O Assassino (2023): A psicopatia da sociedade de especialistas e a "banalidade do mal" em trilher de David Fincher que é um dos mais vistos da Netflix
Um homem frio e calculista, que trabalha como hitman: um assassino profissional. Apesar de seu método rigoroso, ele comete um erro fatal, que coloca sua vida em risco. Buscando por redenção e vingança, ele passar a ter que usar suas habilidades para sobreviver. Sendo o mais novo filme de David Fincher, é baseado na aclamada HQ francesa Le Tueur
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"Assassino" de 2023 se caracteriza principalmente como uma grande crítica e questionamento a como os procedimentos metodológicos e de rotina são automaticamente tidos como "eficazes" e "científicos".
O que vemos ao longo de mais de um hora, são diversas formas de refletir a ideia da "ruptura de paradigma". Trata-se de uma cisão, de uma transformação na forma de compreender as coisas. A ruptura de um paradigma ocorre a partir da existência de um conjunto de problemas, cujas soluções já não se encontram no horizonte de determinado campo teórico, dando origem a anomalias ameaçadoras da construção científica. Um repensar sobre o assunto passa a ser requerido. Novos debates, novas idéias, articulações, buscas e reconstruções passam a acontecer a partir de novos fundamentos. Para entender mais sobre a ideia de ruptura de paradigma na ciência recomendo ler o seguinte artigo clicando aqui.
O ponto é que ao longo de toda a introdução do filme somos convencidos pelo protagonista de sua extrema eficiência por seu discurso refletir constantemente sua rotina através de regras rígidas de preparo. Isso é reforçado pela narrativa em over, que funciona como se estivéssemos ouvindo os pensamentos do personagem, similar aos nossos próprios pensamentos cotidianos.
Porém toda esse "regramento", acaba servindo de nada. Na hora do tiro de sniper decisivo, ele acaba se distraindo pela sensualidade da prostituta que está com seu alvo e acaba errando o tiro, acertando a mulher. Por acaso, Fincher coloca o erro para acontecer no momento exato onde o assassino acabava de ter um pensamento misógino.
A partir daqui, o filme explora os principais sentidos, significados e interpretações dos quadrinhos ao qual é baseado. A HQ busca fazer uma crítica ao sistema capitalista e à sociedade de consumo, que gera violência, desigualdade e alienação. O assassino é um personagem que representa a contradição entre a racionalidade e a emoção, entre a ética e a estética, entre o indivíduo e o coletivo. Ele vive da morte dos outros, mas que também busca um sentido para sua vida. Entretanto, ele se vê como um artista.
Essa cena parece retira de um quadro de Hopper |
Em outras palavras, podemos dizer que os quadrinhos se distingue por ser de esquerda, com ideias similares ao socialismo, entretanto com alguns aspectos anarquistas, como critica ao status quo e ao sistema. É impossível não lembrar de Clube da Luta, uma vez que os temas são parecidos e este livro foi adaptado pelo mesmo diretor que agora adapta o Assassino para as grandes telas.
A questão é que, ao mesmo tempo, Fincher faz uma revisão da HQ acrescentando certos tons da sua interpretação da trama, mas que mudam em muito o sentido da trama. Primeiro, ele dúvida muito do protagonista, colocando ele como um homem inseguro em sua masculinidade, onde vários dos procedimentos de assassino que ele reflete para poder matar suas vítimas, servem como uma forma de auto ajuda para ele.
Dentro dessas Fincher muda o sentido, pois como poderia uma mensagem de esquerda ter como seu protagonista um protagonista assassino e antissistema? Por isso, o sentido geral do seu filme é outro, buscando refletir os recursos e o poder dos poderosos do sistema em geral, inclusive na capacidade de reger as próprias ações e interesses do assassino.
Apesar de muitas vezes seu discurso se assemelhar a um psicopata, relativizamos isso de maneira geral por ele ter suas ações regidas pelo dinheiro. E como as pessoas são obrigadas de maneira geral a ter suas ações regidas pelo dinheiro na sociedade, relativiza-se a sua psicopatia assassina. Por outro lado, foi nisso exatamente que Fincher buscou focar, refletindo como a sociedade atual, por sempre buscar um especialista, relativiza suas tragédias.
O filme também propõe uma reflexão sobre a identidade, que é um tema recorrente na obra de Fincher. O assassino é um homem sem nome, sem passado, sem família, sem amigos. Ele é um homem que se define pelo seu trabalho, mas que também tenta escapar dele. Ele é um homem que se esconde atrás de máscaras, mas que também busca se revelar. Ele é um homem que se confronta com sua própria imagem, mas que também se transforma.
Na minha analise de Clube da Luta, eu decompus alguns dos aspectos do cinema de Fincher que se encaixam aqui com exatidão, uma vez que parece que o Assassino está querendo dar algumas respostas sobre a visão do diretor sobre os temas em comum. Naquela análise, eu disse "De uma maneira talvez didática demais, o filme nos leva a acompanhar através do ponto de vista do protagonista frustrado e errôneo, para canalizar todos os sentimentos negativos do leitor, apenas para no final operar o corte psicológico desses estímulos. É comum se sentir perdido e sem função na modernidade, mas usar isso como ritual de poder para conseguir de maneira anárquica a destruição da sociedade é exagerado (...) Entretanto, há obviamente uma identificação no caráter anarquista de sua visão de mundo, acreditando estar sendo niilista e critico ao capitalismo, quando na verdade está só falhando no traço escolhido entre gênero e proposta: rir do capitalismo atual e sua forma suave de estabelecer seu poder.", palavras que se encaixam perfeitamente para analisar O Assassino.
Em uma entrevista recente, o diretor do filme disse que o filme refletia como nos temos atuais vemos a "banalidade do mal". "A Banalidade do mal é um termo originalmente cunhado pela autora Hannah Arendt, no livro As Origens do Totalitarismo, para refletir que essa era a herança principal da segunda guerra; a banalização da violência e da maldade. Ou seja, seu filme busca obviamente estabelecer certa distância da visão procedimental, fria e profissional do assassino que é seu protagonista, onde apesar de principal, ele está longe de ser representado como um "herói", mas sim como estranho em muitos aspectos.
Após essa ruptura geral, há outras cenas que confirmam essa interpretação, como a parte onde o assassino deve se vestir de trabalhador para invadir um prédio.
A direção de Fincher, que cria uma atmosfera de tensão e mistério, utilizando uma fotografia sombria e uma trilha sonora envolvente. Por certas vezes, a fotografia assume um tom chapado que lembra muito a estética das HQs. A cena em que o assassino erra o tiro, sua direção chega ao auge, com a canção do The Smiths, "How Soon is Now", sendo intercalada pelos pensamentos neuróticos e procedimentais do atirador.
O roteiro, escrito por Fincher e Matz, o autor da HQ, é bem construído e mantém o espectador interessado na história, que se desenvolve em diferentes locais e tempos. O filme também conta com atuações convincentes dos protagonistas, especialmente de Michael Fassbender, que interpreta o assassino com frieza e complexidade.
O filme dialoga com a HQ original, mas também traz novos elementos e perspectivas. É um filme que desafia o espectador a acompanhar a jornada de um personagem complexo e ambíguo, que vive em um mundo cruel e caótico, questionando os limites da moralidade, da violência e da identidade a poder de elites sujas e sem escrúpulos.
Entretanto, várias diferenças devem ser consideradas. O filme escolheu 2023, enquanto a HQ se passa entre 1998 e 2014, acompanhando as mudanças políticas e sociais do mundo. Também o filme tem um elenco internacional, com atores de diferentes nacionalidades e sotaques, enquanto a HQ se concentra em personagens franceses e europeus.
O filme também introduz uma personagem feminina importante, Magdala (Sophie Charlotte), que é uma jornalista brasileira que se envolve com o assassino e o ajuda a descobrir sua origem. Na HQ, o assassino não tem nenhum interesse amoroso e se mantém distante das mulheres.
Alguns nomes e características dos personagens secundários foram alteradas, como o advogado (Charles Parnell), a especialista (Tilda Swinton) e o bruto (Sala Baker). Na HQ, eles são chamados de Mariano, Haywood e o cubano, respectivamente.
O filme tem um final diferente da HQ, que deixa em aberto a possibilidade de uma continuação. No filme, o assassino poupa a vida de Claybourne (Arliss Howard), o cliente que o contratou e depois tentou matá-lo, mas o ameaça caso ele volte a persegui-lo. Na HQ, o assassino mata Claybourne e todos os seus associados, mas é ferido gravemente e fica à beira da morte. Isso acontece pelo fato de Fincher querer transformar O Assassino em uma série de filmes, onde final em aberto para o filme é para deixar espaço para sequência.
Entretanto, de maneira geral, o filme não tem agradado o público como Clube da Luta agradou. Como notei naquela análise, Clube da Luta buscou cativar um público mais geral para dançar a dança que Fincher queria para divulgar o filme. Aqui, ele fez o contrário: extirpou o mesmo público que cativou com Clube da Luta, buscando dar uma estética mais realista e cotidiana a trama.
Mas afinal, o filme é bom? Eu sim, é bom. Isso porque o filme entrega aquilo a que se propõe: uma direção precisa, reflexiva e primorosa, que reflete em sua forma a mensagem que quer passar com a trama. O final e as conclusões são, de fato, fracas, deixando a sensação que fomos enganados por mecanismos de enunciação que nos levam a resoluções simples. Acredito que esta é parte da ironia do filme, tentando ser cômico em seus desfechos ao invés de trágico. Entretanto, para quem considera necessário que o filme tivesse uma mensagem final e uma moral mais decisiva, pode se frustrar. Afinal, como eu disse, a estrutura do filme é para gerar uma franquia, deixando o final como provisório mesmo.
No fim dizer que o filme é mediano ou ruim é injusto. Ele é um pouco melhor do que a média do que tem saído. Mas de fato deixa a desejar na questão de "entregar" algo. Entretanto, é bem dirigido, bem atuado e logo vale a pena, só está fora do nosso radar que atualmente filmes bons podem ser tão simples. Acho que vamos ter que nos acostumar com isso...
História e bastidores do filme
Em novembro de 2007, foi relatado que David Fincher estaria dirigindo uma adaptação da história em quadrinhos francesa de Matz. A fotografia principal começou em novembro de 2021 em Paris. Continuou na República Dominicana em dezembro de 2021 e depois mudou-se para Nova Orleans no final daquele mês. Mudou-se novamente para Chicago em fevereiro de 2022, e depois para St. Charles, Illinois (dobrando para o subúrbio de Beacon, Nova York), em março de 2022, por dez dias, terminando no final daquele mês.
Em fevereiro de 2023, foi noticiado que Trent Reznor, do Nine Inch Nails, e Atticus Ross estavam compondo para o filme. Foi confirmado em setembro de 2023 que a trilha sonora contaria principalmente com músicas da banda de rock inglesa The Smiths.
O filme atraiu comparações com o filme de 1967 Le Samouraï.
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