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Ainda Estou Aqui (2024): Um comovente retrato familiar que flutua entre a memória e o esquecimento sobre o período militar e a democracia


No início da década de 1970, o Brasil vivia o clima de repressão, junto com a euforia da Copa do Mundo. Os Paiva enfrentam o endurecimento da ditadura militar na própria pele. Rubens, Eunice e seus cinco filhos vivem à beira da praia em uma casa de portas abertas para os amigos. Um dia, Rubens Paiva é levado por militares à paisana e desaparece. Eunice vê sua busca pela verdade sobre o destino de seu marido se estender por décadas. Eunice vira advogada e filho Marcelo vira um famoso escritor, que escreveu o livro que dá nome ao filme  


Queria escrever antes de qualquer coisa o quanto é necessário uns 10 ou 20 filmes parecidos ou do mesmo calibre que Ainda Estou Aqui. É muito triste ver tão poucos bons filmes nacionais, ou a completa extinção das boas novelas. O livro de Rubens vai focar na vida deles em SP (depois do desaparecimento do pai), mas o filme sabe mostrar essa felicidade e opulência (contraditoriamente), da época da ditadura militar, apesar de toda repressão, o clima em 1970 era de Copa do Mundo, era os tempos de "Ame-o ou Deixo-o". 



O filme mostra essa ideia do álbum de família e das recordações familiares em meio a todos os conflitos e perseguições, a família Paiva se destacou por tentar manter a social democracia dos costumes acima da loucura dos tempos política. Uso da câmera pessoal, da própria família para registrar os momentos deles, a ideia dos álbuns de família, das lembranças familiares tem essa força extra no filme, mostra esse amor e esse cuidado entre os membros da família, especialmente com a chegada da doença da mãe, que no filme no fim da vida é interpretada pela mãe de Fernanda Torres, a imortal Fernanda Montenegro. 


Com sinceridade, Walter Salles ou Fernanda Torres não precisam de mais divulgação, Fernanda foi a atriz que mais citei no blog, por ter feito de dois filmes dela praticamente desconhecidos, um com o Antony Hopkins e o outro Inocência (adaptação de um livro do século XIX brasileiro que chegou até a influenciar o cinema de Scorsese), fiquei surpreendida com ela agora ganhando o Globo de Ouro (um momento histórico para nós brasileiros, foi a nossa primeira vez ganhando e não apenas indicados). Vou continuar torcendo no Oscar, plenamente consciente das injustiças históricas da academia, ou seja, a gente torce mesmo sem acreditar (no prêmio, no caso). 



Apesar de não precisar dizer, que em um filme onde o diretor é o grande Walter Salles, Fernanda que parecia nem querer fazer o filme inicialmente, foi a GRANDE coisa do filme, sua atuação segura tudo e combina com a visão de Rubens que mostrar o quanto a sua família se manteve pela aptidão e desenvoltura da mãe, que na ausência do pai se converteu de dona de casa que fazia preparava o whisky do marido em uma advogada de fama internacional. Apesar de sentir a distância da realidade de uma família rica, com seus amores, mestrado e doutorados, precisamos admitir a importância dessa temática que repercute até hoje em dia nos debates de política. 


A família Paiva não era comunista dos assaltos a bancos, não era a galera mais ideológica que sequestrava os embaixadores, eles apenas queriam a opulência do progressismo que viviam dentro do seio familiar e isso não foi respeitado e o pai de família foi retirado de maneira abrupta interrompendo essa vida perfeita que a família vivia. Legal do filme mostrar essa auto crítica, a família Paiva tentando viver a própria vida e curtir a vida, acabavam como o resto do povo brasileiro tentando ignorar os sinais de distopia real, da veraneio na esquina com tropas controlando tudo. 


 Como é difícil demais não ser fã da Fernanda Torres (a mulher que faz tudo que eu gosto de ver), simplesmente, não imaginava ver a "Vani" concorrendo ao Oscar. Mas aconteceu sociedade. Só disso já dá gosto, mas todos sabem da veia pesada de Humor da Fernanda Torres e isso mostra no filme apenas na ideia de que pode-se sorrir apesar de toda a tragédia, a ideia de continuar sorrindo e cuidando de quem você ama. Essa comoção está presente em uma atuação que demostra o drama sem o carácter de dramalhão, ou que questiona certo ideário de esquerda que acha que temos que ser tristes para ser sérios e sérios para ser dramáticos e profundos. 



Não esperava um filmão, apesar de tudo para ser bom, depois da pandemia, o cinema nacional praticamente parou de existir enquanto essa ideia de "temas nacionais" estava muito em baixa, depois de décadas do culturalismo nordestino ter guiado o cinema nacional por anos, com Rio de Janeiro e São Paulo focados em produções comerciais e um pouco entaladas para dizer a verdade, afinal de contas, apesar de toda a preparação e das figuras icônicas brasileiras envolvidas que não precisam de divulgação extra já. 


Mas esse filme foi diferente, ele teve uma preocupação com tudo, além de fotografia, com um roteiro aprimorada de uma dupla que já ganhou vários prêmios. Todos conhecem Terra estrangeira, Central do Brasil, Diários de Motocicleta (sobre Che Guevara), mas outra pessoa que virou um riot nos últimos tempos foi a repercussão da Fernanda Torres, apesar de filha, ela pareceu entrar na figura de drama de maneira perfeita exatamente por ser versada em uma outra tradição, em constituiu e estudou a Eunice de uma forma única. 



A parte do "nós vamos sorrir" foi sutil para demonstrar essa ideia que está no livro de militar na forma da sua vida civil, com a ideia do direito internacional usando a ideia de crime internacional de lesa pátria (no caso, a tortura) para invalidar parte do perdão civil na Nova República +(pós anos 1980) em relação aos torturadores da ditadura, buscando um princípio de jurisprudência que pudesse junto a justiça progressivamente buscar o começo das reparações contra os envolvidos, que puderam ser colocados como réu de maneira pelo menos simbólica quase 30 anos depois do desaparecimento e assassino do ex político e engenheiro. Eunice Paiva é a razão primordial do motivo que está levando a uma onda de "respeito" extra do filme. Essa senhora que teve Alzheimer na velhice, mas que antes foi advogada dos direitos indígenas, consultora da ONU e do Banco Mundial. 


A história dela sozinha já seria impressionante, mas tem esses detalhes fantasmagóricos que cercam a história. O livro do Marcelo pareceu bem familiar para mim, emocional sim, divertido ás vezes com a possibilidade de entrar no universo do dia-a-dia da clássica esquerda muito rica e cultural e de como ele sabe dar um tom de auto crítica de refletir sobre suas capacidades, mas também sobre raivas e incapacidades, como não saber lidar com problemas pequenos do dia-a-dia,. ou o gosto por determinadas músicas que acalmam as crianças e outras trivialidades no meio de tantas denúncias e provas sobre os desaparecidos. Vale lembrar que Bolsonaro cuspiu em um memorial sobre o Rubens Paiva, isso segundo o próprio filho, Marcelo. 



O livro foca nas memórias de quando eles se mudaram para São Paulo e o começo da carreira de advogada de Eunice, mas o filme sabe colocar a atmosfera do Rio de Janeiro e da casa deles original bem grande da época que eles moravam lá com o pai, e o filme sabe mostrar essa época e essa sensação de mudança muito bem.   


Essa ideia central da militância civil e não dogmática e o fato de que ela permaneceu durante muitos anos calada para seguir a vida da família foi impressionante, muitas pessoas teriam sucumbido e ela foi forte de uma maneira absurda em um momento de completo abandono de ausência do Estado Democrático de Direito. Essa força da mulher brasileira também está presente no filme que mostra uma resiliência absurda. 


O livro começa e comenta um estudo e uma ideia do filósofo francês Henri Bergson sobre Alzheimer e a ideia da memória ser atrelada a cadeias de eventos em movimento, ou seja, a memória que parece muitas vezes estática e imutável tem a capacidade de se modificar na forma como ela é "armazenada" em nossos cérebros, especialmente, quando chegamos na velhice e as áreas cerebrais passam a exibir cansaço, a doença que Eunice teve, Alzheimer gera essa falta de sequência nas sinapses cerebrais devido ao aparecimento de manchas que denotam a ausência de reconhecimento dessas áreas que são como "computadores" da nossa mente. 


O filme tem a preocupação de usar a descrição muito esclarecida no livro para elaborar uma comparação com um princípio sociológico ainda mais antigo, o princípio da memória coletiva e do esquecimento mediante a repetição, o esquecimento de uma mulher fantástica como a Eunice é o esquecimento que a nossa própria nação pode ter em relação aos horrores do período militar, época de batidas sem justificativas, de prisão sem mandado. É exatamente o que acontece com todo o conhecimento histórico ou sociológico, é passado adiante adiciona dando sempre algo a mais, mesmo que inconscientemente. 


Mesmo com toda razão que o filme possua, é difícil fazer as pessoas consumirem uma história tão triste, e que vai terminar com as resoluções em torno de seguir a vida sem a figura do pai, as pessoas que vivem vidas mais simples, tem  tendência de não gostar dos dramalhões, ainda mais quando é uma história sobre a elite (por mais que seja uma família de esquerda), o que pode demonstrar um pouco da hostilizada que o filme sofre, mas não é uma ficção, é uma história real e por isso que choca o nível do drama. Mas hoje em dia, pelo menos, ninguém tem coragem de defender os horrores da ditadura militar.


o filme me pareceu se preocupar com cada detalhe com esmero.  Não vemos uma adaptação literal das memórias do livro de Marcelo Rubens Paiva, o filho do desaparecido. Outra questão impressionante é a centralidade da figura da mãe, uma antiga dona de casa, mãe de 5 filhos, dona Eunice Paiva, que passou para depois ser até mesmo advogada do Sting no Brasil. 


O livro é bem interessante, acho que li no clima certo, descontraído e até meio de lado, já que poderia ser algo bem triste, fui com essa ideia, mas o livro foca na beleza do lado positivo das memórias da família e coloca dessa procura uma fonte infinita de inspiração.  No fim do Livro, vemos essa descrição dos documentos de inquirição, ao começar pela mudança nos anos 1990 com a chegada da nova Lei dos Desaparecidos, eles puderam finalmente ter a certidão de óbito de Rubens. 


A lei de 1995, lei 9.140, reconhece como mortas pessoas desaparecidas em contexto de participação em atividades políticas e dá outras providência como a possibilidade de indenização. Mesmo assim, vivemos como o livro fala o problema da corda flexível da Lei da Anistia, que perdoou o crime de vários torturadores. O uso dessa legislação internacional pôde questionar um pouco da ineficiência da Lei da Anistia, para que ela pudesse deixar de ser um salvaguarda para crimes contra a humanidade.



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