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Godzilla (1954): Filme usa a ideia da guerra nuclear para refletir o papel da ciência na sociedade



Godzilla (1954) carrega um enredo pouco lembrado, que fala sobre história, bomba atômica, o papel da ciência na sociedade e ecologia. O filme gerou uma franquia multimídia, sendo reconhecido pelo Guinness como a franquia de filmes mais antiga da história. O personagem Godzilla desde então se tornou um ícone da cultura pop, sendo amplamente creditado por estabelecer o modelo para os tokusatsus e os animes 


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Primeiro, é comum ver pessoas evitarem o filme por o colocar em uma lista infame: filmes de animais gigantes ou catástrofes destruindo cidades. 


Vários filmes, principalmente americanos, refizeram tal trama exaustivamente. Mas garanto que, como original, o filme trás uma profundidade por muitos ignorada ou esquecida.


O filme foi feito em 1954, no Japão, pelo diretor Ishiro Honda. Honda foi militar, sendo convocado em janeiro de 1935 e foi alistado na Primeira Divisão, Primeiro Regimento de Infantaria em Tóquio. Na época, Honda iniciou seu treinamento na categoria iniciante do Ippeisotsu, equivalente a Suboficial de Primeira Classe. Naquela época da guerra, o cinema não era opção para Honda. O governo assumiu o controle da indústria cinematográfica japonesa em 1939, modelando a aprovação de leis cinematográficas após as políticas nazistas, em que roteiros e filmes eram revisados ​​para apoiar o esforço de guerra nazi e os cineastas desobedientes eram punidos.


Honda recebeu outro aviso de convocação em março de 1944. Ele foi designado para seguir para as Filipinas, mas sua unidade perdeu o barco e foi enviada de volta à China. Para a sorte da Honda, o conflito na China foi menos intenso do que no Pacífico e no Sudeste Asiático.


Honda acabou sendo capturada pelo Exército Nacional Revolucionário Chinês e realocada para uma área entre Pequim e Xangai por um ano antes do fim da guerra. Durante sua prisão, Honda afirmou ter sido bem tratado e até mesmo fazer amizade com os moradores e monges do templo, que o ofereceram para ficar permanentemente, ou seja: era comunista também. Mas Honda recusou respeitosamente em favor de encontrar sua esposa e filhos. Como presente de despedida, os habitantes locais deram à Honda gravuras de provérbios chineses, impressas em esculturas de pedra de templos. Honda, mais tarde, escreveria esses versos no final de seus roteiros.


Durante sua última turnê, Honda escapou da morte quando um morteiro caiu diante dele, mas não detonou. Quando a batalha terminou, Honda mais tarde voltou para recuperar a cápsula e a levou de volta para casa, no Japão, onde a colocou em cima de sua mesa em seu escritório particular até sua morte. Honda então voltou para casa em março de 1946, no entanto, durante a maior parte de sua vida, mesmo quando velho, Honda tinha pesadelos com a guerra duas ou três vezes por ano.


Esses fatores sobre a visão de mundo do diretor são essenciais para entender a estrutura e linguagem de Godzilla. 


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Mas como filme pioneiro do gênero sempre me perguntei: da onde veio a ideia do monstro gigante? Em 1954, Toho planejou originalmente produzir Eikō no Kage ni (栄 光 の 影 に; Na Sombra da Glória ), uma co-produção nipo-indonésia sobre as consequências da ocupação japonesa na Indonésia . No entanto, o sentimento anti-japonês na Indonésia forçou a pressão política sobre o governo para negar vistos aos cineastas japoneses.  O filme seria co-produzido com o estúdio Perfini de Usmar Ismail filmado em locações em Jacarta em cores e serviria para abrir o mercado para filmes japoneses no sudeste da Ásia. 


O produtor Tomoyuki Tanaka voou para Jacarta para renegociar com o governo indonésio, mas não teve sucesso e no vôo de volta para o Japão, concebeu a ideia de um filme de monstro gigante inspirado no filme de 1953 The Beast from 20,000 Fathoms e o incidente de Daigo Fukuryū Maru que aconteceu em Março de 1954. A seqüência de abertura do filme é uma referência direta ao incidente. 


Tanaka sentiu que o filme tinha potencial devido aos temores nucleares gerando notícias e filmes de monstros se tornando populares. Principalmente devido ao sucesso financeiro de The Beast from 20,000 Fathoms e o relançamento de King Kong em 1952 , o último dos quais rendeu mais dinheiro do que versões anteriores. 


Godzilla foi projetado por Teizo Toshimitsu e Akira Watanabe sob a supervisão de Eiji Tsuburaya. No início, Tanaka considerou que o monstro parecia um gorila ou uma baleia, devido ao nome "Gojira" (uma combinação das palavras japonesas para "gorila",ゴ リ ラ gorira e "baleia",ク ジ ラ kujira ), mas acabou optando por um design semelhante ao de um dinossauro.


Godzilla foi o pioneiro de uma forma de efeitos especiais chamada suitmation , na qual um dublê vestindo uma roupa interage com cenários em miniatura. A fotografia principal durou 51 dias, e a fotografia de efeitos especiais, 71 dias.


O filme foi considerado pioneiro ao criar a linguagem para tokusatsus para os grandes meios de comunicação. O próprio anime Pokémon diversas vezes referenciou a esse filme e a Jurassic Park, que também foi influenciado em Gojira, principalmente em suas reflexões sobre a ciência.


A trama começa em torno de uma série de navios e barcos pesqueiros que têm sumido ou naufragado na costa do Japão de maneira misteriosa. 


Quando a pesca cai misteriosamente para zero, pescadores locais passam a associar os eventos a lendas atribuídas à antiga criatura marinha conhecida como "Godzilla". Repórteres chegam à Ilha de Odo para investigar


Naquela noite, uma tempestade atinge a ilha, destruindo o helicóptero dos repórteres, e Godzilla, aparece rapidamente e destrói 17 casas e mata nove pessoas.


É então que o governo envia o paleontólogo Kyohei Yamane para liderar uma investigação na ilha, onde pegadas radioativas gigantes e pistas são descobertas. Mas então o alarme da vila é tocado e Yamane e os moradores correm para ver o monstro, recuando depois de ver o um dinossauro gigante. 


Essa é a primeira aparição de fato do Godzilla e só leva segundos. Essa demora que os filmes antigos  faziam para mostrar o monstro, especulavam com o extracampo e dava maior "clima" para a trama. Detalhe para o elemento do morro para deixar com impressão do bicho ser gigante.


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Yamane, que representa a ciência no filme apresenta suas descobertas em Tóquio, estimando que Godzilla teria 50 m de altura e evoluiu de uma antiga criatura marinha para se tornar uma criatura terrestre. 


Notem para um detalhe na cena: a imagem de Godzilla utilizada é mais bonitinha e definida do que o animal real. Essa mudança me fez questionar se não seria uma crítica ao estilo de ciência que é feita na maioria dos países, onde os cientistas só analisam algo quando se torna uma crise para tornar o problema mais aprazível.


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Ele conclui que Godzilla pode ser um animal raro que foi modificado pelas bombas atômicas da Segunda Guerra Mundial. O cientista acredita que isso deve ser notificado o público, mas políticos e empresários discordam por acreditar que isso geraria uma histeria coletiva. 


Godzilla sobrevive a um ataque dos militares e os oficiais apelam a Yamane em busca de ideias para matar o monstro, mas Yamane diz a eles que Godzilla não pode ser morto por nenhuma arma ou bomba existente, uma vez que sobreviveu a uma bomba atômica. A filha de Yamane, Emiko, decide romper seu noivado com o colega cientista de seu pai, Daisuke Serizawa (que usa um tapa olho que parece ter inspirado Sneak de Metal Gear). Ela está apaixonada por Hideto Ogata, um capitão de navio de salvamento. 


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Quando um repórter chega e pede para entrevistar o cientista, mas Serizawa se recusa a divulgar seu trabalho atual para o repórter, ele dá a Emiko uma demonstração de seu jeito bruto e obscuro. Seu projeto é um elemento que retira todo o oxigênio da substância a qual tem contato. A demonstração do elemento com peixes do laboratório a deixa horrorizada. Ele pede que ela mantenha segredo para que a arma nunca caia em mãos erradas.


Godzilla ressurge e quebra o cerco de Tóquio e com seu sopro atômico de fogo, liberando mais destruição pela cidade e matando pessoas. Outras tentativas de matar o monstro com tanques e aviões de combate falham e Godzilla retorna ao oceano. Essa sequência é a mais genial cinematograficamente falando. As maquetes, os tanques de brinquedo e aviões sendo filmados em ângulos fechados e angulados para que pareçam reais, a montagem dinâmica, a chuva, as luzes e seu reflexo na pele do Godzilla, tornam toda a sequência uma obra de arte da história do cinema mundial.


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Perturbada pela devastação, Emiko conta a Ogata sobre a pesquisa de Serizawa, uma arma chamada "Destruidor de Oxigênio", que desintegra átomos de oxigênio e faz com que organismos morram por asfixia . Emiko e Ogata vão a Serizawa para convencê-lo a usar o Destruidor de Oxigênio, mas ele inicialmente se recusa, explicando que se ele usar o dispositivo, os superpoderes do mundo certamente o forçarão a construir mais Destruidores de Oxigênio para usar como uma super arma. Depois de assistir a um programa que mostra a atual tragédia do país, Serizawa finalmente aceita seus apelos. Enquanto Serizawa queima suas anotações, Emiko começa a chorar.


Um navio da marinha leva Emiko, Ogata e Serizawa para plantar o dispositivo na baía de Tóquio. Depois de encontrar Godzilla, o cientista Serizawa descarrega o dispositivo e corta sua mangueira de ar, se mantando para levar consigo o segredo do Destruidor de Oxigênio para seu túmulo. Godzilla é destruído, mas muitos lamentam a morte do cientista Serizawa. O velho cientista Yamane faz então seu discurso final, dizendo que acredita que se os testes de armas nucleares continuarem, outro Godzilla pode surgir no futuro, toda uma sequência que inspirou o jogo Metal Gear 5: The Phantom Pain.


Minha leitura do filme é que Godzilla na verdade nada mais é do que um filme sobre a crise dos paradigmas científicos no pós Segunda Guerra Mundial. 


Como todos já sabem, o Japão aderiu aos países do Eixo na guerra, lutando a favor de Alemanha e Itália. A guerra representava os interesses do avanço e modernização, mas mais do que isso: eram motivo de fé. 


Quando o Japão perde, uma extrema desmoralização, desanimo e sentimento anti-patriótico toma a população. E aí entra a função de Godzilla.


Godzilla é um filme nacionalista de centro, que busca questionar o papel relegado ao Japão pelos Estados Unidos após a guerra, ao mesmo tempo que denúncia mentalidades e estereótipos japoneses congelados que precisariam mudar. A linguagem fácil, melodramática e integradora, quase de novela, perante uma grande ameaça, buscava passar esses valores para a população com menor escolaridade e, principalmente, para as crianças. Como explicar para as crianças japonesas da época que o papai não tem emprego desde a guerra? "Foi o Godzilla filho que destruiu o emprego do papai", e assim nunca ter que deixar de ser nacionalista e dizer "é culpa do estado que não cria empregos".


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Yamane, o cientista mais velho, apesar do pensamento ecológico e sentir pena do Godzilla, é retrado como uma pessoa de costumes tradicionais, rico e sem soluções efetivas. Seu discurso ao longo do filme se baseia apenas na ecologia  para ter pena do animal e na denúncia da ameaça atômica gerada pela guerra. Há aqui uma óbvia critica ao evento de Hiroshima e Nagasaki e aos Estados Unidos. 


Entretanto esse "comunismo" e "pacifismo" do cientista convive com seus costumes tradicionais e conservadores, principalmente com relação a sua filha e sua incapacidade de resolver o problema do Godzilla.


Pensem, se por um lado ele parece ter razão em dizer que houve excesso no ataque atômico dos Estados Unidos ao Japão, cobrar isso como "dívida histórica" seria o mesmo que dizer que o Japão estava certo em apoiar o nazismo. 


Então, é como se o filme semioticamente trouxesse a ideia de que ideias comunistas ou progressistas no Japão são radicais como a extrema direita. 


O Godzilla em si pode ser visto como uma metáfora da crise que o Japão enfrentou depois da guerra, com o país derrotado e destruído. A solução da trama vem da pesquisa científica, de um cientista que se autosacrifica para salvar a nação. Ou seja, a única solução possível tem de ser nacionalista, e isso significa na trama a cooperação entre ciência e os militares, assim como o anúncio do imediato fracasso de qualquer iniciativa que não seja dentro desse padrão. 


Isso explica porque sua fórmula foi copiada tantas vezes: animais gigantes ou grandes ameaças que ameaçam a civilização reforçam nossos sentidos de nacionalidade. 


Em termo técnicos e estéticos, o filme é revolucionário. É possível ver em cada detalhe, elementos em cenas e situações, que serviram de influência para outros filmes, animes, games e etc. Um filme que com certeza vai fazer você mudar a forma como vê os filmes.


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