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A Doce Vida (1960): Fellini e a decadência do jornalismo de celebridades e das elites na Itália do Pós Segunda Guerra Mundial



Em uma Roma decadente, o jornalista Marcello (Mastroianni) vive entre a futilidade das celebridades e a angústia de sua própria existência. Em busca de um sentido para a sua vida, ele se envolve com diversas mulheres, desde a rica e entediada Maddalena até a sensual Sylvia, uma estrela de Hollywood. Mas nenhuma delas parece preencher o vazio que ele sente. Ao longo de sete dias, testemunhamos a doce e amarga vida da sociedade romana, entre festas, escândalos, religião e arte. Um retrato irônico e crítico de uma época marcada pelo hedonismo e crise dos valores.


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O filme, desde sua estética, mostra a decadência moral e espiritual dos personagens, que vivem em busca de diversão, fama e riqueza, mas sem encontrar felicidade ou sentido. Só que mais do que isso: reflete o cenário pessimista da Itália após a Segunda Guerra mundial. 


A Itália, ao escolher o autoritarismo fascista de Mussolini como forma de criticar e interpretar as mazelas sociais, acabou com a possibilidade de qualquer projeto popular, de massas ou social de governar o país. Foi aniquilado o "populismo" do país (leia-se, o discurso voltado para as classes operárias e assalariadas urbanas), em detrimento de uma visão sínica e culturalista, que buscou normalizar e colocar no processo de poder, as elites burguesas e frívolas que exploram as classes operárias urbanas. Resultado: um processo super elitista e cínico, onde as elites e mazelas sociais que geraram o fascismo italiano, foram normalizadas e exacerbadas.


A postura arrogante, hedonista e elitista das estrelas e astros de Hollywood, passam a ser vistas como positivas, como "louvores a vida" perante o "pessimismo" popular, onde a igreja e a tradição são o divisor de águas dentro desse processo. Enquanto a liturgia e o "glamour" da fé é apropriado pelas elites burguesas, a religiosidade popular, a humildade e ideia de merecimento, são assimiladas pelas classes mais pobres (como em Ladrões de Bicicleta).


Entretanto, não seria esse justamente o debate sobre a cultura e a arte e seus valores? Se pararmos para pensar, a noção original de viver pela religião, era uma forma de "arte de viver". Por sua vez, a ideia de viver pela fé discorda em muito da ideia de criação e experimentação das artes plásticas, da escrita e do teatro, sendo mais comum no comportamento dos religiosos a moralização da arte. Entretanto, na própria ideia do artista reside o processo de "viver pela arte", como uma rotina de um santo que vive pelo oficio. Assim, nesse aspecto onde o filme mais se aprofunda, debatendo como a indústria cultural, o artista, a indústria e os valores, constantemente disputam e residem no seio do debate da cultura de um país. 


O jornalista como um comunicador deve estar a par desse debate para estar atual. Tanto que existe a famosa frase sobre ética no jornalismo, que fala sobre a divisão da igreja (jornalismo) para o Estado (marketing e relações publicas). É claro que isso não é preto no branco, e temos figuras hibridas que se criam na brecha desses dois eixos. Por exemplo, o jornalista e fofoca ou "paparazzi", que usa da sua suposta autoridade jornalística para comentar assuntos que o público já gosta ou para fazer assessoria de imprensa para artistas.



Nesse eterno limiar comunicativo, é onde Marcello se encontra. Ele querer ser honrado e reconhecido, mas é iludido pelo glamour de sua própria profissão. Primeiro, vemos que ele possui um caso com uma sociality. A ela ele dedica o sexo, ou seja, uma relação mais direta e profissional, onde ela ganha divulgação com suas matérias e ele ganha tendo uma fonte para os ciclos da elite. Entretanto, a questão que devemos fazer aqui é se ele se aproveita dela ou se ela que se aproveita dele, onde ele basicamente se prostitui pela notícia. Isso remete sobre a velha questão das fontes que manipulam os jornalistas.


Outra mulher é Sylvia. Por ela, Marcello reserva um admiração contemplativa e platônica. Ela é uma musa para ele, algo para ser visto e buscar inspiração, mas de fato não a ama e nem a deseja. Ou seja, Sylvia é o cinema em si, a figura que vislumbra mas é fútil como os astros e estrelas. 




Por último, a relação mais provocante de Marcello: sua esposa. Ela aparece no filme meio que por acaso, afinal pelo seu estilo livre de se relacionar com várias mulheres desde o início do filme, acreditamos que ele era solteiro. Só que não, ele é casado. E ela aparece fazendo um escândalo dizendo que não tolera mais seus casos. Sua esposa argumenta que ele não precisa daquele emprego, que eles podem viver um vida mais pacata e felizes juntos. Em sua visão (e ela está certa nesse ponto) ele é um cachorrinho do jornal, usado e explorado pelas elites. Por outro lado, Marcello argumenta que se ela quer o controlar, com um amor materno e controlador, o qual o reservaria ser apenas um desempregado qualquer, afirmando que isso não é amor e sim "embrutecimento". Assim, revela-se o lado mais tráfico de Marcello: ele só é jornalista pois quer estar no cosmopolitismo, "ser alguém", ou seja por uma visão baseada na meritocracia.


Marcello expulsa sua mulher do carro e afirma que não quer mais vê-la, chegando até mesmo a agredi-la antes de arrancar com o carro. Mas logo em seguida, apenas vemos ele voltar com o carro para buscá-la e os dois com péssimas caras no carro. A face de Marcello nesse momento, muito bem expressada pelo ator, demonstra tudo: ele ama sua esposa mais que qualquer uma, sabe que ela tem razão, mas acredita que assim seria um homem menor.


Logo isso nos leva a parte trágica da profissão. A cena quando a mulher acredita que os fotógrafos estão atrás dela por glamour quando na verdade é para pegar sua expressão ao descobrir que seu marido se matou e matou os filhos; é assustadora, mórbida. Aquilo que pode se voltar para pegar o glamour da musa sustentando uma pose e um expressão facial, também pode ser usado para registrar o momento da perda dessa fachada e compostura. As distinções entre o "belo" e o "trágico", típica da arte e da filosofia clássica são remontadas aqui dentro do jornalismo. Como se ainda se explorasse a tragédia das peças clássicas, só que agora nas notícias factuais e trágicas do dia-a-dia.


Os melhores aspectos do filme são a direção de Fellini, que cria um estilo visual marcante e simbólico, usando o preto-e-branco e os contrastes de luz e sombra para criar atmosferas e emoções; a atuação de Mastroianni, que interpreta um personagem complexo e ambíguo, que oscila entre o cinismo e a sensibilidade, a passividade e a curiosidade, a ironia e a angústia. Por último, a música de Nino Rota, que acompanha as cenas com melodias ora alegres, ora melancólicas, ora dramáticas, mas todas incrivelmente técnicas musicalmente e que preenchem perfeitamente as cenas com a carga de sentimento necessária.


Seu argumento trás consigo a mensagem que a vida moderna pode ser vazia e superficial se não houver um propósito ou um compromisso maior. Questiona os valores da sociedade de consumo e da cultura de massa, que alienam e manipulam as pessoas, onde Fellini reflete e sugere que é preciso buscar uma forma de arte e de comunicação mais autêntica e profunda, que possa expressar a verdadeira essência humana ou ao menos a considere.


Do ponto de vista jornalístico, o filme busca debater o papel e a ética da imprensa, que muitas vezes se dedica a explorar escândalos, fofocas e sensacionalismos, em vez de informar e educar o público. A liberdade de expressão e de imprensa é essencial em uma democracia, algo que no contexto do pós-nazismo era muito importante. Mas, o filme mostra como o jornalismo pode ser influenciado pelos interesses econômicos e políticos, e como pode afetar a vida privada e a imagem das pessoas, sendo focado em fofocas e banalidades. Ao mesmo tempo, a Doce Vida busca os paralelos do jornalismo com a  arte, se for feito com criatividade, honestidade e responsabilidade.


A direção do filme é uma das mais elogiadas e influentes da história do cinema. Fellini demonstra um domínio técnico e artístico impressionante, criando cenas memoráveis e originais, que misturam realidade e fantasia, humor e drama, beleza e grotesco, em estilo bem Carl Jung típico do diretor. Fellini usa a câmera com liberdade e criatividade, explorando diferentes ângulos, movimentos, planos e enquadramentos, que conferem dinamismo e ritmo ao filme. Ele dirige os atores com maestria, extraindo deles performances naturais e expressivas, que transmitem as emoções e os conflitos dos personagens. 


Os constantes cortes e sobreposições de som que corta as cenas e a carregam de duplo sentido, são perfeitas. São recursos técnicos típicos de vários cineastas do cinema novo em todo mundo, mas particularmente a forma de Fellini, ou seja o momento em que ele usa em relação as cenas e o roteiro, carregam certas cenas com uma profunda carga de ironia e sátira. Sua ideia é provocar, desconfiando inclusive do protagonista e rindo de suas posturas em vários momentos. O jazz de Rota marca incrivelmente essas cenas, fazendo refletir sobre a própria passagem do tempo, como ela impacta a vida e como isso de certa forma isso é cômico. Exemplo: a cena onde ele conversa com uma menina de um restaurante que está sentado. Ele conversa com a menina e tenta testar o seu desejo por glamour. Como ela parece não ligar para a fama e apenas pede para aumentar sua música novamente, Marcello congela em tela alguns momentos parecendo questionar o sentido de tudo que faz.



Fellini é um diretor que imprime sua visão pessoal e sua marca autoral em cada cena, fazendo de A Doce Vida um filme único e inconfundível. Todas as sequências são como esquetes psicológicas, que refletem aspirações e frustrações do autor, de época e da própria essência da natureza humana. 


Explorando as dimensões inconscientes e simbólicas da vida humana, usando elementos como sonhos, alucinações, metáforas e alegorias, o filme também reflete sobre a condição existencial do homem moderno, que se sente perdido e angustiado em um mundo sem sentido e de mudança de valores. Os personagens como pessoas reais, tentam escapar da realidade através de diferentes formas de alienação, como o sexo, as drogas, a religião, a arte, a fama e o dinheiro, ao mesmo tempo que são profundamente como nós, como qualquer um, gerando empatia por seu estilo livre e moderno, e repulsa pelo seu exagero e cinismo. O filme é uma análise psicológica e social da sociedade do pós-guerra, que revela as contradições e as crises da civilização ocidental.



História por trás do filme 


A maior parte do filme foi filmada no Cinecittà Studios em Roma. O cenógrafo Piero Gherardi criou mais de oitenta locações, incluindo a Via Veneto, a cúpula de São Pedro com a escada que leva até ela e várias casas noturnas. No entanto, outras sequências foram filmadas no local, como a festa no castelo dos aristocratas filmada no verdadeiro palácio Bassano di Sutri, ao norte de Roma. (Alguns dos criados, garçons e convidados foram interpretados por aristocratas reais.) 


Fellini combinou cenários construídos com tomadas de locação, dependendo dos requisitos do roteiro - uma locação real muitas vezes "deu origem à cena modificada e, consequentemente, ao cenário recém-construído. " As últimas cenas do filme em que o peixe monstro é retirado do mar e Marcello se despede de Paola (o adolescente "anjo da Úmbria") foram filmadas em Passo Oscuro, uma pequena cidade turística situada na costa italiana a 30 quilômetros de Roma. 


Fellini descartou uma sequência importante que envolveria o relacionamento de Marcello com Dolores, uma escritora mais velha que vivia em uma torre, a ser interpretada pela atriz vencedora do Oscar dos anos 1930, Luise Rainer. Se as relações do diretor com Rainer "que costumava envolver Fellini em discussões fúteis" eram problemáticas, o biógrafo Kezich argumenta que, ao reescrever o roteiro, a personagem de Dolores tornou-se "hiperbólica" e Fellini decidiu abandonar "toda a história". 


A cena na Fontana di Trevi foi filmada durante uma semana no inverno: em março de acordo com a BBC, no final de janeiro de acordo com Anita Ekberg. Fellini afirmou que Ekberg ficou na água fria em seu vestido por horas sem nenhum problema, enquanto Mastroianni teve que usar uma roupa de mergulho sob suas roupas - sem sucesso. Foi só depois que o ator "esgotou uma garrafa de vodca" e "ficou completamente puto" que Fellini pôde filmar a cena.


O personagem Paparazzo, o fotógrafo jornalístico (Walter Santesso), foi inspirado no fotojornalista Tazio Secchiaroli e é a origem da palavra paparazzi , usada em muitos idiomas para descrever fotógrafos intrusivos. Quanto à origem do próprio nome do personagem, o estudioso de Fellini, Peter Bondanella, argumenta que embora "é de fato um nome de família italiano, a palavra é provavelmente uma corruptela da palavra papataceo , um mosquito grande e incômodo. Ennio Flaiano , o co-roteirista do filme e criador de Paparazzo, relata que tirou o nome de um personagem de um romance de George Gissing. O personagem de Gissing, Signor Paparazzo, é encontrado em seu livro de viagens, By the Ionian Sea (1901). 



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