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Missa do Galo (1982): Conto clássico de Machado de Assis é adaptado em curta de Nelson Pereira dos Santos com final surpreendente

 

Conto clássico de Machado de Assis, publicado em 1899, ganhou curta em 1982, como parte de um projeto chamado "Contos Brasileiros", série de televisão pela antiga Embrafilme. Foi restaurado pela LABO CINE, com financiamento do Petrobrás Cultural. Conceição é uma mulher enganada constantemente pelo marido, Meneses, e que certa noite, passa a conversar com Nogueira, um rapaz muito jovem o qual Meneses ajuda nos estudos. Ele resolve se valer de um exemplar de "Os Três Mosqueteiros", enquanto espera tarde da noite o início da missa do galo


Assista o filme no final do artigo


Uma das emoções mais intensas oriundas da leitura do universo machadiano é a sensação de ironia transcendental e o cinismo de seus personagens, ambientados no Rio de Janeiro, uma terra de contradições sem fim e da ignorância cultivada como personalidade normativa, nas palavras de um professor de Yale, Machado foi o primeiro dos autores modernos a usar um certo senso de "multimídia" nos seus personagens e ambientações. No conto, "ir ao teatro" significa literalmente ir ao puteiro (ou ir encontrar uma amante), uma brincadeira que no Brasil a ideia do teatro ficou restrito aos membros das classes mais abastadas e que nunca realmente se popularizou. Por isso que o primeiro marido de Conceição não a levava ao teatro. 

Pensando no curta, temos o trabalho de fotografia de Walter Carvalho, o que torna o filme épico também por manter os ambientes, jogos de luz e sombra que estão presentes no conto original. Também ser um curta ajuda a resumir a história no fato mais importante do livro, que é a noite de natal.



Quem era Conceição? Uma santa, nas palavras do marido, que a torturava com uma rotina de traições e humilhações todas feitas por detrás dos panos para ninguém fofocar. Segundo a narração de seu primeiro marido, o Meneses, ela não era feia, mas como não sorria nunca os seus traços que seriam bonitos ficam feios. Ele diz principalmente por ela não sorrir nunca, por achar coisa de "mulher vulgar". 



Naquela época também, não haviam traduções, as óperas e espetáculos eram baseadas em peças no idioma original, ou seja, se você não soubesse o idioma estaria indo lá apenas para cenografia, como qualquer festa apenas do clube da elite. Machado sabia que a cobrança de sua estilística no fim pedia um leitor ávido por referências semióticas que realmente nos lembram do tipo de emoção narrativa do cinema. Literalmente, ir no teatro era ir a esbórnia (no puteiro mesmo), porque realmente ninguém ia para além da fachada. 

Em termos técnicos, a simplicidade da leitura de Nelson Pereira dos Santos tornou o conto bem vendável e didático para todos. Ou seja, ele mudou um pouco o final dando sua opinião para ressaltar um eulírico ao lugar do outro. Aqui vemos que o diretor se identifica com o jovem que aprecia a vida alheia como uma inspiração literária para suas estórias, por isso que ele observa de fora no fim quando vem a comprovação da infidelidade de Conceição (que era uma santa) nas palavras do primeiro marido.



A crítica à hipocrisia e à moralidade da sociedade brasileira do século XIX, que valorizava o casamento como uma instituição sagrada e exigia a fidelidade e a submissão da mulher ao marido. O conto/filme mostra como Meneses traía descaradamente sua esposa com uma amante, sem que ninguém o repreendesse ou o punisse por isso. Já Conceição, que era uma mulher virtuosa e resignada, sofria em silêncio e era vista com desconfiança e censura por ter uma conversa íntima com um homem mais novo. Mas a crítica que o conto e o curta fazem juntos é que por fim, Conceição nunca quis mudar o seu destino, era ela mesma um produto de seu tempo, sentia raiva das mucamas, das senhoras sem reputação, da mãe, bem de tudo. 



No início do livro, quando o marido dela vai se encontrar com as amantes, as mulheres também eram distantes, uma delas se chamava "pastora", parecendo uma brincadeira sobre ter uma esposa católica e uma amante protestante, mas isso é somente no início da história. Meneses, um verdadeiro safado que se julgava "homem como qualquer outro" morreu de uma doença bem típica da época, a apoplexia, uma espécie de hemorragia e infarto, uma síndrome neurológica, um acidental vasculhar cerebral nas palavras técnicas. Logo quem o substitui é o mesmo cara que está ali desde a primeira cena do curta. 


Outra cena engraçada é o jovem rapaz pedindo para ir no teatro, que é um pouco diferente do conto original, onde o rapaz apenas pede um pouco para ir, no curta, ele implora para ir junto. Como se fosse aquela metáfora da "primeira noite de um homem" no puteiro. Outra mudança é que ela seduz o cara ao estilo "miss Robison" como se soubesse exatamente o que estava fazendo, diferente do conto, que deixa essa "intenção" mais no ar, já que para todos os efeitos, "ela era uma santa". No conto tem 17, mas no curta tem 20, mas que tem uma atuação puxada para bem infantil, como se ele tivesse a maturidade de 15 anos, quando no conto ele parecia mais maduro, mas não na opinião de Meneses, que o via como "um possível filho para Conceição". 



Dom Casmurro é mais claro no ângulo de crítica ao homem carioca padrão, branco e católico. O mesmo cara boboca que baba no tipo de sedução a la moreninha d(o romantismo clássico), da moça levemente espevitada, na crítica realista de Machado com Capitu em Dom Casmurro, a espevitada suscitava um paradigma sinistro, seria seu filho era na verdade filho de seu amigo? Mas na verdade, Bentinho era tão babaca, que você como leitor QUER que Capitu traia, já que você acredita zero nas paranoias de Bentinho. Na visão de Machado, o homem "padrão" que se preocupa muito com a moralidade da mulher e que separa, a mulher para ter relações, e a mulher para casar, e nessa crítica machadiana sobre a psique carioca, elas não são a mesma mulher! Logo, a mulher tida como "santa" não pode continuar sendo considerada santa, porque segundo Machado, é ser humano como qualquer outro.


A Missa do Galo possui aquele caráter transcendental, onde a ambiguidade é a maior guia, dependendo da sua opinião, ideologia, nascimento ou credo, você pode abertamente ver buracos e problemas. Ou seja, são livros que são amplamente debatidos nas altas rodas acadêmicas, quando Machado nunca fez faculdade, por exemplo. Estudou praticamente por si, isso não o impediu de ser o melhor intérprete de história do Brasil e de realmente traduzir livros de história (se tornando assim um historiador empírico).  


O filme mostra algumas cenas do marido de Conceição, Meneses, saindo para encontrar uma de suas amantes. O filme mostra algumas cenas do caminho de fora da casa e na missa, o que não ocorre no conto, ou seja, o título é uma falsa premissa, uma brincadeira com o fato da missa ser um pouco depois da ceia de natal acontece a meia noite. O que vale dizer que quando Nogueira estava na casa lendo "Os Três Mosqueteiros", enquanto Conceição lembrava como na sua infância e fazia escola católica, como era paquerar em Paquetá e outros jogos de feminilidade que Machado sabe escrever como ninguém


Podemos já falar do final, já que é um curta, e você vê de uma vez. O fim do conto da perspectiva de Nelson Pereira é um pouco diferente do livro. No conto original, o fato do primeiro marido morrer e ser substituído pelo mesmo cara que está ali na mesa de jantar de natal (um funcionário dele). Na visão do curta, essa visão fatalista de Machado sugere que se Conceição não traiu do rapaz, ela já traia antes com ele, como foi o jeito que o rapaz viu a situação quando saiu da casa no dia seguinte. 



Ou seja, o primeiro marido de Conceição, o pulador de cerca Meneses colocou um "bom rapaz" na sua descrição para dentro de casa. O filme também mostra aquela parte dos quadros de Cleópatra, com Conceição ajeitando a métrica na decoração para não ficar o quadro torto, quando no livro Conceição odeia os quadros, acha eles exemplos de "mulheres vulgares". No livro e no filme há essa troca de diálogos, Nogueira e Conceição na noite da Missa do Galo conversam sobre Paquetá, e ele fala sobre o amor que tem a literatura. Uma diferença primordial é no tom da história, Machado era um baita realista, mas o tom jocoso em relação aos personagem, mais "francês" é dado por Nelson Pereira. 



 Já que no livro há uma preservação pela possibilidade de impressão múltipla e variada da memória, um evento ás vezes pode então ser narrado por diferentes pontos de vista, como também pode ser lembrado de maneira singular. No curta de maneira diferente, há um fatalismo ainda maior, já que na impressão de leitor de Nelson, Conceição não era santa de nada com coisa nenhuma, ele quase "direciona o ódio" em relação ao personagem da mulher, e não o cinismo absurdo de "hárem (com amantes e mucamas)" dos homens médios da sociedade carioca da época. Essa é a principal diferença, Machado era mais "feminista" por assim dizer do que Nelson Pereira, que foca na óbvia e inevitável lascívia sexual feminina. 


A beleza do conto original é focar da perspectiva do clássico aos poucos com a impressão se desfazer em um tom que desafia as primeiras impressões. Então aqui temos um problema, já que o principal público consumidor da obra de Machado na época ser de mulheres (a era das novelas começou a mania de publicação de folhetins em jornais, muito antes de virarem livros), então ele sabia que seriam elas suas verdadeiras críticas. 


Vemos como Machado era original de verdade, por ser mais antigo e mais "amigo das mulheres" por assim dizer. Outra crítica que posso fazer ao curta é que mostrar as 'mucamas sorridentes' é um pouco de desrespeito pensando que quem faz essa crítica é um homem branco, já que no conto original, essa crítica é um detalhe crítico importante como parte da crítica aos homens 


A mensagem original do conto era uma crítica brutal a hipocrisia das instituições e a moralidade brasileira no fim do século XIX. Retratando 1850, algum tempo antes da publicação na íntegra em 1899. A mesma ambiguidade de Passagem para a Índia há nessa tensão entre Conceição e Nogueira, além da pergunta sobre o envolvimento dos dois na noite de natal, há uma pergunta se a ligação entre eles foi sincera, ou apenas vingança ou situacionismo, já que Conceição era reprimida e parecia estar satisfeita com sua condição de submissão, diferente de sua mãe, a sogra de Meneses, que fala para ela que ela é boba por aceitar tudo como se fosse nada do marido. 


No conto, a vida dela muda pouco, até porque toda a movimentação na vida de uma mulher naquela época se baseada no casamento, no clientelismo que o casamento dava. Tanto que depois descobrimos que Meneses só tinha emprego público por causa do clientelismo do padrinho político senador de Conceição. ou seja, as mulheres eram passadas como propriedades eram passadas, se você tentasse sair desse esquema, você saia da bela sociedade carioca. 



A ambiguidade e a complexidade das relações humanas, especialmente as amorosas e as conjugais. O conto/filme explora os sentimentos e os pensamentos de Conceição e Nogueira, que se encontram em uma situação de tensão psicológica e sexual, sem revelar claramente suas intenções e motivações. O leitor/espectador fica na dúvida se houve ou não um envolvimento entre eles, se eles se amavam ou não, se eles eram sinceros ou não.


Machado era, acima de tudo, um conhecedor da alma do Rio de Janeiro, de suas hipocrisias, instituições de faz de conta. O incrível do conto é ver como que hábitos que eram considerados normais, tais como a escravidão, geraram contradições na tentativa de se construir uma ideia de res  pública  parecida com os europeus. O que mascarava costumes bizarros, essa mistura de social democracia e escravidão que Machado demonstra com sua descrição precisa de objetos e cenários que capturaram o imaginário da época no Rio. 



Assista ao filme aqui:



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