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El Topo (1970): O faroeste experimental e surrealista de Jodorowsky que desafiou os limites da linguagem cinematográfica



Em uma jornada mística pelo deserto, El Topo, um pistoleiro de preto, enfrenta quatro mestres do tiro que representam diferentes religiões e filosofias. Mas ao invés de vencer com honra, ele usa trapaças e sorte, mas acaba sendo traído. Ele desperta de seu sono e decide libertar seus seguidores da opressão. El Topo é um faroeste polêmico, que brinca com a arte, misturando o western com o surrealismo e a experimentação cinematográfica



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El Topo está viajando por um deserto a cavalo com seu filho nu, Hijo. Eles encontram uma cidade cujos habitantes foram massacrados, e El Topo caça e mata os perpetradores e seu líder, um coronel gordo e careca. El Topo abandona seu filho aos monges da missão do povoado e parte com uma mulher que o coronel mantinha como escrava. El Topo chama a mulher de Mara e alguns dias depois a agride sexualmente. Ela o convence a derrotar quatro grandes mestres de armas para se tornar o maior atirador da terra e ganhar seu amor. Cada mestre de armas representa uma religião ou filosofia particular, e El Topo aprende com cada um deles antes de instigar um duelo. El Topo é vitorioso todas as vezes, não por habilidade superior, mas por truque ou sorte .


O filme pode ser dividido em duas partes: a primeira é a busca de El Topo pelos quatro mestres do deserto. A segunda é a sua redenção pelos pecados cometidos na primeira parte. O roteiro é cheio de simbolismos e referências religiosas, filosóficas e culturais, que podem ter diferentes interpretações. Um tema recorrente é as relações de poder por trás da violência, o sexo, a morte, a iluminação, o sacrifício e a transformação. 


A trama é basicamente a jornada de El Topo em busca de um sentido para sua existência, que passa por várias fases e desafios. Ele começa como um justiceiro que vinga os inocentes, mas se torna um assassino que mata os mestres do deserto por orgulho e ambição. 


Na primeira parte, El Topo representa o arquétipo do herói que busca a iluminação através de provas e desafios. Ele veste preto, a cor da morte e do mistério, e carrega consigo seu filho, que simboliza sua inocência e sua ligação com o passado. Cada mestre guerreiro que ele enfrenta representa um aspecto da sabedoria: o primeiro, a arte; o segundo, a religião; o terceiro, a filosofia; e o quarto, a natureza. Ao derrotar cada um deles, El Topo absorve seus conhecimentos, mas também perde sua pureza e sua humanidade.


Na segunda parte, El Topo representa o arquétipo do renascido, que se arrepende de seus pecados e busca a redenção através do sacrifício. Ele veste branco, a cor da vida e da pureza, e se dedica a ajudar os excluídos da sociedade. Ele descobre que os habitantes da caverna são explorados por uma cidade próxima, onde imperam a violência, a corrupção e a luxúria. Ele decide roubar o dinheiro dos ricos para construir um túnel que permita aos deformados sair da caverna e ver o sol. No entanto, seu plano fracassa.


Traído pela mulher que ama, ele é salvo por um grupo de pessoas deformadas que vivem em uma caverna e o consideram um deus. Ele se arrepende dos seus atos e tenta libertar os excluídos da sociedade. Ele reencontra o seu filho, que se tornou um monge e o odeia. Ele se sacrifica para explodir a caverna e permitir que os marginalizados saiam para a superfície. 



A moral do filme pode ser vista como uma crítica à violência, ao egoísmo, à opressão e à intolerância que marcam a História da humanidade. El Topo representa o homem que busca a iluminação, mas precisa enfrentar seus demônios internos e externos. Ele também representa a toupeira, que vive no escuro e fica cega quando vê a luz. Tudo que ele faz se torna uma solução, mas depois dá errado de maneira trágica. O filme sugere que o caminho para a salvação é o amor, a compaixão, a humildade e o perdão.


Algumas cenas precisam ser destacadas para tentar entender melhor o filme, que inicialmente pode parecer uma confusão, mas se assistido com calma é bem simples de entender, quase como uma animação. Por exemplo, a cena onde El Topo e seu filho atravessam o deserto e encontram uma aldeia massacrada por bandidos. Esta cena mostra a violência e a crueldade do mundo em que eles vivem, e também a relação entre pai e filho, que é marcada por um ensinamento rígido e uma despedida traumática.


A cena em que El Topo enfrenta o primeiro mestre guerreiro, um velho cego que vive em uma torre cercada por coelhos também é épica e muito visualmente impactante. Aqui vemos que a habilidade e a astúcia de El Topo, que usa um espelho para refletir o sol e cegar o seu oponente, tem algo de mitológico, quase como um herói de um conto grego. Também mostra a sua ambição e a sua traição, pois ele mata o mestre pelas costas depois de fingir ser seu amigo, revelando seu lado anti-heroico e trágico.


Também a cena da traição. El Topo é baleado pela mulher que ele amava. Esta cena mostra a queda de El Topo, que é traído pela sua própria paixão. Também mostra a sua redenção, pois ele é salvo pelos anões e os mutilados que vivem em uma caverna sob uma montanha sagrada. Essa revela sua influência de Deus e o Diabo na Terra do Sol. 


A cena em que El Topo acorda depois de anos em coma e decide ajudar os anões e os mutilados a sair da caverna. Esta cena mostra a transformação de El Topo, que se torna um homem santo e bondoso, disposto a sacrificar-se pelos outros. Também mostra a sua jornada espiritual, pois ele descobre os segredos da montanha sagrada e enfrenta os seus demônios interiores.


A luz do cenário político, fica evidente a reflexão de Jodorowsky sobre a esquerda mundial, principal da América Latina, e seus rumos. Em seu contexto, A maioria dos países da região passavam por ditaduras militares, inclusive o Chile de onde vem o diretor. As esquerdas tiveram que, por isso, passar do cenário do confronto direto, do banditismo e da guerrilha, para uma postura mais messiânica e religiosa, inclusive que explica a força dos movimentos de libertação. 


A cena final é muito impactante, enquanto o seu filho já adulto assiste horrorizado. Esta cena mostra o clímax da obra, que é uma explosão de violência e de simbolismo. Também mostra o ciclo da vida, pois El Topo renasce como uma toupeira e o seu filho assume o seu lugar como um pistoleiro. É obvio a referência a Jesus.


O filme El Topo foi produzido e lançado em um período de grande efervescência política e cultural no México e no mundo. O ano de 1970, foi marcado por movimentos sociais, guerrilhas, protestos, repressão, violência, contracultura, experimentação artística e busca por novas formas de expressão e libertação. Nesse cenário, o filme de Alejandro Jodorowsky se destaca por sua originalidade, ousadia, criatividade e contestação.


Todo o filme é uma crítica ao sistema político e social vigente, que oprime e explora os mais fracos e marginalizados, como os anões, os mutilados, os índios, as mulheres e os pobres. O filme também pode ser visto como uma alegoria da jornada do homem em busca de si mesmo, de sua identidade, de seu papel no mundo e de sua transcendência. 


O filme é repleto de semiótica: alegorias e símbolos que remetem à religião, à mitologia, à psicologia e à política, algo similar aos cinema novistas brasileiros. Por exemplo:


O deserto representa o vazio existencial e a busca pelo sentido da vida.


O sol representa o conhecimento supremo e a iluminação espiritual.


A toupeira representa o animal que cava túneis no subsolo e que fica cega ao ver o sol, simbolizando a dificuldade de compreender a realidade.


A mulher representa a tentação carnal e a traição amorosa.


A cidade representa a decadência moral e social da civilização.


A caverna representa o isolamento e a opressão dos marginalizados.


O túnel representa a esperança de libertação e de integração social.


Sua recepção foi controversa e polêmica, sendo censurado em alguns países e aclamado em outros. John Lennon exigiu que a Apple comprasse seus direitos para exibi-lo para um público maior. O filme também foi considerado um dos responsáveis pelo fenômeno dos midnight movies, filmes cultuados em sessões noturnas


A direção desse filme é de Alejandro Jodorowsky, que também é o roteirista e o protagonista. Jodorowsky é um artista multifacetado, que trabalha com cinema, teatro, literatura, quadrinhos, música e esoterismo. Ele é considerado um dos expoentes do cinema surrealista e um dos precursores do cinema fantástico latino-americano.


Jodorowsky marca sua visão pessoal e original, que mistura elementos de diferentes culturas, religiões, filosofias e artes. Ele cria um universo próprio, repleto de simbolismos, metáforas, alegorias e referências, usando recursos estéticos como o contraste de cores, o uso de planos abertos e fechados, a montagem não linear e a trilha sonora variada. Sua direção é elogiada por sua criatividade, ousadia, inventividade e expressividade. Ele consegue criar cenas impactantes, belas, perturbadoras e memoráveis. Ele também consegue extrair boas atuações de seus atores, especialmente dele mesmo, que interpreta El Topo com intensidade e carisma.


Mas há quem critique a direção de Jodorowsky também é criticada por sua pretensão, excesso, confusão e violência. Ele às vezes parece querer chocar e provocar o público sem um propósito claro. As cenas de sangue, sexo, crueldade e sacrilégio que podem ser consideradas gratuitas e ofensivas.


Algumas das influências do filme El Topo são o cinema surrealista de Luis Buñuel, especialmente o filme Un Chien Andalou (1929), que também usa imagens chocantes e simbólicas para questionar a realidade e a moralidade. Também o cinema fantástico de Federico Fellini, especialmente o filme 8½ (1963), que também usa elementos autobiográficos e oníricos para retratar a crise existencial de um artista. Também é clara a influencia do cinema western de Sergio Leone, especialmente o filme Era Uma Vez no Oeste (1968), que também usa o cenário do deserto e a trilha sonora de Ennio Morricone para criar uma atmosfera épica e mítica.


A literatura de Carlos Castaneda, especialmente o livro A Erva do Diabo (1968), que também narra a jornada espiritual de um homem que entra em contato com uma cultura indígena e com uma planta alucinógena; também inspirou muito El Topo. Outra influencia de Jodorowsky é a filosofia de Friedrich Nietzsche, especialmente o conceito de super-homem, que também propõe uma transvaloração de todos os valores e uma busca pela afirmação da vida.


O cinema de David Lynch, especialmente o filme Cidade dos Sonhos (2001), que também usa uma narrativa não linear e surreal para explorar os mistérios da mente humana e da indústria cinematográfica, foi muito influenciado por El Topo.


Também o cinema de Quentin Tarantino, especialmente o filme Kill Bill: Volume 1 (2003), que também usa a violência estilizada e o humor negro para homenagear os gêneros cinematográficos que ele admira, como o western e o kung fu. Outro influenciado é o cinema de Gaspar Noé, especialmente o filme Enter the Void (2009), que também usa uma câmera subjetiva e psicodélica para mostrar a experiência de um homem que morre e reencarna em um ciclo de vida e morte.


Já o seu pistoleiro de preto, parece influenciado por João das Mortes de Glauber Rocha e pelo Homem sem Nome de Eastwood/Leone, mas levando isso a um certo extremo.


O filme apresenta uma estética original e inovadora que ainda influencia e inspira diversos artistas contemporâneos, como os cineastas, os músicos, os quadrinistas e os pintores que já citei anteriormente. Assim, propõe uma experiência cinematográfica única e desafiadora que ainda provoca e instiga o público, que pode ter diferentes interpretações e reações diante das imagens chocantes e simbólicas que ele oferece. Um filme memorável, único, uma obra de arte. Mais muito profundo e denso, podendo desagradar alguns. Porém, se curte um faroeste diferenciado, vai gostar.



História por trás do filme


Criando um subgênero totalmente novo, o chamado 'western ácido', El Topo é uma mistura inebriante da filosofia chinesa, do Zen Budismo, da astrologia, do sufismo, do surrealismo europeu, da Cabala e, acima de tudo, o tarô, uma paixão de toda a vida de Jodorowsky, que escreveu muitos tratados sobre o assunto e criou seu próprio baralho. Nessa mistura avassaladora de alegorias desconcertantes, é justo dizer que a história ou o enredo não são uma prioridade e, como acontece com os significados intuitivos do tarô, você precisa sintonizar ou desistir.


O fato de ter se tornado um sucesso cult em 1971 em Nova York era uma questão de hora certa, lugar certo. Não é difícil ver seu apelo para Lennon, os Beatles e outras luzes importantes da contra-cultura contemporânea, que estavam olhando para o Oriente em busca de novas filosofias de expansão da mente. 


Embora até os mais esotéricos malucos da época lutassem para acompanhar Jodorowsky, poucos percebem sua ironia hilária, por exemplo, de uma entrevista de 1971 insistindo que “um pedaço de queijo pode ser Cristo” para um perplexo  jornalista.


A odisseia artística intransigente de Jodorowsky começou quando ele trocou o Chile por Paris na década de 1950 para estudar mímica com Marcel Marceau. Aqui, seus curtas-metragens baseados em mímica logo chamaram a atenção de Jean Cocteau. Mudando entre Paris e a Cidade do México, ele se envolveu no movimento 'Pânico', um grupo de teatro experimental caótico criado em 1962 por uma crença de que o surrealismo moderno estava se tornando muito acessível. Eles criaram mais de 100 peças, ou 'acontecimentos', como Melodrama Sacramental, um melodrama de quatro horas que supostamente envolvia Jodorowsky cortando a garganta de dois gansos e prendendo cobras em seu peito, algumas mulheres nuas cobertas de mel, uma galinha crucificada , uma vagina gigante e uma lata de damascos. 


Mas o artístico e o espiritual sempre estiveram entrelaçados. Um showman também venerado como um xamã, ele oficiou o casamento de Marilyn Manson com Dita Von Teese em 2005. Jodorowsky passou décadas desenvolvendo sua própria marca única de terapia chamada 'psicomagia'. 



Sua crença central é que a realização de momentos traumáticos importantes pode curar as feridas psicológicas de uma pessoa. Seus próprios filmes se desenrolam como sombrios melodramas freudianos. Literalmente nascido de um trauma, depois que seu pai abusivo estuprou sua mãe, Jodorowsky voltou à vida, indesejado e mal-amado, na cidade costeira chilena de Tocopilla em 1929. Crescendo, ele foi ridicularizado por ser um imigrante judeu - seus pais se originaram do que é agora conhecido como Ucrânia.


A exploração de crianças, as pessoas com deficiência e uma critica a crueldade implacável para com os animais, visto que Jodorowsky é um vegetariano ao longo da vida, são o que datam seus filmes hoje. Ele também foi muito criticado por supostamente ser misógino. El Topo apresenta uma cena de estupro entre El Topo (interpretado por Jodorowsky) e Mara. Em 1972, Jodorowsky disse brincando ter acontecido de verdade, algo que ele rejeitou em 2019 dizendo que eram apenas “publicidade surrealista” da qual agora se “lamenta”.


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