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Amores Possíveis (2001): Representando bem romance gay e dilemas das fases da vida, filme tem Niterói como pano de fundo



Ambientado na cidade de Niterói, filme conta a história de Carlos, que marcou com Luiza um encontro no cinema enquanto os dois cursavam a faculdade. Ela nunca apareceu. Quinze anos depois, conhecemos três possíveis continuações. Na primeira, Carlos está aprisionado em um casamento monótono e reencontra Luiza, sua grande paixão. Na segunda, Carlos casou com Luiza, teve um filho, mas descobriu estar apaixonado por outro homem. Na terceira, vivendo na barra da saia da mãe, Carlos nunca encontrou seu caminho. Ao reencontrar Luiza, uma artista plástica bem sucedida, as coisas podem mudar. A direção de fotografia é de Walter Carvalho, música de Chico Buarque e o roteiro é de Paulo Halm. Premiado no Festival de Sundance na categoria Prêmio de Cinema da América Latina


História por trás do filme 


Em 1997 a cineasta Sandra Werneck lançou “Pequeno dicionário amoroso”, uma delicada comédia romântica que investigava as vicissitudes do amor e contava com a sorte de ter a excelente Andréa Beltrão como protagonista feminina. Quatro anos depois, ela voltou a falar da complexidade dos relacionamentos em “Amores Possíveis”, novamente uma comédia romântica. 


Ao brincar com as possibilidades que o destino apresenta na vida das pessoas, a diretora apresenta a seu público um filme simpático e surpreendente.





Segundo Werneck: “Todos os meus filmes com crianças e adolescentes são uma forma de entender como aquelas vidas estavam em risco. Eu penso muito no futuro do país e sempre me interessei muito por conhecer esses jovens em situação de risco. Sempre me mobiliza muito entender o motivo que leva uma criança de 12 anos a precisar trabalhar no Brasil. Quando me envolvo com esses personagens existe algo de emocional, na convivência. Tenho um trabalho longo de pesquisa e aproximação. Depois de fazer o filme, eu entendi o motivo de elas ficarem grávidas cedo. A função dessas meninas é cuidar dos irmãos. Com isso, elas acham que, sendo mães na comunidade, passarão a ter um status muito maior. Elas passam a ter algo delas, um filho”.



Do Rio de Janeiro, a diretora Sandra Werneck é neta do ex-deputado federal Frederico Virmond de Lacerda Werneck e tetraneta do Barão de Paty dos Alferes, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck. Isso explica tanto o local da onde ela fala e os cenários e personagens que sua trama apresenta: são pessoas da elite. 




Seu filme de maior sucesso foi Cazuza - O Tempo Não Para. Seu avô, Frederico Virmond de Lacerda Werneck, foi um agrônomo, fazendeiro, jornalista e político brasileiro. Filho de Francisco Peixoto de Lacerda Werneck e Epônima Virmond, era bisneto dos Barões do Pati do Alferes. Passou depois para a carreira burocrática, quando foi nomeado Auxiliar Técnico da Secretária de Agricultura Indústria e Comércio do Estado do Paraná. Em seguida assumiu a direção do Comissariado de Terras de Reserva, onde realizou notáveis trabalhos de construção de pontes e estradas, que muito facilitaram o desenvolvimento e progresso daquele município paranaense.


Foi vereador em Guarapuava e era membro do Partido Socialista Brasileiro, pelo qual foi eleito com 38.509 votos para deputado federal constituinte em 1934. Entretanto, em razão do distanciamento do programa do partido, passou para o Partido Trabalhista de São Paulo, do qual foi um dos membros fundadores. 


Na Constituinte, foi o autor da primeira Lei do Salário Mínimo e teve seu mandato estendido até o ano de 1935.




Locações e curiosidades


Tendo nascido e crescido em Niterói, acredito que posso dizer onde foram filmadas algumas cenas, permitindo para os mais curiosos e cinéfilos talvez visitar esses lugares um dia, já que vários deles são públicos. Por exemplo, as cenas internas do café da manhã, parecem filmadas no Solar do Jambeiro.




Já uma das cenas onde Carolina Ferraz, de vestido verde, encontra com Benício, foi filmada no Museu de Arte Popular Janete Costa, recentemente reformado.





Uma foto atual do museu para comparar:




O início, no cinema, parece ter sido filmado no prédio do curso de direito da UFF, o que faz sentido já que o personagem Carlos cursa direito e a UFF é a principal faculdade da cidade, apesar de não mencionada no filme.


Em outra cena, eles se encontram no Ingá, ladeira de subida para o MAC, Museu de Arte Contemporânea, projetado por Oscar Niemeyer. 




Uma outra parece ter sido rodada no alto do Plazza Shopping, no estacionamento.




Além de uma cena que parece ter sido filmada na praia de Itacoatiara. 




Por último, a cena que está na capa deste artigo, foi filmada na ponta da Ilha de Boa Viagem, onde além de ver a Praia da Boa Viagem, dá pra ver o museu MAC, que de longe é o maior cartão postal da cidade de Niterói.


As cenas do porto, são filmadas no Rio e há cenas filmadas na Mureta da Urca. 





Há cenas na trilha da Floresta da Tijuca e é sempre estranho ver Elevado da Perimetral e ver que ele não existe mais:






Leitura do filme

Antes de qualquer coisa, é preciso esclarecer um fator sobre o filme: ele é completamente um filme sobre Niterói, minha cidade natal e onde moro até hoje. Para aqueles que não possuem familiaridade pode parecer estranho o filme e sua temática. Mas para quem é da cidade, fica claro como o romance é impactado pelas estruturas, fases da vida e escolhas.


Além de representar bem o ar de "cidade dormitório", o filme tem uma temática que considero pioneira, que é debater relacionamentos, hetero e homossexuais, de maneira clara aberta e no mesmo nível. É claro que na época, já havia o seriado Sex and the City, e o filme é comparado em sua temática com o filme De Caso com o Acaso (Sliding Doors, 1998), mas eu discordo. Já na estrutura e linguagem da direção, o filme geralmente é comparado com Corra Lola, Corra (1998), onde vários "e se" são explorados ao longo do filme. Essa influência é mais notável e faz sentido. Porém, para um filme nacional, o filme tem um certo primor em mostrar com verossimilhança os romances e a vida pessoal, assuntos geralmente esquecidos ou relativizados nos filmes brasileiros, que priorizam "grandes" narrativas.


A representação da vida doméstica, do impacto das escolhas amoras e tudo mais, pode fazer alguns descartarem o filme como um "filme sentimental" ou "para mulheres", afinal o filme é dirigido por uma mulher. Entretanto, se você pensa dessa maneira talvez você se pareça demais com o protagonista desse filme, e logo este filme pode ser uma lição para você.




De maneira geral, a estrutura do filme nos leva a assimilar a multiplicidade de narrativas e possibilidades como a transição de escolhas aleatórias. Entretanto, toda escolha acontece em certo tempo, envolvendo certos valores, espaços e matérias. 


Por isso, quando vemos 3 versões possíveis da história do mesmo personagem, a experiência leva ao analista mais atento se questionar a velha possibilidade: é possível um caso ter acontecido em tempo diferente do outro e todas as estórias estão justapostas de maneira aleatória? Ou até mais, seria todas as 3 histórias faces ocultas do mesmo tipo ideal de pessoa? 





Centrado na figura de Carlos, sempre considerei neste filme a possibilidade das histórias estarem marcando transições da vida do mesmo personagem, já que de maneira geral não importem as escolhas, ele acaba por terminar infeliz. 


Para quem conhece Niterói, sabe que apesar do tipo de pessoa que Carlos representa serem comuns e fáceis de achar na cidade, eles estão longe de serem protagonistas heroicos ou boas pessoas, justificando a tragédia pessoal do personagem. Para que fique claro, Carlos é aquele cara que fecha ciclistas e motociclistas no transito de proposito, mesmo sabendo que de dentro de seu carro importante a estrutura e o capital o favorecem. Entretanto, o turbilhão de escolhas pessoais e frustrações amorosas, tomam sua cabeça de maneira que o ódio ao social e ao público emanam de sua perspectiva mesmo que o filme não aborde isso. 





Dessa maneira, acredito que o filme possui um certo caráter de "mocking" (zoação) desde seu título até a perspectiva final que dá a trama. O título não são amores "reais", mas sim possíveis, ou seja, que já parte de uma noção de fracasso assumido. Isso muito em primeiro lugar, devido a contradição entre o tipo ideal do homem niteroiense e da mulher niteroiense.


Carlos, é um cara rico, sensível, que tem problemas com a mãe, espera demais das mulheres e é até mesmo meio coxinha. Já Julia, é feminista e independente, onde ao longo da trama é demonstrado que ela tem interesse majoritariamente por artes e, ao que tudo indica, parece ser de esquerda. 


Esses dois tipos representam bem a "cara da cidade" em torno de estilo, personalidade e ideologia. Mas isso não garante a funcionalidade do casal. 


A primeira, e pior possibilidade, Carlos casou com outra mulher, seguiu a profissão no direito de maneira ideal, e após tantos anos apenas reencontra seu amor de faculdade. Mas sua inserção na vida de Carlos é caótica, afinal parece completa falta de consideração com sua esposa e respeito as escolhas feitas por ele mesmo. Nesse plot, temos o cara galinha padrão, que parece muito quieto, sério e bem sucedido no trabalho, mas usa as mulheres ao seu redor para completar seu próprio vazio. 




Na segunda possibilidade, Carlos nunca superou o bolo que levou de Julia, e ficou dependente da mãe até o final. Esse plot é bem engraçado, pois é ele que envolve a agência de relacionamentos, algo que pode parecer estranho com as redes sociais, mas são serviços que de fato existem. Além disso, o estranhamento com o qual a diretora escolheu representar a agência de relacionamentos e a tecnologia, representa bem esse universo "científico" e probabilístico que tomou conta dos relacionamentos. Usando o pensamento Bourdieu, a distinção e bagagem cultural que cada um possui são utilizados como formas de poder, e logo é bem engraçado ver Carlos dizer que não quer uma mulher inteligente, mas sim "culta": Que saiba de arte e cinema. 


Para a pessoa não familiarizada isso pode parecer incongruente, mas bem comum em Niterói: o conhecimento, principalmente científico, desacompanhado do conhecimento cultural, facilitando certo tipo de incongruência e comportamentos pseudo. Isso gera uma grande ruptura nas formas de sentir e as formas de pensar da cidade, onde, claro, as elites querem ser de esquerda mas manter seu padrão financeiro, acreditando que isso só pode ser feito através de formas tradicionais de manutenção do poder e da ordem, como a polícia ou a justiça. 


E por último, no terceiro caso, ele escolheu a vida mais tradicional. Ele ficou com Julia, teve um filho e se separou após se apaixonar pelo colega de futebol, com o qual jogava todas as terças, e se descobrindo gay. Aqui senti uma certa cutucada da diretora aos comportamentos masculinos exacerbadamente heteros: parecem comportamentos gays ou escondem um desejo latente pelo masculino. 


Acreditamos inicialmente que esse era o melhor casal, pois afinal eles são gays e bem resolvidos: são felizes. É o casal mais fofo do filme por haver ali o verdadeiro respeito e carinho que esperamos de um casal, algo obviamente calculado pelo filme para intencionalmente nos mostrar que o casal gay é o mais padrão e o que mais vive a vida conjugal. Entretanto, nessa possibilidade Carlos tem uma recaída e beija Julia, traumatizando seu marido e seu filho, que não entende nada. 


Esse é o plot que sempre me fez questionar se os acontecimentos não se sucederam uns aos outros, representando assim as mudanças ao longo das fases da vida. 


Segundo o artigo "Ciclos, pontos de inflexão e carreiras" de Everett C. Hughes, há um tempo e um local para o trabalho; tempos e locais para a vida familiar, lazer, religião e política. Por isso, se exige um ânimo e a disposição no local de trabalho são supostamente diferentes daqueles do restante da vida. Entretanto, temos ali o mesmo agente, sendo estimulado a ação de diversas maneiras. Logo é possível separar essas ações, ou melhor como certas ações combinadas podem influir na vida e perspectiva do sujeito?





Obviamente esse caráter das fases da vida no filme foi copiado totalmente na série How I Met Your Mother, onde além do personagem principal, Ted, procurar uma agência de relacionamentos, voltar diversas vezes com a mesma namorada da juventude (Robin) e por último ter um guarda-chuva como símbolo do filme. Todo o estilo e design de arte foi chupado pela série do filme. Além de ser possível ver certos traços e estilos semelhantes também com a série Nip Tuck, onde existe uma Julia e estilo tropical de Miami é explorado nos cenários de maneira similar.


Todo o filme busca rir de seus personagens, suas indecisões e escolhas bobas. Isso nos faz, por sua vez, rir da nossa própria vida e escolhas, considerando assim nossa vida média e comum, muito melhor por ser sincera e romântica. A cena final do filme entrega isso. Quando eles se encontram no cinema no final do filme, Carlos e Julia já não são os personagens, mas sim nos mesmos: os expectadores, que assistem aquela trama para ter mais orgulho de nossas escolhas e sentirmos que amamos mais ainda aqueles que estimamos. 


A reflexão do filme é interessante: são essas escolhas da vida pessoal, como quem você escolhe amar e se relacionar que importam mais, até mesmo que sua profissão, pois é para essas escolhas que você volta ao final do dia. Apesar de a escolha profissional ser um fator importante na definição de quem se é, em nenhum momento este é o foco do filme, sendo o romance e a escolha da pessoa amada a verdadeira vocação de vida que você deve seguir, independente de família e tudo mais. Nenhum homem quer ser como o personagem Carlos, pois afinal sua vida foi, em qualquer possibilidade, trágica. Assim, o filme é do tipo que quer passar uma lição e não para se espelhar.





Para concluir, vale destacar que a direção e o roteiro salvam o filme. Ele poderia ser mais piegas e emocional, mas foi muito bem decupado, utilizando muito bem os espaços da cidade de Niterói, ambientes e cenas de maneira a resolver a trama com o mínimo de cenas e de maneira mais fácil possível. A fotografia, que carrega a assinatura e estilo do grande diretor de fotografia Walter Carvalho, e a suavidade do estilo do filme (cores, roupas e objetos nas locações) possuem um estilo agradável, com bastante cor e estilo soft, ao estilo art nouveau, que combina tanto com o estilo francês da arquitetura da cidade de Niterói, como com a trama de amores complicados em si. 


O filme pode ser criticado por ser demasiado derrotista com os relacionamentos e o amor, mas como representa a elire, então ok!




Muitos críticos descartam o filme por ele ser demasiado simples, similar a outros filmes e representar coisas que para muitos são supostamente menos importantes. Entretanto, o fator cultural salva completamente o filme, pois nenhum filme nacional que assisti até hoje é tão amplamente ambientado na cidade de Niterói e nem entendeu tanto os cenários e paisagens da cidade em sentido de integrar com o psicológico dos personagens de das situações da trama. 




Para esses críticos, digo que é preciso julgar os filmes pelos valores, situações e locais que eles exploram, e não apenas aos quais você entende. Não faz sentido criticar o filme por apresentar aspectos culturais que é o crítico que não entende e não conhece. E nenhum filme representa tão bem as situações, ciclos, aspirações, defeitos e a cultura de Niterói do que Amores Possíveis.


Disponível no Youtube, só pesquisar pelo nome do filme com a data.









 






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