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Sobre Meninos e Lobos (Mystic River, 2003): Um drama de Clint Eastwood que reflete o clima de desconfiança após 11 de Setembro, contextualizando com os medos e traumas geracionais



Dirigido por Clint Eastwood, o drama policial que começa em 1975 na visão dos amigos Jimmy Markum (Sean Penn), Sean Devine (Kevin Bacon) e Dave Boyle (Tim Robbins), que estão jogando hóquei em uma rua de um bairro irlandês de Boston. Depois de decidir escrever um mural com seus nomes em um pedaço de concreto molhado, dois homens, alegando serem policiais, sequestram Dave. Vinte e cinco anos depois, Jimmy é um ex-presidiário e dono de uma loja de conveniência do bairro; Sean é um detetive de polícia cuja esposa grávida Lauren o deixou recentemente, e Dave é um trabalhador de colarinho branco continuamente assombrado pelo sequestro. 

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É raro encontrar um filme que seja tão tocante e simples ao mesmo tempo. Em Sobre Meninos e Lobos, muitas coisas mais importantes que acontecem na trama ficam no extracampo, ou seja, são mencionadas ou se insinua o que aconteceu mas não e mostrado. Eastwood explora genialmente esse sutil efeito para não traumatizar os mais jovens e sensíveis, ao mesmo tempo que passa uma sensação fantasmagórica para aqueles que entendem suas metáforas. 


O roteiro é baseado no romance de Dennis Lehane, e foi adaptado por Brian Helgeland, que também escreveu os roteiros de Los Angeles - Cidade Proibida e Coração Valente. O filme é fiel ao livro, mas faz algumas mudanças para tornar a história mais cinematográfica e enxuta. O roteiro segue uma estrutura clássica de três atos, com um ponto de virada no final de cada ato. Seu ritmo intenso e envolvente, que mantém o espectador interessado e surpreso. Sua profundidade psicológica e temática explora as motivações e os dilemas dos personagens, refletindo suas culpas, a vingança, a justiça, a ideia de lealdade e de da suposta legitimidade do uso da violência. 

Como um diretor conhecido principalmente por dirigir grandes filmes de faroeste, outro gênero que Eastwood é igualmente genial é o policial. Aqui, porém, ele parece misturar os gêneros, fazendo uma tese onde o atual sistema de tramas policiais e como elas se desenrolam se relaciona com a forma como os Estados Unidos se desenvolveu e se civilizou através da lógica do Velho Oeste. Assim, a todas as temáticas e situações do filme poderia estar em um filme de faroeste. Trazendo para uma trama moderna, o filme se torna mais assustador pois explora a proximidade rotineira e diária com a brutalidade dos costumes e, até mesmo, da própria História Contemporânea. 



Eastwood, também é o produtor e o compositor da trilha sonora. Conhecido por seu estilo sóbrio e elegante, ele soube valorizar a narrativa e os personagens, sem recorrer a excessos ou artifícios. A direção de Eastwood em Mystic River é exemplar, pois ele consegue extrair o melhor do roteiro e do elenco, criando um filme envolvente e emocionante. 



Eastwood também demonstra sua habilidade em criar uma atmosfera sombria e realista, que reflete o clima de tensão e angústia da história. Há uma certa sensibilidade em conduzir as cenas dramáticas que foi se desenvolvendo aos pouco na sua carreira, sem cair no melodrama ou na exploração. O filme possui certa criatividade em usar recursos cinematográficos, como a câmera, a iluminação, o som e a música, para criar efeitos de contraste, suspense e emoção. A direção de Mystic River é uma prova de seu talento e de sua versatilidade como cineasta.



O filme tem um elenco de peso, com atores consagrados e talentosos. As atuações são todas excelentes, pois os atores conseguem transmitir a personalidade, a emoção e o conflito de seus personagens, sendo talvez o ponto mais alto do filme. 


Os três protagonistas, Sean Penn, Tim Robbins e Kevin Bacon, se destacam pela intensidade e pela química de suas interpretações. Sean Penn interpreta Jimmy, um ex-presidiário que se torna um comerciante respeitado e um pai amoroso, mas que esconde uma violência e uma sede de vingança. Penn consegue mostrar a complexidade e a ambiguidade de seu personagem, que oscila entre o bem e o mal, entre a razão e a emoção. Sua forma de expressar a dor e a raiva de seu personagem diante da morte de sua filha, fazem das cenas memoráveis. Penn ganhou o Oscar de melhor ator por seu trabalho nesse filme. 



Tim Robbins interpreta Dave, um homem traumatizado pelo abuso que sofreu na infância, e que vive atormentado por seus fantasmas e suas culpas. Robbins consegue transmitir a fragilidade e a instabilidade de seu personagem, que vive em um mundo à parte, isolado e incompreendido. Robbins ganhou o Oscar de melhor ator coadjuvante por sua atuação. Os outros atores do filme também têm ótimas performances, como Laurence Fishburne, que interpreta Whitey, parceiro de Sean na policia. 


O filme se passa em Boston, uma cidade dos Estados Unidos que tem uma forte presença de imigrantes irlandeses e uma história de conflitos raciais e sociais. Tudo acontece em torno de bairro pobre e violento, onde a lei é imposta pelos próprios moradores, que têm seus próprios códigos de honra e lealdade. O filme também mostra a influência da religião católica na vida dos personagens, que sofrem com a culpa e o pecado. Só que, principalmente, o filme reflete o contexto e clima de medo e desconfiança que marcou os Estados Unidos após os atentados de 11 de setembro de 2001, que abalaram a segurança e a estabilidade do país. O filme também faz referência à guerra do Iraque, que começou em 2003, e que gerou polêmica e controvérsia sobre a legitimidade e a moralidade da intervenção militar americana.


A cena inicial, que mostra o sequestro de Dave por dois pedófilos que se passam por policiais, e como isso afeta a amizade entre eles, é destruidora e assustadora. Há uma grande reflexão, sobre como ao ensinar as crianças a serem sempre obedientes, boazinhas e tementes a Deus, os pais e também a sociedade como um todo estão tornando as crianças vulneráveis a abusos. 



Como os outros garotos eram mais maldosos e desobedientes, foram poupados, mas isso significou classificá-los para sempre como "maçãs podres".  



A cena em que Jimmy descobre que sua filha Katie foi assassinada e tem um surto de dor e raiva, sendo contido por Sean e Whitey, é incrível. Sentimos a dor junto com ele. Com certeza uma cena que valeu o Oscar para Penn. Com certeza um marco do cinema.


A cena final, mostra Sean revelando a Jimmy que o verdadeiro assassino de Katie foi o namorado dela, Brendan, e seu amigo Silent Ray, e que Dave era inocente. Jimmy fica atordoado e se afasta de Sean, enquanto Celeste olha para ele com desprezo, ensejando que ali há um eterno ciclo de ressentimentos familiares e históricos que nunca acabará. Aqui, apesar de parecer individualista, Eastwood reflete que se for para seguir a tradição e a rotina dentro de uma estrutura homicida e onde as pessoas só se odeia, se invejam e fingem, é melhor desistir e fazer outra coisa.


Há também uma interpretação final, que é uma certa desconfiança geracional, principalmente dos conhecidos "baby boomers". Todos os amigos do filme possuem um duplo caráter que os impedem de ser pessoas admiráveis ou exempláveis. O amigo que foi vítima, caminha uma trilha sombria, onde as pessoas ao redor tem ressentimento por não querer que uma tragédia similar aconteça em sua família e se afastando dele. Os outros, tanto o policial como o "gangster", conseguem parecer normais, porém através de uma rotina de violência, só que um através do sistema de justiça e o outro na ilegalidade, porém sendo extremamente parecidos e convivendo, fazendo-nos questionar padrões de sucesso profissional e social. 



Em termos de qualidade técnica, o filme se destaca pela fotografia sombria e realista, que contrasta com o título do filme e do rio que dá nome ao bairro onde se passa a história. O filme também tem uma montagem ágil e eficiente, que alterna entre as perspectivas dos três protagonistas e cria suspense e emoção. A trilha sonora é discreta e melancólica, reforçando o clima de tragédia e fatalidade. O filme também tem um roteiro bem construído e fiel ao livro, com diálogos fortes e verossímeis. O filme é uma obra-prima do cinema contemporâneo e uma reflexão sobre a natureza humana.


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