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Mais Estranho que a Ficção (2006): Filme tenta pensar o quanto a narrativa ficcional imita a vida e o quanto a vida se inspira na ficção




Harold Crick é um agente da receita que vive uma vida solitária de rotina estritamente programada. No dia em que ele é designado para auditar uma padeira intencionalmente inadimplente, chamada Ana Pascal, Harold começa a ouvir a voz de uma mulher narrando sua vida. Quando seu relógio de pulso para de funcionar e ele o redefine usando o tempo de um espectador, a voz narra que essa ação acabará resultando na morte de Harold. Harold consulta um psiquiatra que sugere que ele consulte um especialista em literatura (Dustin Hoffman) para ajudá-lo


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Crítica do filme 


Esse é um filme interessante para aqueles mais interessados em roteiro e narrativa. Apesar de ser uma produção americana mainstream, o filme não é muito conhecido justamente por sua proposta demasiado densa escondida em uma fachada de filme comum de comédia romântica. 



A ideia do filme, resumindo em muito, parece simples mas não é. O ponto do filme é que todo mundo tem uma constante perspectiva narrativa para lidar em sua própria vida. Ou seja, toda vida parece com um filme ou um livro pois essas "mídias" se inspiraram na vida real e na sua própria visão objetiva de autor para criar a peça. Isso implica em um fator provocativo do filme: mesmo quando não estamos narrando, contando nada ou fazendo nada, ainda assim estamos aplicando o principio narrativo da escolha e gerando tramas, tediosas ou não, para nossas próprias vidas. 


Ao perceber isso, o protagonista e personagem principal da trama tenta uma alternativa interessante: não sair mais de casa. Ele tenta ficar em casa só assistindo televisão, mas então tudo puxa ele para fora narrativamente. Na televisão, toda a programação é ruim e deixam o espectador ansioso. Seu apartamento, de repente, parece mais pequeno. Quando, apesar de seu esforço, uma bola de destruição aleatória invade sua parede por engano, errando o endereço da demolição. Entenderam a piada? É impossível parar de narrar ou parar a própria vida, mesmo que se queira. 



Vejamos por outro prisma para entendermos o real sentido dessa sequência (talvez a mais simbólica do filme). Em uma análise simplista podemos pegar a mensagem filosófica do processo e interpretar que é "impossível desistir". Você sempre será obrigado a fazer certas coisas e tomar certas decisões, inclusive políticas. Essa interpretação até que é boa, mas está se perdendo o horizonte que norteia o filme: o fato do protagonista do filme, Harold, mesmo dentro do filme ser um personagem fictício. Ou seja, o que marca a diferença dele para mim, é a capacidade de em nossa vida nossas escolhas valerem. Assim, se eu decidir ficar em casa, provavelmente nada acontecerá, a não ser que eu seja um personagem em uma trama de alguém. Em outras palavras, em uma pegada meio Descartes, eu sei que eu sou real pois sou capaz de narrar, tomar decisões, que acontecem ou não.



O fator cômico é que um personagem está fadado a trama criada pelo autor para ele, enquanto as pessoas de verdade, supostamente, são racionais e podem tomar as próprias escolhas. O problema é que aqui reside uma interpretação de meritocracia escondida. É claro que, narrativamente, eu sempre terei de sair de casa, por exemplo, quando a comida acabar e eu tiver que comprar mais. Assim, uma analise simplista pode interpretar que é impossível ser feliz pois todas as escolhas estão pré-condicionadas. Assim, é impossível fracassar, pois seria "só" continuar se esforçando.


A problema talvez seja mais profundo: seria impossível desistir, pois a regras sociais que eu não criei, e isso é um problema. Isso é que talvez podemos chamar de "processo narrativo", ou seja, ainda que eu desista, certas escolhas ainda terão que ser feitas. Em um personagem, o processo narrativo é mais forte e ele necessariamente é atravessado pelo seguimento da estória, uma pessoa será afetada pelo interesse e engajamento, ou não, que dá para certos acontecimentos. Estamos escolhendo, mesmo quando não escolhemos. 


Isso se assemelha claramente nas ideias sobre tempo e narrativa do autor Paul Ricoeur, que pensava que apesar dos dilemas morais, ideológicos e políticos da humanidade e do pensamento, a "pessoa" (o ser humano) continuava no centro dos debates, ou seja, através da ideia de "humanidades". Esse autor claramente inspirou o filme, na medida que as escolhas do personagem e na forma de contar a história do filme é marcada pela forma de falar sobre a "pessoa", em sua normalidade estranheza, e nas excentricidades da forma de narrar o filme.



Resumindo, o filme quer ressaltar que o legal de ser uma pessoa de verdade é que você pode não escolher algo, dizer não, e lidar (ou não) com seu próprio fracasso, pois ele é narrativamente construído através dos seus valores, desejos e moral. Assim, é muito mais uma reflexão do quanto podemos ser personagens de nos mesmos mais do que, estipulando e determinando características ou ritos desnecessários a nos mesmos. Se a vida tem um aspecto narrativo que da seguimento as coisas, também é a força que relativiza seu efeito. Somos senhores de nossas próprias vidas, mas também o destino e a aleatoriedade da vida atrapalha, frustra e orienta nossas escolhas, alterando muitas perspectivas e planos originais. 


Dando um pequeno spoiler do filme, Harold é um personagem de um livro. De uma autora que é conhecida por matar seus personagens, porém está tento um bloqueio criativo de como matar Harold.



Esse é um ponto muito interessante para quem trabalha com a escrita, pois de fato por vezes, por mais que seu exercício de escrita seja apenas descrever uma morte, você trava. É preciso refletir o motivo de escrever, para quem se está escrevendo para ter inspiração. Só que as vezes isso bloqueia e... é difícil! 



O ponto é que o filme e dividido em dois níveis narrativos: o nível de Harold, que seria assim "duas vezes" ficcional. E o da autora do livro, que é um plano ficcional que emula a nossa realidade. Isso é importante de ter em mente ao posicionar em nossa mente os personagens e os arquétipos respectivos as cenas. 


Por exemplo, o professor acadêmico de literatura da universidade que Harold vai consultar para entender porque está ouvindo uma voz narrando em sua cabeça. O professor é ninguém menos que Dustin Hoffman, em uma interpretação genial. Seguindo o que eu disse sobre os dois níveis narrativos, todas piadas de seu personagem envolvem a projeção da escritora do que seria o trabalho acadêmico, dos professores que leem, analisam e escrevem resenhas de seus livros. Assim, como um personagem de seu livro também, o professor é sempre descrito como fazendo atividades excêntricas e aleatórias, ou simplesmente relaxando deitado ou na piscina da faculdade.



O grande defeito do filme talvez esteja no romance de Harold com a confeiteira a qual ele está auditando. Até é interessante a brincadeira que eles fazem de que cenas como comida são sempre metáforas sexuais nos filmes. Mas não se sustenta muito a ideia dos diferentes e do burocrata que se apaixona pela vida desregrada. Esse talvez seja o ponto mais fraco do filme, que reflete mais uma filosofia coach para empresários que é preciso "tirar a gravata". Algo que é óbvio demais do filme e, em geral, antirromântico na medida que coloca a mulher como um "problema narrativo" que entra na sua vida. 



No final, é um filme diferenciado e isso é bom. Entretanto, bem simples e médio em sua estética e proposta em geral. Assim, se você quiser um filme que seja mais do mesmo mas que surpreenda e inove justamente nisso, o filme é perfeito para você. Mas, se você não curtir comédias românticas ao estilo americano de maneira nenhuma, todo o filme será um grande mais do mesmo, com o acréscimo de ser complexo em uma proposta quase acadêmica de debate. 


O meu ponto é que esse filme está no limiar entre ser um filme bom e um filme ruim. Existe um forte problema de gênero nele, uma vez ele quer ser uma comédia, mas ganha vários contornos de drama tão sérios que anulam completamente a "graça". A proposta inicial é muito boa e se vende de maneira automática, claro, demonstrando certo poder de convencimento inicial, justamente porque o filme não vai se sustentar, entendem?! Parece que o filme faz uma pegadinha com a audiência, onde apesar de refletir os contornos de sua estrutura narrativa e problematizar certos pontos pré concebidos, termina com a mesma ideia classe média burguesa e americanizada de qualquer outro filme do gênero, com um final que deixou bastante a desejar. 



História por trás do filme


Em 2001, o escritor Zach Helm estava trabalhando com o produtor Clarence Helmus em um projeto que eles chamaram de "The Disassociate". Helm chegou a Doran com uma nova ideia envolvendo um homem que se vê acompanhado por um narrador que só ele pode ouvir. Em seguida, Helm decidiu que o narrador deveria afirmar que o homem vai morrer porque, como Helm descreveu, "há algo muito poético sobre a compreensão do lugar de alguém no universo, mas é muito mais dramático quando tal compreensão ocorre apenas alguns dias antes que a vida termine". Helm e Doran começaram a se referir ao novo projeto como "The Narrator Project" e desenvolveram a história através de um processo de Helm trazendo ideias e fazendo perguntas a Doran. Uma das principais ideias de Helm envolvia envolver a forma do filme tanto quanto seu conteúdo.



Helm nomeou cada um dos principais personagens do filme em homenagem a um famoso cientista ou artista cientificamente influente, exemplos como Crick, Pascal, Eiffel, Escher e Hilbert. Quando o personagem do Dr. Hilbert diz a Harold que ele elaborou uma série de 23 perguntas para investigar o narrador, é uma referência divertida aos 23 problemas de Hilbert. O título do filme deriva de uma citação de Lord Byron: "É estranho – mas verdadeiro; pois a verdade é sempre estranha, mais estranha do que a ficção". 


Segundo Helm, um dos grandes temas do filme é a interconectividade. Helm declarou: "Cada um desses personagens acaba fazendo pequenas coisas para salvar um ao outro. Há um tema subjacente de que as coisas que mais tomamos como garantidas são muitas vezes as que fazem a vida valer a pena e realmente nos mantêm vivos. "



O filme foi filmado em locações em Chicago, Illinois. O apartamento de Dave, no qual Harold se instala depois que seu próprio prédio é parcialmente demolido, faz parte dos Condomínios River City. O escritório de Hilbert ficava em uma sala de aula na Universidade de Illinois em Chicago. O CNA Center na 333 South Wabash Avenue in the Loop serviu como local para o escritório do IRS. A padaria que Ana Pascal administra está localizada no bairro de Little Village, em Chicago, e é chamada de La Catedral Cafe & Restaurant. O cinema do filme é o Logan Theatre, localizado no bairro de Logan Square. Muitos locais no centro de Chicago foram usados para cenas envolvendo Karen Eiffel, Penny Escher e Harold Crick. A Columbia Pictures distribuiu o filme. 


O filme foi parcialmente inspirado em Playtime (1967), a comédia visionária de Jacques Tati sobre a vida urbana moderna, e a cinematografia e o design de produção ajudam a criar um senso claustrofóbico de vida na cidade.


A música para este filme inclui partituras originais do esforço colaborativo de Britt Daniel (cantor / compositor de Spoon) e Brian Reitzell (compositor de Friday Night Lights, The Bling Ring e Hannibal), bem como uma mistura de canções de indie rock de vários artistas, incluindo Spoon. Reitzell também é o supervisor musical do filme. A trilha sonora inclui uma gravação original de "Whole Wide World", a música que Harold toca para Ana, de Wreckless Eric.



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