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Häxan, a Feitiçaria Através dos Tempos (1922): Como a perseguição a "bruxaria" foi utilizado para defender o autoritarismo na História


Filme sueco-dinamarquês de 1922, dirigido e escrito por Benjamin Christensen, baseado em livros de historias orais alemãs e, principalmente, o livro da inquisição (Malleus Mafeficarum). Ele descreve um manual de como identificar e punir bruxas no período de 1480. O filme como o livro, aproveitam para retratar a vida do povo da época e a origem dos costumes. Uma época em que a violência era parte do aparato da igreja, onde clima de denúncia da inquisição era usado contra tudo que era reconhecido como "magia"


Assista o filme ao final deste artigo


Crítica do filme


O filme Haxan foi produzido em um contexto histórico marcado por mudanças políticas, sociais e culturais na Europa e no mundo. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) havia terminado há pouco tempo, deixando um rastro de destruição, morte e crise econômica. O cinema, que era uma arte relativamente nova, estava se desenvolvendo e experimentando novas formas de expressão, como o expressionismo alemão e o surrealismo francês. 


O diretor Benjamin Christensen era um dinamarquês que trabalhava na Suécia, onde fundou sua própria produtora, a Svensk Filmindustri. Ele se interessou pelo tema da bruxaria após ler o livro Malleus Maleficarum, um manual de inquisição do século XV que descrevia os métodos de identificação e tortura das supostas bruxas. Christensen dedicou dois anos de pesquisa sobre o assunto, consultando diversas fontes históricas e artísticas. Ele também se inspirou em sua própria experiência como hipnotizador e médico para retratar os aspectos psicológicos e patológicos da feitiçaria. O filme foi rodado na Dinamarca entre 1920 e 1921, com um orçamento de cerca de dois milhões de coroas suecas, o que o tornou o filme mudo mais caro da Escandinávia. 


Christensen cuidou de todos os detalhes da produção, desde o roteiro até a edição, passando pela direção de arte, fotografia e maquiagem. Ele também atuou no filme, interpretando o papel do diabo. O filme foi lançado em 1922 na Suécia e na Dinamarca, onde recebeu uma boa recepção do público e da crítica. No entanto, em outros países, como Alemanha, França e Estados Unidos, o filme foi censurado ou proibido por causa de seu conteúdo considerado obsceno, violento e anticlerical. O filme só foi relançado nos Estados Unidos em 1968, com uma narração em inglês feita pelo escritor William S. Burroughs. O filme é considerado uma obra-prima do cinema de horror e uma das mais influentes do gênero. Ele também é um importante documento histórico e cultural sobre a perseguição às bruxas na Europa medieval e moderna.


A ironia, o realismo e a teor violento são impactantes quando pensados para uma obra dos anos de 1920, sendo Häxan considerado um dos filmes mais pesados já feitos, mesmo sendo da década de 1920. Na Dinamarca do início do século havia uma tentativa de neutralidade por conta da perda para a Prússia na Primeira Guerra. 


A perseguição e o controle das mulheres é tão brilhantemente demonstrado, que o filme ser dos anos de 1920 é interessante. Essa foi a década que Joana D'arc foi transformada em santa. Vale lembrar que Joana D'arc, heroína da França da Guerra dos 100 anos (1337-1453), foi morta pelos ingleses, que utilizaram do fato dela ter "visões" desde a infância para considerá-la uma bruxa. A reabilitação de Joana D'arc demonstra o carácter político da morte de mulheres sistemática produzida por conta do espírito de linchamento, e denuncismo geral de uma sociedade da crendice. 


O ódio em relação as mulheres, o clima de denúncia é mostrado no filme. Na história, os casos de acusação contra mulheres em países como Bélgica e Dinamarca chegavam a ser 90% dos casos de denúncia. Enquanto em Portugal, havia mais um ângulo de perseguição contra judeus, e não exatamente mulheres. 


Por possuir uma monarquia que durou muitos anos, a Dinamarca também tinha uma igreja nacional do Estado, sendo necessário até 1970 o reconhecimento do Estado para poder ter uma religião na Dinamarca. Até então, apenas a Igreja Reformada, o catolicismo e o judaísmo eram permitidas.


Dispensando a referência literária, e possuindo um nível de pesquisa em imagens e contos e livros de história da bruxaria. Alguns chegam a classificar o filme erroneamente como "perturbador", e acabam caindo na própria estratégia do filme, demonstrar que as pessoas são facilmente assustadas, e que é assim que são dominadas pela sociedade, através do medo. 


O filme não é perturbador, mas busca falar sobre a história das justificativas por traz dos processos de violência. O filme não é violento, mas aborda a violência de maneira muito crítica.  Tanto é assim, que esse filme é considerado pela crítica especializada como uma forma de "documentário" pela sua extensa pesquisa, que é também abordada no filme antes mesmo de vermos qualquer personagens mesmo da história, o início demonstra a iconografia das iluminuras e as descrições de aparições demoníacas escritas em livros de contos e de estórias orais. 


Inclusive, o Papa São Gregório VII (1073-1085) repreendeu o rei da Dinamarca da época Hoakon por ter mandado queimar as mulheres que eram acusadas de feitiçaria, um outro monge beneditino de Weihenstephan, em 1280, revoltou-se  pela acusação de três mulheres de feitiçaria, dizendo que elas estavam sendo "mártires da loucura do povo". Mostrando uma divisão, onde eram os reis locais e não exatamente as igrejas que matavam as mulheres. 


O filme por possuir uma grande pesquisa em torno da divulgação da história da feitiçaria, é considerado, mesmo sendo um filme narrativo, como documentário pelo sue carácter etnográfico, passou para a história como amaldiçoado e foi até censurado nos Estados Unidos.



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O filme mesmo sendo sobre magia, e é considerado o "primeiro filme cult do mundo", mas acaba explicando sem deixar margem para dúvida que a bruxa, o inimigo da sociedade era a figura do mendigo, da mulher pobre mais velha, ou da mulher jovem e bonita. 


Em uma das cenas, uma jovem mulher abre a porta para uma senhora mais velha e que está faminta, ela come, enquanto a jovem moça se tranca no quarto com os familiares e fala que acha que a senhora é uma bruxa, mas na realidade é uma pessoa faminta.


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Dessa forma ela vai até ao padre, que fica "tocado" por ela, e aí ele decide, que ela também era bruxa, e então a jovem moça que é mãe é presa pelo padres. 

 

O impacto de demonstrar a perseguição e o controle por parte da narrativa da bruxaria consiste em um pesado debate sobre valor social da verdade. 


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Os métodos de tortura medievais demonstrados com detalhes no filme mostram uma sociedade que já era monstruosamente violenta. Em nome de caçar as bruxas, eram desenvolvidos sistemas de delação, onde se você contasse e "admitisse seu erro", as torturas paravam. Ao fim do filme, podemos observar que o terror que as pessoas tinham das bruxas evoluiu e se transformou no discurso sobre a histeria. 





A questão da doença mental e da caça as bruxas como uma forma de histeria é demonstrado no filme, quando vemos que qualquer era o motivo para denunciar ou achar que alguém tinha sido "tocado pelo diabo".  A curiosidade é que o próprio diretor do filme interpretou o diabo. 


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Mostrando diversos casos onde a superstição oculta a histeria real da sociedade, e como uma vez que acaba a inquisição, os métodos são substituídos pelos saberes peritos da ciência.


Ou seja, a bruxa era queimada na fogueira antes, e passou a ser internada, por exemplo na visão irônica do filme. O filme é cortante no sentido de comparar esses dois momentos. Utiliza de recursos estético de reconstituições, maquetes e stills e elementos de cenografia especializada. Assistimos aos vários demônios e monstros que o filme apresenta esteticamente. 




É uma visão bem feminista e realista dos processos históricos e culturais que envolveram as mulheres em posição de serem chamadas de histéricas ou controladas de alguma forma. Quando imaginamos que o filme poderia acabar de alguma maneira clichê, o filme compara a situação com as formas mostrando que a histeria vem da sociedade em produzir padrões de normalidade. 


O processo de haver magia mesmo no filme é para disfarçar que em todo seu conteúdo, há uma crítica direta ao processos de normalização de opressões vividas em nome de ter "medo" de algo.



O pré-modernismo brasileiro foi um movimento literário que ocorreu entre o final do século XIX e o início do século XX, caracterizado por uma postura crítica e questionadora em relação à realidade brasileira. Alguns dos principais autores desse período foram Euclides da Cunha, Lima Barreto, Monteiro Lobato e Graça Aranha. Eu não sei se o filme Haxan tem uma relação direta com o pré-modernismo brasileiro, mas é possível que haja algumas afinidades entre eles. Por exemplo, ambos abordam temas relacionados à violência, à ignorância, à superstição e ao conflito entre o tradicional e o moderno. Além disso, ambos apresentam uma forma de expressão artística inovadora e experimental, que rompe com os padrões estéticos vigentes, algo que Limite também vai beber bastante.


A extensão da comparação é muito grande, na última cena do filme, pode ser uma sugestão ou impressão apenas minha, mas não creio. A cena de casas queimando pode sugerir que o pensamento inquisitorial permaneceu em seitas como a KKK e o racismo em sociedades como a norte americana, são exemplos de irracionalismo moderno. É uma crítica ao irracionalismo que jamais passaria no crivo de censura dos estúdios e das grandes produções modernas, se você se interessa pela história da bruxaria, esse é o melhor filme e mais realista de todos. 


Assista o filme aqui:







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