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A Febre (2019): A realidade atual dos índios brasileiros e a difícil noção de pertencimento entre a natureza e a cidade


Este artigo foi escrito por Matheus Bastos e Regina Guedes

Dirigido por Maya Da-Rin. O filme é ambientado em Manaus, Brasil, e conta a história de Justino (Regis Myrupu), um indígena que trabalha como segurança do porto. Ele é da etnia Desana e fala a língua Tukano. Só que enquanto sua filha é aprovada para estudar medicina em Brasília (na UNB), ele é dominado por uma febre misteriosa que a filha Vanessa tenta tratar. O filme aborda questões como identidade, cultura e a relação entre os povos indígenas e a sociedade moderna.




No filme, o homem indígena, o Justino, é pai de uma garota que é enfermeira e que fez vestibular para medicina e que acaba passando, causando grande orgulho no pai. O filme indaga sobre o lugar do índio na sociedade, sobre ele ter que ter uma profissão neutra e cansativa como ser guarda do porto, e que precisa conviver com pessoas racistas sem nenhuma possibilidade de reclamação, porque qualquer alteração de personalidade é anotada, analisada e punida, por isso que ele recusa ver o psicólogo "indicado" pela moça do RH. 

Em uma das cenas, ele volta do trabalho, pega a condução que o leva de volta para sua casa (a floresta, essa ideia de quem mora longe dos centros é indígena) e compra um saco de cimento para aumentar sua casa que custava 25 reais. 


A cineasta é A Febre 2019 é um filme brasileiro de 2019, dirigido por Maya Da-Rin, filha da diretora Sandra Werneck, que fez Cazuza O tempo não para, e também "Amores Possíveis" (da importante família Werneck e Lacerda,e também tetraneta do Barão de Paty dos Alferes). Para alguém com um histórico de família tão pesado assim, é compreensível que a moça se identifique com viés de esquerda, talvez o filme tinha que ser mais de esquerda ainda por isso. Deixando por fim uma sensação de derrotismo da falta de integração real na sociedade, fica aquela de "nós" e "eles". 




É simples entender o filme, para morar na cidade é preciso trabalhar, pois não tem alimentos para caçar na natureza, mas isso te prende a uma rotina de trabalho com pessoas que te odeiam e armam contra você o tempo todo, e como seu emprego é neutro, nada pode ser comentado ou falado, porque a luta indígena acaba sendo uma luta também pelo respeito a comunidade de valores indígenas também, e não tem como "ensinar um racista", existe apenas a posição de ir embora e ser demitido. 

Essa febre misteriosa que a filha tenta tratar, porém, ele não quer o remédio por acreditar que "afina o sangue" remédios de farmácia, mas aceita quando a filha insiste e fala que é só dipirona e que todo mundo usa (o que é interessante porque é um remédio proibido nos Estados Unidos), o curioso é que ele está certo em duvidar do remédio, pois "afinar sangue" é um dos efeitos chamados formalmente de agranulocitose, que diminui a coagulação das células de defesa do organismo, ou seja, ele sabia disso sem ser da área da saúde (saber popular). 




Quando ele volta para sua região, pega um cacho de banana e pendura e passeia no barco é uma sequência de filmagem muito bonita e não vista em todo filme, a luz e posição da câmera conversa com a natureza e as luzes sem nunca quebrar a barreira das costas do ator, criando a sensação de realmente serem os olhos do homem a perspectiva do filme e da câmara, é uma sequência toda muito bem filmada e bem pensada.  


Uma das reflexões do filme é que ele é todo feito em língua local indígena (o tukano, uma "língua dos pássaros"), até mesmo no culto feito na aldeia, era feito em língua local. Praticamente metade do filme não é falado em português, dando essa ideia de entrar em uma comunidade cultural própria. 

No filme, em uma das cenas, o irmão vem para jantar e comentam sobre a conquista, primeiro, eles acharam que se era notícia sobre uma jovem, era bebê e casamento, a notícia era na verdade que ela tinha passado no vestibular para prestigiada Universidade de Brasília, e aí não é muito comemorado, e eles comentam sobre ser difícil morar em Brasília, e o pai defende a filha dizendo que ela sempre trabalhou muito e por isso pode ir. 




Mas tudo isso é muito suave, e todo mundo convive muito bem, essa realidade das expectativas, dos ambientes, os hábitos de comida e casa é impressionante no filme e lembra propostas antigas de cinema de simplificação e cenário como o Dogma 95.  A filha da história simboliza a ascensão social dos governos petistas que se traduziu em uma política massiva de inclusão no ensino superior. 


O ponto inflexão do filme acontece lá para depois da metade do filme. Quando o Justino está fazendo mais uma ronda pelo porto e percebe uma movimentação estranha no mato. Ele vai até lá e no calor da reação atira, para ver que seu alvo era um lobo selvagem. Na cultura indígena matar animais para sobreviver e comer é justificado, mas como um dos personagens falará depois, para os índios os animais são como pessoas, entidades. Justino percebe aqui que seu trabalho estava o corrompendo e parece começar desde aqui planejar sua partida.


O debate do filme está muito atual pensando em como o STF votou contra o pedido que queria tornar as terras indígenas que passaram a fazer parte da constituição como um marco temporal definido, ou seja, tirando o direito adquirido constitucional aos povos originais e começando uma forma de cálculo e argumento racista que diz que "os índios não são mais índios" e por isso poderiam perder suas terras, ou porque ganharam algum dinheiro, ou fizeram faculdade, rádio, cinema, ou por ter um "emprego meio de direita" como de guarda de porto.



Isso se encaixa no filme, em uma das cenas, o colega racista segurança dele comenta que na fazenda onde ele trabalhava antes "tinha que lidar" com índios brabos, selvagens, segundo ele, "índios de verdade", e comenta que "todos os daqui já foram amansados" em referência a eles terem o mesmo emprego. 

No fim do filme a mensagem é positiva, mas não evolucionista e eufórica, e em termos de linguagem cinematográfica, estamos acostumados com a mensagem evolucionista, linear, americana, trajetória do herói, inicio, meio e fim, mas a vida da maioria das pessoas não é assim, o que gera nas pessoas influenciáveis uma vontade de ter tragédias e grande alavancas de história como nos filmes, somos viciados em nossas vidas pessoas a querer imitar a lógica narrativa de um filme, tal qual, estudar para um concurso, ou ir entregar currículos, são jogos de valor de mérito e merecimento criadas pressupondo um "grande irmão" cidadão modelo que está assistindo tudo e regulando em torno de um comportamento padrão.  


No fim, temos uma inversão da tradicional ideia de progresso, ele trabalhou a vida inteira em um emprego mecânico de guarda para conseguir dar condições para a filha estudar e isso deu certo, já que a garota entrou para o ramo da saúde, que é exatamente o que ele não está conseguindo manter mais porque como já não precisa criar mais a filha e gastar exatamente com ela, ele poderia ir embora do emprego e voltar para a bonita comunidade indígena. 

O irmão dele comentou sobre como que para os brasileiros indígenas, os animais tinham um sistema de código igual dos seres humanos, e que eles se comunicavam, sentiam e produziam comunicação como nós e que tinham sentimentos iguais aos nossos, uma reflexão bem ambientalista para os tempos modernos.  

Como eles tinham tudo (produtos de mercado) na mesa, ele disse que tinha sim, mas porque tinha que trabalhar, já que para morar na cidade a necessidade é trabalhar, e isso resulta na febre, um estado febril de perceber a obrigatoriedade e os desafios do vínculo com o mundo urbano (dos brancos e racistas sem geral) e da volta para a casa no meio para pessoas que são parte de sua comunidade cultural e linguística. 

Aqui, não tem noção de sucesso, certo ou errado, e nem mesmo a punição, dor, culpa e tragédia. As tradições e elementos culturais são debatidos pelos próprios brasileiros ali e indígenas e e funde o português dos alimentos com o sonoro idioma falado pelos locais. Em resposta, o pai da garota diz que pelo menos quando se vive comprometido em caçar e pescar é possível viver livre e longe da exploração laboral. 






História e produção do filme 


A Febre é uma co-produção entre o Brasil (Tamanduá Vermelho e Enquadramento Produções), França (Still Moving) e Alemanha (Komplizen Film), produzida por Maya Da-Rin, Leonardo Mecchi e Juliette Lepoudre e co-produzida por Pierre Menahem, Janine Jackowski e Jonas Dornbach. O projeto participou da residência de roteiro Cinéfondation do Festival de Cannes e dos laboratóris Script&Pitch e FrameWork promovidos pelo TorinoFilmLab. 

Foi rodado na cidade e zona metropolitana de Manaus, durante 7 semanas e meia, entre os meses de abril e junho de 2018. Sua equipe e elenco são majoritariamente formados por nomes locais amazonenses.

Filme reflete os debates atuais em relação aos comunidades indígenas e o legado de seus tradições e valores, que não são exatamente como as pessoas esperam ou imaginam pelo arquétipo ou falta de informação sobre os povos originários resulta em debates que reduzem ou questionam um perfil idealizado do que seria o índio brasileiro. Tem sempre essa ideia do Levi Strauss dos "Tristes Trópicos", se observamos que a maioria das críticas e análises sobre o filme abstraíram o gênero de drama, como se fosse "uma coisa triste" por assim dizer. Isso também faz parte do preconceito contra a vida real retratada no audiovisual. 




Na verdade, o grande acerto do filme foi em buscar nas raízes locais, com atores locais para abordar a vida do indígena e brasileiro. Nesse sentido, precisamos um pouco da antropologia das culturas de Geetz e a noção de saberes locais e teia cultural para entender até mesmo como nós assistimos um filme e colocamos um julgamento de valor grego, narrativo, que segue 12 passos óbvios e se o filme sair dessa métrica, ele é automaticamente triste. 

O filme poderia retratar mais temas positivos, mas essencialmente, aborda questões importantes de paradigmas de emprego, geração e família. Uma das questões mais modernas do filme é o desejo da filha em ser médica, ela consegue passar para uma das universidades mais prestigiadas do Brasil, na capital federal, sendo um símbolo de políticas mais recentes nas universidades brasileiras, como também entende a ideia de pertencimento como uma ligação com a terra e com os costumes, que são misturadas até mesmo com protestantismo, é uma reflexão profunda que reflete até mesmo as escolhas políticas do povo amazonense e seus deslocamentos. 


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