos. Guiamos pela força do identitarismo copia e cola das teorias raciais americanas atuais em franco anacronismo, apagamos história do maior camaleão brasileiro que já existiu. A verdade é dura, o maior escritor brasileiro de todos os tempos não passou por centros universitários mas é revisitado em teses e artigos de maneira constante e também é muito traduzido, principalmente para o inglês.
A polêmica principal pode ser entendida em duas perguntas, era Machado branco ou negro? E qual a razão da importância disso? Se Machado de Assis fosse vivo e fosse tentar o sistema de cotas, será que ele seria aprovado pelos critérios de identificação utilizados?
Machado de Assis nunca negou sua origem, sempre declarou-se como era, neto de escravos libertos mas que também se casara com uma culta e rica portuguesa, quando sua mãe foi uma mulher branca, imigrante dos Açores que foi lavadeira.
Para responder isso, podemos comparar com outro escritor pardo da época, Lima Barreto, este morreu pobre por optar por ser abertamente negro e militante também. Claro que sua atitude não foi "errada", mas mostra o quanto Machado ocupava um outro lugar. Talvez se ele fosse esse identitário ferrenho, ele não teria a cor local que o faria entender mais sobre o tipo ideal do homem médio brasileiro ou do pensamento brasileiro. Uma visão positivo e uma visão progressista.
O Brasil vive desde o século XX uma aproximação com os EUA, um fenômeno de 200 anos, então é válido comparar as teorias raciais de lá e as daqui. Já que em termos de publicações acadêmicas, os EUA cresceu e muito a sua importância nas publicações mundiais e na sua influência, com mecanismos e órgãos como a ONU, por exemplo
Lima Barreto, dizem, escreveu O Triste Fim de Policarpo inspirado na figura nacionalista e nativista de Machado de Assis. A piada é que foi nas traduções para o inglês que a figura de Machado passou a ser tão valorizada. Já Lima Barreto morreu pobre e esquecido e hoje em dia é lembrado mas na época sofreu ostracismo.
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Jornalista e autor de "Claro dos Anjos" e "Triste Fim de Policarpo Quaresma", "Recordações do Escrivão Isaías Caminha". |
A origem do identitarismo americano e a ideia de pureza racial. Os estudos que estão sendo reciclados e usados para tudo.
Origem da elite negra nos EUA. Após a abolição da escravidão, formou-se uma elite educada afro-americana, muitas vezes formada em universidades do Norte.
Daí a tensão entre assimilação (inserção nos padrões da elite branca) e valorização da diferença racial, e não mais da miscigenação, que virou um sinal de bandeira, ou de "mancha", ou "fraqueza", ou mesmo diluição. Aí veio a importação de ideologias como o pan africanismo.
O contato com africanos e caribenhos (Marcus Garvey, George Padmore, Kwame Nkrumah fortaleceu a ideia de que a luta nos EUA estava ligada à luta anticolonial. A doutrina em vigor era: Separados porém iguais (Plessy v. Ferguson, 1896). A doutrina legal norte-americana legitimava a segregação racial.
Parte da elite negra aceitava essa realidade como estratégia: criar instituições próprias (escolas, igrejas, negócios, universidades negras como Howard, Fisk, Tuskegee) que mostrassem excelência, reforçando o orgulho racial e a independência da população.
Esse posicionamento ressoava com o pan-africanismo no sentido de “autonomia negra”, ainda que em contextos diferentes.
Aí veio o pan-africanismo e influenciou a visão de que os negros deveriam se organizar como comunidade própria, em solidariedade com outros povos negros no mundo, mas seria apenas o orgulho das diferenças ou teria um teor há mais de "separados, porém iguais", é um debate histórico e complicado. Nem todas as tendência do pan africanismo são puristas. Mesmo militantes dos direitos civis Michael X comparava os que buscavam se integrar com atitude "uncle Tom" (personagem clássico da literatura).
A elite afro-americana passou de pró miscigenação para condenar silenciosamente os traços mistos da américa. Vale lembrar dos Buffalos Soldiers (homens negros que fizeram seu nome em cima de matar índios).
Machado de Assis passou a ser o representante da descrição do pensamento do homem brasileiro moderno em sua maioria. Ele passou a se ver como parte de uma grande massa coesa em pensamento e linguagem. Por isso, que podemos apontar Machado como um dos criadores do português brasileiro.
Não é sobre saber se vender ou esconder. É sobre poder escolher. O poder da auto classificação. O meu ponto é básico. Não existem "raças" definidas. A raça é uma e é o ser humano em si, ninguém é diferente. Mas desenvolvemos um sistema de classificação racista que classifica uma raça como melhor que a outra. O que existe é uma preponderância racial e isso se distribui pela classificação de cor (branco, preto e amarelo).
Por isso há essas formas de medidas compensatórias. Por ser incomparável a realidade do estudante pobre para o estudante rico antes da universidade. Afinal, quem eram os personagens de Machado? Homens brancos, acadêmicos frustados e filósofos cachorros, ás vezes submissos, além de mulheres ordinárias e pacatas.
Bom para quem quer ler as criticas anteriores do que já fizemos de Machado de Assis, das adaptações e de alguns livros que nem tem adaptação ainda, como Esaú e Jacó. Aqui, sou fã de Machado de Assis de carteirinha mesmo. Para além dessas polêmicas, podemos focar também na obra strito senso do escritor, que é muito, muito boa mesmo.
Precisamos entender primeiro a diferença clássica pouca entendida e comentada entre cor, raça e etnia. Quando falamos em "raças" falamos de predominância do gen (linhagem padrão do DNA). Quando falamos de cor, falamos praticamente da cor da pele, entre fenótipo e biótipo. Isso aqui já desconstrói a ideia falseada do colorismo ideia de que grupos sofreriam mais por ser retintos, o que também pode ser verdade em termos de padrão estetico e moda. Mas não se converte em oportunidade para aqueles que ficam em uma espécie de "limbo racial".
O debate do colorismo é válido no mundo da estética e da mídia, é claro. Mas não pode ser confundido com esforço para valorizar aquilo que seria "externo" a nossa cultura e não interno.
Se o colorismo está certo e as pessoas pardas não são negras e não brancas. Qual é o local social de segurança da pessoa parda, como ela se classifica? Se ela se declara branca, participa dos jogos de meritocracia, a pessoa é acusada de trair as origens, se ela se declara negra, também não vai ser aceita. Não existe isso.
Querem falar mal de Freyre mas querem apontar o sofrimento pelo degradê da cor da pessoa, como se houvesse essa justaposição em todos os casos, embora claro que a mídia e o padrão sempre branco, sempre de loiros, seja cansativo sim, eu concordo.
A solução não é o cabo de guerra entre determinar a cor da pessoa. Existe a auto classificação para isto, e que tem que se apoiar no mapa genealógico da população brasileira de um lado, mas tem que estar entrelaçado com fatores de análise sócio econômico, senão vamos reproduzir as desigualdades que tanto Machado buscava condenar.
Estamos criando um futuro que afasta pessoas comuns da faculdade em prol de uma cultura de ter "apenas um amigo negro" para mostrar o quão deslocado você é. Esses dias uma garota parda foi impedida de fazer a matrícula na medicina exatamente por esse motivo. Esse problema não é apenas estético ou sobre afirmação de um indivíduo. Isso aqui fala sobre a diminuição das politicas de cotas.
Essa é a realidade. Esse apagamento também é histórico que envolve também os indígenas, o Brasil se misturou também o branco e o negro mas também se misturou o indígena, logo se a pessoa negra tem cabelos lisos pode ser por ser de família indígena (cafuza).
Isso não é analisado quando comissões de cotas nas universidades contam as vezes apenas com brancos que analisam se uma pessoa é "negra o suficiente" e aqui já temos um erro antológico pois automaticamente excluímos os descendentes de indígenas da possibilidade de cotas, quando na lei lhes é garantido tal direito.
Antes, o racismo obrigada a mascarar, a ter classificações intermediárias como "moreno-jambo", ou mesmo as clássicas, como caboclo ou cafuzo foram usados ao longo da história e substituídos por auto classificação e simplificação pela noção de cor (branco, amarelo e negro), mas muitos estudos por causa da urbanização perdem o fio da meada sobre a "cara" moderna do povo brasileiro. Acho que o que quero dizer é que todos tem a perder em termos de direitos, pois através da nossa configuração politica que o país desenvolveu uma cultura de direitos recente superior que muitos países.
Roberto da Matta (o odiado acadêmico que todos abordam como o cara do "jeitinho brasileiro"), também estudou e escrever sobre raça no Brasil. Em um dos seus artigos mais célebres, ele escreveu "Nem preto nem branco, muito pelo contrário", é o título de um capítulo e que aborda as relações de raça e a intimidade no Brasil dentro do livro "História da Vida Privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea.
Nesse livro, vemos uma rara defesa da categoria pardo/amarela, dizendo que em essência é o lugar da racialidade brasileira e que raça no Brasil envolveria análise de região, classe social e não apenas análise de raça.
É parte de uma ideia errada de que se colocamos similar a noção nazista de pureza. É aquela separação do "separados, porém iguais", logo se você é misturado, você é menor porque não pode ser classificado nem de um lado ou de outro. Mas a sociedade brasileira não é assim.
A sociedade brasileira foi construída em cima da miscigenação, para o bem ou para o mau. Machado de Assis nasceu em 1839, no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, filho de pais pobres e de origem humilde e mista. Mesmo assim, foi o grande gênio brasileiro e queria representar e criar em cima de uma nova sociedade e nação.
Um exemplo de autor silenciado por falar de miscigenação nos Estados Unidos foi o cineasta Oscar Micheaux, que fizemos já aqui no blog. Ele foi o primeiro cineasta negro e fazia um cinema que abordava também miscigenação e foi a resposta ao racismo de "Birth of a nation" foi o filme Within Our Gates. Mas sofreu de apagamento, e hoje poucos conhecem sobre a origem do cinema negro independente nos EUA. A atitude errada vem da importação da forma de militância das black elites, que passaram a buscar um "mundo a parte" também.
A disputa não é só “de aparência”, mas sobre o lugar da raça na história literária brasileira. Por muito tempo, críticos como José Veríssimo ou Silvio Romero exaltaram Machado como “universal”, sugerindo que sua obra não tinha marca racial, mas aqui está a questão.
Sílvio Romero quando estava atacado, também falava sobre a racialidade de Machado. Machado de Assis era complexo, campeão de xadrez, auto didata, conhecedor de várias línguas, epilético, gago e apontado também como uma espécie de moda que iria passar na época, que tinha José de Alencar como escritor acima de Machado de Assis.
Machado foi de um jovem idealista que escrevia estórias locais e mornas que adornavam com certa amargura a camisa de força do gênero romântico (que se consagrava e ganhava o público do folhetim (o avô das novelas modernas).
A novela moderna, fica no inglês "soap opera", traduzindo literalmente opera de sabonete. Porque os patrocinadores de novela são sempre perfumes e sabonetes. Isso mostra que os romances também traduzidos como "novels" passaram a ser a linguagem da modernidade, principalmente na América Latina por possuir as chamadas "línguas latinas românticas".
Isso fazia do público de Machado de Assis no XIX, primeiro as mulheres, e em seguida, pessoas mais pobres que o costume de se ler. Nesse sentido, Machado de Assis foi o primeiro escritor difícil (para poucos), mas também na sua época, vale dizer, era considerado ordinário, porém necessário, padrão, funcionário público de lealdade ímpar.
O lado funcionário de Machado é pouco conhecido. Funcionário do ministério da agricultura sempre ficava ao lado dos escravos e contra os senhores de fazenda. Sua experiência formal e brutalmente honesta é contada em Memorial de Aires.
Um dos argumentos de quem defende a ideia de Machado como estrategista é que ele não ignorava sua condição de homem mestiço, mas soube “escrever por dentro” do sistema literário dominado por brancos da elite imperial. Não levantar a bandeira racial seria uma tática de sobrevivência e ascensão social num Brasil escravocrata (a escravidão foi abolida apenas em 1888, um ano antes da sua morte).
Esse silêncio, portanto, não seria alienação, mas um gesto sofisticado de resistência velada. Sua ironia, o pessimismo e a desconfiança em relação ao poder podem ser lidos como reflexos de alguém que viveu na pele as contradições de um país que excluía os negros, mas queria se mostrar civilizado à Europa.
O caso da Caixa Econômica Federal (2011). Em 2011, a Caixa lançou um comercial para comemorar seus 150 anos. O vídeo mostrava figuras históricas ligadas à instituição, entre elas Machado de Assis. Machado de Assis depositava dinheiro e acreditava nas instituições bancárias brasileiras muito antes da estabilidade do nosso país.
O problema na época foi que o ator escolhido era um homem branco. Isso gerou polêmicas por parte do movimento negro, que reclamou que Machado de tinha origem negra. Em 2012, a Caixa lançou um outro comercial, agora colocando Machado como negro retinto, algo que sabemos que ele não era também. Até hoje não há a verdadeira representação de Machado. Se fizessem um filme biográfico também iam errar, aposto.
O problema está na distância da realidade factual e o projeto de país pensado de cima. Apontamos a raça alheia como quem se diz superior, como se fosse uma ordem transcendental e não entendemos que raças são diferenciadas de acordo com o mapa (região) do planeta, e claro imigração e guerras e religião. Já cor corresponde ao critério de auto identificação, baseado nas evidências de ancestralidade em até 5 gerações diretas.
Está é a regra oficial da relação identificação racial e não tem sido respeitada em todos os casos. Há casos de negação gritantes da racialidade alheia, como há também casos de fraude gritantes no sistema. É preciso fiscalizar com consciência de que não se pode virar o tribunal da inquisição das raças, precisa ter um horizonte sócio econômico de argumentação e análise. Afinal, raça e cor no Brasil entrelaça mais com fatores de classe e econômico que outros países.
Falo do radicalismo presente hoje em dia na nossa sociedade e que é reproduzido nos centros de poder como as universidades. Quer se condenar a malandragem sem se entender uma vírgula do debate sobre o jeitinho brasileiro e etnicidade, como se ainda estivéssemos na época de apontar inimigos públicos.
Um velho problema da sociologia acadêmica era igual no Brasil, estuda se os "problemas do Brasil" e se estudava a população negra junto. Quem mudou essa percepção com o feitiço do culturalismo foi Gilberto Freyre, que celebrou a herança negra e alemã com o mesmo entusiasmo e saiu do local de "problema" e passou a explicar a solução pela cultura.
A cultura e a opulência cultural foram vitórias do campo científico mas trouxe uma herança interpretativa de que é possível usar a cultura e falar de heranças positivas, mas isso é confundido segundo críticos de Freyre como propaganda pró colonização. Mas vale lembrar que as outras tendências apenas demonizava, colocava certa importante e maioria da população como um "problema", como algo externo.
Quem reparou foi o genial sociólogo Guerreiro Ramos as estruturas de "tags" que isolam os grupos censitários e sociais e impedem a liberdade criativa, ao focar no arquétipo, no preconceito, na figura conhecida. As pessoas são estimuladas a vender o seu estudo como uma expressão de um âmago pessoal, uma forma de talismã sagrado que revela tudo, seu signo, disposições identitárias e seu futuro astrológico.
Afinal, se o objetivo é estudar para aprimorar-se porque os temas de estudo lembram comerciais ensaiados e artificiais. É porque tem que encaixar nos padrões de publicação lá de fora.
Esse gesto abre espaço para pensar: quando representamos Machado como negro retinto, estamos reivindicando o escritor como patrimônio da negritude, mas também reescrevendo sua imagem pública para além das ambiguidades da mestiçagem.
No fundo, Machado é o escritor que encarna a contradição brasileira da mestiçagem: alguém que viveu como mulato em uma sociedade escravocrata, mas se tornou presidente da Academia Brasileira de Letras e maior nome da literatura nacional. Isso é mais do que uma polêmica.
Aqui com Machado, falamos dele para falar bem mais do que apenas esse "lugar de arquétipo". Guerreiro Ramos mesmo escrevia sobre organização burocrática do mundo do trabalho e tinha impressionante conhecimento sobre Hegel, Marx e todos os clássicos da sociologia. Dando um exemplo de sociologia consciente e fora da caixa.
Mas acho que já era hora de ver a defesa de uma postura centralista em um tema onde vejo todos errando ou por mais ou menos. Ninguém quer fazer o comercial da caixa com o "Machado real", queremos debater como um ring se ele era negro ou branco.
Concordo que retratar Machado como negro é menos grave do que retratar como branco, é algo que passa. Mas também simboliza sim um apagamento da história factual do nosso país, tão rica e única. Uma forma de brigar eternamente em picuinhas absurdas enquanto o próprio Machado era um escritor católico, muito da conciliação e dos questionamentos para além do óbvio militante.
Não podemos mais debater se Machado de Assis era negro ou branco e precisamos começar a entender ele ou tantos brasileiros como parte desse sistema clássico racial que reflete as verdadeiras estatísticas que dão maioria estatística para pardos e negros em conjunto. Mas a ideia de debater raças, etnias e religião é ainda mais complexa, pois envolve a análise de fenômenos como guerras, intercâmbios culturais, tricas comerciais imigrações forçadas ou voluntárias.
Por fim, argumento que a cota tem que ser ampliada sim, porém atrelada com informações da origem social e familiar do cotista. E continuo imaginando que Machado de Assis não teria vez se ele estivesse como aluno hoje em dia nas universidades. Estariam elas preparadas?
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