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A Dama Oculta (1938): Filme critica o acordo dos ingleses com os nazistas, que marcou a ida de Hitchcock para Hollywood


A Dama Oculta é um filme de Alfred Hitchcock. Escrito por Sidney Gilliat e Frank Launder, é baseado no livro de suspense, "The Wheel Spins", da escritora inglesa Ethel Lina White. Iris, que está noiva, resolve viajar em uma despedida de solteira com as amigas em um dos "últimos lugares da Europa ainda não descobertos": Bandrika (país que simboliza a Alemanha). Ela vai dem trem transcontinental. Iris conhece uma senhora simpática, que bebe apenas seu "chá especial" e faz amizade com a moça. Porém, de repente, a senhora some do trem sem deixar vestígios, enquanto todos passam a negar a existência da senhora. Iris passa desconfiar de uma conspiração então achar pistas da velha senhora junto com o músico Gilbert


Assista ao filme no final deste artigo


Crítica do filme


Um filme histórico, perceptivo e extremamente poderoso enquanto ferramenta informacional. Em 1938, o regime nazista conseguiu suas últimas vitórias antes do mundo inteiro entrar em guerra contra eles. Mas o ministro inglês da época entrou para a história como alguém que fez pacto com os nazistas(um famoso "arregão"), o intuito de Hitchcock era criticar como que as pessoas do Reino Unido achavam que assinando esse acordo Hitler deixaria o Reino Unido em paz, algo que Hitchcock discorda completamente nesse filme. 


A Dama Oculta foi filmado nos estúdios em Gaisborough, Islington em Londres. Hitchcock chamou realmente atenção de Hollywood com o filme e ele se mudou para lá depois do lançamento. Isso fez com que David Selznick fizesse contrato com o diretor. É a primeira adaptação de Hitchcock do de uma série de três da escritora. 


O contexto histórico do filme é grande e pesada. Considerado por parte da crítica especializada como um filme satírico, vai para muito além disso. Considero que o tom engraçado de brincar com as nacionalidades e arquétipos e até mesmo de ridicularizar o "tipo inglês médio" fica muito claro. 


O contexto é o da Segunda Guerra mundial e o acordo de Sudeto (ou Acordo de Munique), onde o Reino Unido de Chamberlain assinou um acordo de permitir a anexação por Hitler da região das montanhas dos Sudetos, na Tchecoslováquia. Este episódio ilustra melhor do que outros o fracasso da "política de apaziguamento".


 Esse acordo gerou grande raiva do Reino Unido, uma postura de concordância, pois simboliza a aceitação de uma das nações mais "neutras" do mundo ao nazismo e seu sistema de informação, quando na Primeira Grande Guerra, foi a Inglaterra que perdeu toda uma geração de homens para "salvar a Europa", e agora em 1938, ano de lançamento do filme é assinado o fatídico acordo. Por isso que esse filme lembra em muito o livro de George Orwell: "1984", onde pessoas eram apagadas dos registros da sociedade. Mas como o filme é muito bem feito, essa parte da crítica passa quase sem perceber, e pensamos junto com a sociedade doente que o problema é a paranoia da garota. 


Sobre a senhora, podemos fazer todo um parágrafo sobre quem ela é e o que ela representava no filme. Uma senhora muito educada e boazinha, que apenas queria tomar "o seu chá" para a equipe do trem, um tipo de chá de milhares de anos, vendido na farmácia para curar insônia (lembra alguma erva?)Essa senhora era possivelmente uma espiã do governo contra os nazistas e por isso que tentaram "apagar ela". O filme brinca com um dos mais importantes elementos da constituição de uma narrativa, a continuidade 


O filme é extremamente sério e reflete algo de muito mais substancial do que aparece apenas pela sua miss en scene e montagem geral. Truffaut dizia sobre esse filme, que toda vez tentava apenas focar na genialidade da forma, mas que se esquecia ao passo de assistir o filme, que faz você ficar totalmente envolvido na estória corrente dos personagens. Concordo e muito com essa fala do Truffaut, sinto a mesma coisa assistindo o filme uma terceira vez, percebemos detalhes que não tínhamos percebido de início. 


Como as pequenas referências ao clima político e a nacionalidades na Europa, ao falar dos italianos em parte, e dos alemães criando um nome fantasia para seu tipo de povo, os alemães seriam infantis e selvagem no coração, como a senhora mais velha defende, mas aí é comentado pelo músico "mas não se reflete na política deles", dizendo que essa "inocência" alemã não estava na política dos nazistas, é uma crítica explícita. Mais do que isso, esse filme é uma chamada para todo polo inglês se mobilizar para parar os nazistas, como evidenciado na cena onde o típico inglês médio, Mr. Todhunter (Cecil Parker) sai do trem para se render os nazistas com um guardanapo branco na mão (símbolo universal de paz), e o cara é morto na hora sem trégua. 



O filme diz que até o mais educado dos ingleses seria considerado inimigo. Precisamos falar da genialidade da crítica desse filme, o suspense do filme está para além da tela, um dos primeiros filmes onde o que está fora da tela influenciou, como brincou a cena onde descobrem os truques do ilusionista no trem, ou quando nós mesmos quase não percebemos que a senhora desapareceu do trem. O filme retrata com ousadia o clima de ignorância e arrogância que poderia fazer os alemães da época dominarem os ingleses, na opinião do diretor. 


Essa ideia de uma "cegueira" inglesa durante a Segunda Guerra está muito presente no filme. Mesmo quando contemplados com a informação de ter mesmo alguém desaparecido, não acham e não dizem para não se implicarem, uma ideia de automatização da informação e da concordância de todos com todos com os espiões de "Bandrika". Uma curiosidade é sobre a última cena, o clímax final do filme, não tinha no livro original, sendo específica para o cinema. Na cena, os ingleses dentro do vagão estão morrendo de medo tentando se proteger do ataque dos espiões de Bandrika. Hitchcock brinca com essa cegueira de uma maneira divertida, mas sempre muito sério em suas intenções finais. 


Os passageiros que tentaram ficar no trem eram em sua maioria, os ingleses, uma freira, um antigo espião que agora estava do lado inglês e outros 4 personagens de Bandrikan, mostrando o perigo do autoritarismo bem na frente deles, apesar da tentativa de todos ignorarem o problema o máximo possível em nome do apaziguamento e do medo. 


Em um dos momentos, um espião de Bandrika entra e tenta convencer os passageiros a se entregar, em resposta, um deles até diz "Bem, como somos ingleses, eles não podem fazer mal a nós", brincando com a noção errônea de se achar parte de recorte de proteção dos nazis em meio a um conflito internacional. 


O único passageiro que duvidava das ameaças foi Mr. Todhunter (Cecil Parker), que recusa a emprestar sua arma para os passageiros, e ainda fica indignado. Apesar de toda a certeza de proteção que os passageiros ingleses sentiam 


História por trás do filme


A senhora Froy (Dame May Whitty), é o personagem mais importante do filme, ela passa uma mensagem codificada para Gilbert para entregar de volta para o escritório das relações internacionais britânico. Senhora Froy escapa pela floresta, enquanto Gilbert e os outros traçam um plano de tomar o trem dos trabalhadores que trabalhavam no maquinário. 


O filme foi inspirado em um caso real, ocorrido e Paris em 1880, em um hotel onde todos negaram a existência por ele ter morrido de doença de contágio, sendo essa história específica contada no filme de Terence Fisher em 1950 "So Long at the Fair". O filme deveria ir para as mãos de outro diretor, Roy William Neil, responsável pela adaptação do livro de Arthur Conal Doyler na série clássico dos anos 1940, Sherlock Holmes, com Basil Rathbone e Nigel Bruce. 


Os truques ilusionistas do filme e do diretor são clássicos, o uso de maquetes, técnicas de luz e som ajudam a fazer os truques que fazem o espectador não duvidar um momento de que estão assistindo um filme sério, o que é a grande sacada do cinema como um todo. O início do filme mostra essa "terra de contos de fada" onde o filme estava ambientado. 

A cena clássica onde Miss Froy conta que era uma professora de música e governanta, e que viveu 6 anos no país. Ela disse "Todo mundo canta aqui, as pessoas são como crianças felizes", aí dizem "Isso não se reflete na política deles", e Miss Froy completa, "Você nunca deveria julgar um país apenas por sua política". Um diálogo totalmente moderno e que você não vê em todo filme. 


Mas  o  que  mais  nos  surpreende ainda  hoje  em dia  é  a  perceção  de  Hitchcock  não  só  daquilo  que  estava  já  em  marcha  na  Europa  e  no  mundo  em  1938, mas  também  a  sua  extraordinária  capacidade  de  prever  alguns  dos  aspetos  mais sórdidos  do  Nacional  Socialismo  e  do  Holocausto. 


 

O  documentário  de  sua  autoria sobre  a  libertação  de  prisioneiros  judeus  e  outros  dos  campos  de  concentração alemães  depois  do fim da  Segunda  Grande  Guerra é  um  exemplo   da falta de  aguda  consciência  e  sensibilidade  temporal,  contradizendo  uma  leitura  da sua obra como alheia à dimensão contemporânea da História.


Os mágicos eram conhecidos por fazer truques e enganar as pessoas. Era o que o Signor Doppo estava fazendo do início ao fim do filme. O que pode ser uma crítica ao carácter "amigo" dos italianos, mas que poderia por fim colaborar com Bandrika, enganando os passageiros britânicos. Bandrika era uma óbvia referência aos nazis e a Alemanha, dizendo que eles seriam praticamente bárbaros dentro do ocidente, uma clara ironia em relação ao ideal de pureza e superioridade dos alemães. 


A Dama Oculta passa para a história como um grande filme, crítico, incisivo e muito avançado em suas técnicas por ter um diretor tão bom quanto Hitchcock, um dos 10 diretores do cinema mundial. Hollywood percebeu nesse filme que teria que "salvar" Hitchcock da destruição que seria a Segunda Guerra. 


Para evitar os conflitos, houve essa tentativa de aceitar os nazis por parte do "jeitinho inglês", o aviso de Hitchcock é que se o jeitinho inglês viesse junto com covardia, então não seria algo bom. Esse aviso acredito que ensinou toda uma geração de homens ingleses a se portar ideologicamente e a ver a Alemanha como inimiga. 


No filme, vemos também a questão das screwball comedies e do lado mais humorístico dessa sátira sobre os padrões ingleses, as "comédias sexuais sem sexo" de Hollywood ensinavam metáforas , Hitchcock brincou com isso na cena onde a moça se incomoda com Gilbert "tocando seu instrumento", o que com certeza se confirma na cena seguinte, onde ele sabe que foi ela que o denunciou, então ele "perturba ela em seu quarto" por conta do barulho. 


Essa cena, junto com o fim, quando vemos o verdadeiro noivo da jovem, e ela se esconde dele, provando que apesar dela ter segurado a postura do romance até ali (afinal, eles estavam investigando algo sério), ela teria que tomar uma decisão, e sua decisão foi ficar com Gilbert (o músico). O filme é aliviado de suas tensões com esse final romântico. 


Fica para a história como o filme que avisou sobre a ascensão do autoritarismo da extrema-direita alemã, algo muito avançado para a estrutura do cinema da época que ainda era básico demais para reproduzir uma boa crítica a algo tão sério quanto a maldade nazista. Esse filme é um dos melhores de Hithcock exatamente por sua coragem em ter uma posição política, quando Hitchcock era considerado por muitos um cara "neutro", de filme de gênero clássico e de Hollywood.  Em Psicose ele colocou fim diversos elementos do código de censura e inovou por fazer uma trama onde era o filme que falava acima de formatos e guarda-chuvas conceituais. Depois também com Topázio, ao criticar a Guerra-fria. Apesar disso, foi ele que brigou com os estúdios para filmar a modernidade. Um ousado e inovador que nunca parou de influenciar o cinema. 


Assista ao filme aqui:







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