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A Rosa Púrpura do Cairo (1985): A declaração de amor ao Cinema Clássico e a Era pre-Code de Woody Allen




A Rosa Púrpura do Cairo é um filme de 1985 de comédia e fantasia, escrito e dirigido pelo mestre Woody Allen, estrelando Mia Farrow,  Jeff Daniels, e Danny Aiello. Inspirado em diversos filmes e obras do cinema e  antigo, como Hellzapoppin' (1941), ou Sherlock Jr. (1924) com Buster Keaton, ou mesmo a peça "Six Characters in Search of an Author"  de Luigi Pirandello. No filme, acompanhamos a vida de Cecilia, uma garçonete em um casamento infeliz, nos Estados Unidos de 1935. Ela assiste Tom Baxter no filme A Rosa Púrpura do Cairo (um clássico da RKO). Um dia, Tom sai da tela do cinema e entra na vida real, passando a viver um grande amor com a garçonete, onde ela lhe mostra o mundo real e ele a ensina a sonhar. 



Veja aqui onde assistir "Rosa Púrpura do Cairo"


O filme se passa durante a Grande Depressão, em 1935, em New Jersey, conhecemos a personagem da Cecilia (Mia Farrow), uma garçonete atrapalhada que vai aos filmes para ter uma folga de sua vida sem romance, e de seu casamento com Monk (Danny Aiello).  O último filme que Cecilia assiste é uma produção da RKO Pictures A Rosa Púrpura do Cairo, uma ficção sobre um dramaturgo Henry (Edward Herrmann) que embarca em uma viagem para o Egito com seus amigos Jason (John Wood) e Rita (Deborah Rush). Tudo que Cecilia (a garçonete) quer fazer é fugir da própria realidade enquanto assiste os clássicos do cinema americano. 




Enquanto estavam no Egito encontram o arqueólogo Tom Baxter (Jeff Daniels), que do nada, vai ter um fim de semana de volta típico em New York, com direito a carnival (parque temático), e viveram ali um romance típico de cinema, depois que ele quebra a quarta parede e conhece Cecilia (Mia Farrow), depois dela ter visto o filme várias vezes no cinema.  



Depois de Cecilia ter assistido o filme, Tom passou a reconhecer ela no cinema e sai do filme preto e branco dentro do mundo colorido "real". Ele fala para Cecilia que está atraído por ela, e eles passeiam na cidade de New Jersey. 


Eles se apaixonam, mas a saída de Tom da narrativa do filme gera um problema, tornando toda a estória muito chata, e fazendo os personagens brigarem entre si, tentando sair do filme. Ao saber que Tom "deixou o filme" na mão, o ator da "vida real" de Tom, o Gil, que tenta ir até New Jersey para convencer ele a voltar para o filme e acaba conhecendo Cecilia e fingindo se declarar para ela, ela abandona seu marido, e Gil abandona Cecilia e fica cheio de culpa ao voar de volta para Hollywood. 




Crítica do filme


O filme é maravilhoso, um dos meus favoritos não só do Woody Allen, mas no geral também. Além de ser uma carta aberta de amor ao cinema clássico e sua estilística. Sendo inspirado em clássicos  como Hellzapoppin' (1941), ou Sherlock Jr. (1924) com Buster Keaton, ou mesmo a peça "Six Characters in Search of an Author" (Seis personagens em busca de um Autor), de Luigi Pirandello. 



Hoje em dia, por exemplo, cinema não é nem mais possível como diversão para a classe popular, esse escapismo não é possível, logo o público dos filmes e a visão deles se torna muito elitista, até que alguém taca um "Parasita" na tela, assusta a todos e ganha prêmios com isso. Mesma coisa aconteceu com Cidade de Deus, aquele "bom susto" que te acorda e diz que as pessoas sagram o sangue vermelho e não azul. Eu sempre pensei que cinema fosse coisa de rico, na minha cidade, a nota de corte para fazer cinema sempre foi a mais alta (mais alta do que no curso de medicina, por exemplo). 



Esses gênios do curso de cinema na UFF (porque tem que ser muito gênio para fazer em um curso desses), nunca aparecem fazendo filme por aí, quando um cineasta da nossa cidade ficou famoso, ficou famoso depois de cursar DIREITO e não CINEMA, então para que tanto elitismo no cinema? Qual o motivo de acharmos que nós pobres temos que nos contentar com a burocracia, o clientelismo, e querer da vida apenas o concurso e o puxa-saquismo de sempre, quando os ricos estão lá tentaram fazer as "artes liberais" com completo apoio e suporte dos seus pais e entes queridos? 


Essa é também uma reflexão que gera filmes inspiradores e profundos em filosofia como A Rosa Púrpura do Cairo. Outra reflexão, porque o pobre ao querer fazer cinema ou falar de cinema é considerado vagabundo, mas o rico não, para ele tudo pode, tudo está sempre em seu alcance. Porque é um triunfo as artes liberais pros ricos, e considerado perda de tempo se o indivíduo for pobre?


Vemos que a mocinha do filme vai assistir uma produção dos estúdios da RKO (conhecido como um dos 5 estúdios grande estúdios americanos), era o estúdio que gerenciava a carreira de astros também citados no filme, Fred Astaire (conhecido por ser um grande ator de musicais), Ginger Rogers, e depois, Katharine Hepburn, e Robert Mitchum. Depois de muito assistir ao filme, Tom deixa a tela por reconhecer na audiência a mesma pessoa vindo sempre para vê-lo. Mostrando esse momento onde o filme se sente "assistido", quase como se fosse conhecer intimamente uma obra assistir ao seu conteúdo várias e várias vezes. 


Woody Allen, que é um grande conhecedor de cinema nos demonstra uma grande mudança no perfil do filme típico de cinema. Em 1929, começou uma grande crise econômica, os filmes tentavam dar ao povo uma sensação de aventura e cosmopolitismo perdido. Por isso o estilo de filmes sobre o aventureiro arqueólogo, ao estilo o que vemos depois com Indiana Jones, ou filmes mais bobos como A Múmia (2001). 


Temos um filme aqui que é único, discutindo a função do cinema em tempos de crise e também o gênero de filme. O cinema passou a ter uma importância absoluta na sociedade americana após a crise de 1929, com a a implementação das novas tecnologias, como o uso de música nas salas de cinema (o som ao redor, orquestras, pianos), como também o uso do cinema agora para suprir a falta de tudo que tinha a população americana. O uso do som, marcado pela transição nas produções em Hollywood em filmes como The Jazz Singer (1927), um dos primeiros filmes produzidos pela Warner com a tecnologia do Vitaphone. 



No fim do filme, A Rosa Púrpura do Cairo é substituído por um filme de romance/musical com Ginger Rogers e Fred Astaire, mostrando a mudança dos filmes de aventura na crise, para um momento que os musicais românticos substituem os antigos filmes de aventura com temáticas exóticas e orientalistas. Era um acordo para pacificar o sentido da censura dos filmes pré-codes (ao estilo de filme A Rosa Púrpura do Cairo, ou O Chá de General Yen), filmes que parecem sonhos, mas que pareciam transparecer a fórmula gerada ao discutir com o escritório de censura. 


No filme, há certo cuidado em ambientar pôsteres de mágicos famosos (the great carter), ou mesmo de comédias pré-code, como "Min and Bill"(filmes feitos antes dos mandamentos do escritório de censura). 




Em 1935, os Estados Unidos diminui sua carestia com o plano do New Deal, logo os tempos são felizes, e as pessoas podem ir ao cinema para ver diretamente romance, e não um romance através de uma fórmula viciada para um audiência carente. Ao mesmo tempo, que os filmes de pré-code, ou mesmo as screwball (filmes de sexo sem sexo, como Aconteceu Naquela Noite), foram armas contra a implementação dos grandes códigos de censura, e ao mesmo tempo, eram filmes feitos com fórmulas narrativas para passar por essa peneira. 



Narrativas com elementos como beijo, sexo fora do casamento, dois jovens em um quarto sozinhos, tudo isso foi proibido formalmente até os anos de 1960 quando Hitchcock burlou várias dessas regras ao fazer o filme Psicose, e começar o filme com um casal transando em um quarto, depois no filme, ele também colocou a imagem de banheiro e do vaso sanitário em seu filme (algo que também estava nos códigos de censura como proibido). 




O que isso significa de grandioso? Significa que em 1935, os Estados Unidos começava a se recuperar economicamente, as pessoas não queriam mais tanto o estilo de aventura de histórica orientalista, como por exemplo o filme "O Chá de General Yen", também do mesmo estilo, feito na mesma época. 


Quando todos pedem a volta de Tom Baxter (o aventureira explorador que agita toda a narrativa sem graça da elite), para o filme e seu elenco, eles percebem que são apenas acessórios do plot dele (de aventura), sem ele, o filme é completamente sem graça! 



Isso também ajuda a refletir uma mania de gênero, com a crise de 1929, os filmes sobre romance e escapismo para algum lugar oriental tiveram um grande aumento e sustentaram a indústria, é a época da ascensão da cultura de musas, galãs e divas da MGM (vários atores até de origem humilde que faziam fonoaudiólogo e treinavam para soar mais "ingleses" e burgueses em suas atuações), o filme que tem esse modelo mais completamente descrito, mas que é já de 1940, é o filme clássico Casablanca. 



A ironia absoluta de Woody Allen faz a gente perceber escalas de humor diferenciadas. A discussão sobre romance e cinema também é muito boa, essa diferença entre personagem/ator/autor é uma constante para Woody Allen que acabou protagonizando seus maiores sucessos, sempre sempre alertado sobre o carácter "intelectual" e "distante" que poderia ter. 



O filme se passa em 1935, nossa heroína vai ao cinema para escapar de sua realidade. A reflexão aqui é que consideramos hoje em dia cinema algo arte da elite, quando nessa época, era o próprio cinema o alimentos para as massas famintas (hoje em dia, os pobres nem vão aos cinemas), por exemplo. 



Este último sendo a verdadeira influência para o debate sobre os personagens e sobre os autores tão presente na brincadeira narrativa do filme, o que envolve também muito da análise da própria pessoa do Woody Allen, apesar dele mesmo brincar com a imagem de underdog, os filmes estrelados por ele como ator e escritos por ele, como Annie Hall fizeram o maior sucesso possível. A atriz desse filme a Mia Farrow é aquela da estória que foi exposta em 1992, onde sua filha adotiva e Woody Allen assumiram um romance que dura até hoje. A polêmica foi grande e o filme parece prever algo nessa esfera, se pensarmos bem.



A reflexão do filme é profunda, se a atriz se apaixona pela ator do filme, ela não estaria mais se apaixonando pelo personagem, e não pelo ator, como fala bem o filme. A questão mais louca é quando o autor é o mesmo do ator, que é o mesmo do personagem, talvez essa seja a maior genialidade do filme, perceber que o personagem é como uma camisa de força para o ator, logo também para o autor, pois é aquele tipo de produção onde o autor poderia ser o ator, como Orson Welles em Cidadão Kane (por exemplo). 


Na peça de Pirandello, uma companhia de teatro faz um ensaio da peça "The Rules of the Game", enquanto ensaio começa, eles são interrompidos por seis estranhos. O diretor da peça, super raivoso da interrupção, exige uma explicação. O pai explica que eles são personagens não acabados em busca de um autor para terminar suas estórias. O diretor acredita que estão malucos, mas segue escutando e ouvindo o que eles estão dizendo e detalhes de suas vidas. 


A filha enteada entra no quarto, e o pai tenta comprar sexo dela, dizendo que ele não a reconhecia depois de tantos anos, mas a enteada está convencida que ele a reconheceu o tempo inteiro. A mãe informa que que o pai é na verdade o seu ex namorado, eles compartilham o nojo e a raiva dele ser o ex marido. Ou seja, uma forma de deboche com a facilidade de novos casamentos na mentalidade de classe média americana. Apesar de "não ser uma estória da cabeça do diretor", ele concorda em exibir a estória, apesar da descrença dos atores. 



Woody Allen, em 2001, listou A Rosa Púrpura do Cairo como um dos seus únicos filmes que chegou bem perto do que ele queria até a cena final. Disse também que essa estória ele escreveu trancado em sua casa até praticamente metade do argumento. Ele queria fazer um paradigma de dúvida entre um ator na vida real, em um triângulo amoroso com o personagem, mas que ela escolhesse o ator de verdade e não o personagem, e aí acaba abandonada no fim. Era a ideia essencial que gerou o filme como um todo. 


Ao refletir sobre "abandonar a moça", o autor se arrepende no avião no fim do filme, quase como se fosse uma metáfora do cinema abandonando o povo, depois de ser tão popular em certa época. 



Sem um amor, sem emprego ou casa, Cecilia termina em frente a tela, assistindo Fred Astaire e Ginger Rogers dançando corpo-a-corpo o filme "Top Hat", se perdendo no escapismo do romance clássico de Hollywood. Quando vemos a moça sendo consolada por um filme, vemos também a traição do autor (como ele, Woody Allen), há uma separação entre quem admiramos e quem podemos nos envolver e nos relacionar, o autor/ator na trama apenas queria voltar a fórmula clássica e a garota era um barreira para ele. 



História por trás do filme


Esse filme tem diversas curiosidades maravilhosas. Michael Keaton seria o original Tom Baxter/Gil Shepherd, por ser um grande fã do trabalho de Woody Allen. Mas acabou sendo considerado muito "contemporâneo" para soar como o tipo de ator de filme antigo, chegando a gravar 10 dias da película, sendo substituído por  Jeff Daniels. 


Várias cenas da produção do filme foram feitas no Bertrand Island Amusement Park, que fechou para a produção gravar lá, muitas cenas em Piermont, New York, uma vila no Hudson River, uns 15 quilômetros ao norte da ponte George Washington. A loja tinha fachadas falsas feitas para parecessem com a fachada de lojas típicas da arquitetura da Era da Depressão, também foi filmado em Raritan Diner, em South Amboy, New Jersey. Woody Allen fechou o teatro Kent no Coney Island Avenue, em Brooklyn, o bairro onde cresceu.

 

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