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Estação Liberdade (2013): Pérola desconhecida do cinema nacional faz uma viagem aos recantos sombrios da Liberdade



"Estação Liberdade" (2013) é uma obra que nos leva por uma jornada intrépida e visceral no coração pulsante do bairro da Liberdade, em São Paulo. Um épico que mergulha nas profundezas do submundo, trazendo à tona a história verídica de Hiroito, um nipo-brasileiro que vive uma vida comum no Brasil mas que recebe uma carta do Japão, fazendo-o questionar sua visão sobre o mundo e sobre si mesmo



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O roteiro de "Estação Liberdade" tece uma trama que oscila entre as sombras das vielas e o brilho neon das casas noturnas da São Paulo da década de 1940. Tsuyoshi Ihara, no papel de Hiroito, entrega uma performance envolvente, capturando a complexidade do personagem enquanto ele navega pelos dilemas morais e os perigos do submundo. Começamos com uma cena de uma catástrofe que se dá aparentemente no Japão, parecendo nos querer lembrar que muitos dos japoneses que vieram para o Brasil o fizeram sem opção. 



O filme explora a dualidade inerente à natureza humana. Hiroito, o protagonista, é apresentado como um personagem complexo. Isso pode ser interpretado como uma reflexão sobre a dualidade moral que todos enfrentam. Por exemplo, Hiroito tem um namorada/esposa que é branca, brasileira mas descendentes de italianos. Entretanto, além de trair ela a certa altura do filme, ele se excita por mulheres asiáticas, chegando até mesmo a se masturbar em casa após uma moça flertar com ele no metrô.  



Hiroito é um nipo-brasileiro que retorna ao Brasil após ser educado no Japão. Por esse fator, ele fica em um conflito de identidade cultural. Ele se vê dividido entre as duas culturas, a brasileira e a japonesa, tentando encontrar seu lugar em uma São Paulo cheia de tentações. 



Seguir sua própria cultura significa voltar ao Japão, a uma cultura mais tradicional e onde ele sempre vai ser visto como brasileiro. Já no Brasil, é explorado que só há disponível uma vulgarização da cultura japonesa que seja vendável. Há bares, restaurantes, lojas de mangás e prostíbulos nipônicos, mas nada de tradição. Já em relação a cultura brasileira, é confuso pois nossa própria cultura é uma incógnita. É portuguesa, africana ou indígena? Nisso o filme acaba colocando que ele não é muito aceito pois parece meio na sua, caladão, logo acham que ele é tímido. Isso fica claro na cena onde dois colegas de trabalho estão falando de mulheres, mas ele não participa do assunto, parecendo deslocado. 



Existe uma crítica social e histórica, explorando a criminalidade e as complexidades sociais na década de 1940 em São Paulo. A narrativa pode refletir as condições socioeconômicas da época e as tensões existentes na sociedade. De um lado, o Japão é extremamente fechado e exige uma certa abdicação da malandragem brasileira. Do outro, o Brasil te aceita, desde que você abdique da sua cultura tradicional e passe a gostar apenas do Brasil e sua ideia integracional. 



Por exemplo, em uma das cenas vemos uma formiga descer pela colher até uma xícara de açúcar. Depois, vimos que o protagonista fica de olho esticado para outras mulheres. E então vemos uma interação dele com sua namorada, logo em seguida, que ela lavou as formigas de sua mesa. Ou seja, ele é a formiga o açúcar são as tentações que ela afasta.



O título "Estação Liberdade" sugere uma busca pelo conceito de liberdade, mas de uma forma complexa. Pode-se argumentar que os personagens do filme estão todos em busca de liberdade, seja ela emocional, cultural ou social. Mas a Liberdade também é um bairro de São Paulo (já abordado aqui no blog algumas vezes). A Liberdade, aqui, pode ser tanto um lugar físico quanto um estado de espírito.



A ambientação do bairro da Liberdade possui uma metáfora urbana. A cidade é retratada como um labirinto de possibilidades e desafios, onde cada esquina esconde segredos e cada rua é um caminho para a redenção ou perdição. Ao mesmo tempo, há uma atmosfera fantasmagórica que reflete o fato da cultura e história do bairro da Liberdade está sendo apagado, em detrimento do que a cultura brasileira quer ou consegue entender da cultura japonesa. 



Por um lado, como vimos no filme Corações Sujos, o Brasil proibiu os japoneses de falarem o próprio idioma em território brasileiro pelo fato do Japão ter apoiado o Eixo na Segunda Guerra Mundial. Escolas em comunidades japonesas no Brasil foram fechadas, mas todos sabem que as escolas e investimento em educação sempre foram escassos no Brasil. Então não havia projeto integrador em alternativa a essas escolas fechadas. Além disso, o Brasil estava tomando partido em um conflito onde era secundário na disputa e onde o Japão não era seu inimigo direto. Disso, aos poucos fomos para o oposto, uma ideia de integração total entre a cultura japonesa e a brasileira.


A trajetória de Hiroito também pode ser vista como uma reflexão sobre o papel do destino e das escolhas na vida de uma pessoa. As decisões que ele toma ao longo do filme moldam seu destino, e a narrativa sugere que, em meio às circunstâncias, há sempre espaço para escolhas pessoais. Ou seja, que sempre estamos livre para sair da narrativa mas também para lidar com suas consequências. Como quando ele tenta ligar para sua namorada a noite toda e ela parece não atender. 



A forma como o filme usa a estética, a trilha sonora e a cinematografia possui uma forte plasticidade, que enche de visão artística a realidade, nos fazendo sentir que estamos de fato visitando a Liberdade. A atmosfera do filme é como uma dança entre o perigo, a sedução e a luta por estabelecimento e identificação com um o mundo. A direção de arte capta magistralmente a estética do contraste entre cenários históricos e modernos, transportando-nos para um mundo onde a linha entre vivências e expectativas, e o bairro da Liberdade é tanto o cenário quanto a prisão do protagonista.



"Estação Liberdade" é muito bom. Uma odisseia pelos recantos sombrios da Liberdade. O filme não apenas conta uma história, mas nos transporta para um momento e um lugar onde as fronteiras entre o bem e o mal são turvas. Uma obra-prima que deixa uma marca indelével na paisagem do cinema nacional, desafiando convenções e elevando o padrão para futuras produções nacionais que abordem nossas relações com Ásia e o Japão.





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