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Barril de Pólvora (Powderkeg, 1971): Faroeste que inaugura a série "Bearcats" da CBS reflete o poder da lábia

 


No Novo México, um trem com 70 passageiros é capturado por um bando criminoso liderado por Chucho Morales. As autoridades governamentais e um rico empresário acionam então dois cowboys e ex-soldados para o resgate e parar o trem, mediante um bom pagamento final. Dirigido pelo veterano escritor e produtor de TV, Douglas Heyes, o filme também serviu como o piloto do seriado de televisão Bearcats! Estrelando Rod Taylor e Dennis Cole como solucionadores de problemas no período anterior à entrada dos EUA na Primeira Guerra Mundial (1917)



Assista ao filme no final deste artigo


O primeiro detalhe, é reparar que quando roubam o trem a primeira coisa que os homens de Chucho Morales e seus homens ressaltam é que não são bandidos mas sim "libertadores", ressaltando de cara o subtom político do filme.



Os homens matam o dono da ferrovia, que estava no trem e tenta proteger a filha. Depois, que eles pede alguém que saiba falar espanhol e português, ou seja, pediu um brasileiro. 


Eles trazem então o advogado que veste um terninho ao estilo cantor de festival de música dos anos 60. Então, eles tacam o o cadáver do dono da ferrovia com um bilhete fazendo exigências, em uma cena que é meio jocosa pois mórbida com seus jarros de leite na estação, já que tudo parece rural e subdesenvolvido, onde as pessoas demoram a reagir a qualquer notícia de crime. 



Vemos então a cena onde o político discute com um major militar sobre a situação, e o política fala sobre a filha que está sequestrada no trem e ele diz que não sabe se é melhor que ela ainda esteja viva ou não, o que é uma coisa bem babaca de se dizer. O major explica que não há como negociar com os bandidos, pois em sua visão quando mais eles perceberem que podem ter, mais vão pedir e que o exército dos Estados Unidos não podem fazer nada a não ser mandar dois agentes especiais através da fronteira para tomar o trem. 



Vem então uma vinheta, o que é incomum para filmes e por isso vou explicar. Acontece que a ideia original da produção era ser mesmo um filme único, só que quando tudo já estava feito e acertado, a CBS decidiu que era muito bom e decidiu transformar aquilo numa série, com vinhetas e vários episódios independentes que funcionariam como filmes, algo tipo CSI. Mas a vinheta por é bem foda, com um estilo setentista bem vintage.



Os agentes são dois cowboys, dando todo o tom de faroeste já que parecem dois peões que vão aceitar a missão de resgatar o gato, são um jovem e um veterano. O jovem é meio iludido e vislumbrado, tendo todo o perfil de "cop" padrão. Já o veterano é daquele tipo que já viu tudo e não se impressiona com nada. 


O personagem de Taylor, Hank Brackett, é um ex-capitão do Exército, um veterano da campanha de guerra hispano-americana nas Filipinas. Brackett deixou o Exército e se estabeleceu no sudoeste, onde ficou conhecido como um solucionador de problemas. Em algum momento Brackett salvou o jovem Johnny Reach (Dennis Cole) de ser injustamente linchado como um ladrão de gado. Juntos, eles limparam algumas cidades fronteiriças em legítima defesa, e eventualmente as pessoas começaram a pedir ajuda deles como mercenários.


Eles determinam o valor das missões apenas no final, pelo grau de dificuldade encontrado, sendo assim um cheque em branco. A lógica deles era simples: se você pudesse colocar uma quantia de dólar em seu problema, então você não precisava da ajuda deles o suficiente. Normalmente os dois trabalham para ferrovias, proprietários de terras ou para o governo. Como cidadãos privados, eles foram capazes de atravessar a fronteira mexicana onde homens da lei normais ou militares não podiam ir.


O filme faz um certo uso de tons eróticos para marcar as cenas, colocando atrizes provocantes bem maquiadas e de maneira indefesa para criar um certo "pânico" na trama. Ou com a secretária dedicada e ingênua, que fala que tem tanto trabalho para fazer que talvez nem vá para cama hoje, fazendo todos rirem do subtexto da cena.



Há a cena onde Chucho decide estuprar uma moça, que está ao lado do estudante e o estudante brasileiro tenta impedir argumentando que Chucho já foi um "homem do povo", comparando com Zapata. Existe uma temática recorrente entre vários faroestes que é sobre os efeitos que a Revolução Mexicana e o banditismo teve para a luta popular no México. Para alguns, o vilismo e o zapatismo fizeram com que o povo mexicano não se identificasse com a esquerda política, fazendo o partido de centro populista PRI, governar o México quase um século. 



Se lermos que o rapaz realmente representa o Brasil, é como se o Brasil pedisse para o México ser menos radical para não atrair a intervenção dos Estados Unidos. Mas o personagem de Lamas não tem lábia. No final, ele obriga o jovem a dizer que quer que Chucho leve a moça. O problema é que a própria moça parece ter simpatizado com Chucho e sua causa, só para ser bem contraditório. 



Depois, há a cena do hotel onde uma moça em roupas totalmente pretas tenta se hospedar mas o hotel se recusa a aceitar, afirmando que não trabalham com "dinheiro mexicano", algo que insistem mesmo depois de falar que pagarão em dólar. Um cowboy faz então uma piada machista com a moça, ao que é intervido por Rod Taylor, que o manda se calar. Pode parecer aleatória, mas o que é particular desse faroeste é essa noção de que todos na sociedade são muito brutos e mau educados, e que os mocinhos tentam "educar" as pessoas para ser menos opressores, pelo menos um pouco. Todos estão ali para ver a execução de um homem, o irmão de Morales, Paco. O que torna tudo mórbido, já que o entretenimento de todos ali é ver a morte de alguém,  mas colocando todos do mesmo lado politicamente.


Os homens então questionam qual o interesse do personagem de Taylor ali, ao que ele responde estar por interesse do dono da ferrovia. Descobrimos então através do atendente do hotel, que a ferrovia manda na cidade mas não manda no hotel. Taylor vai até as últimas consequências e falar com o dono do hotel sobre a situação, pedindo que ele deixe a mulher se hospedar apesar de qualquer diferença. O proprietário então o pergunta o motivo de ir tão longe pela mulher, ao que Taylor responde dizer ser amor a primeira vista ou teimosia. A sequência é interessante enquanto proposta faroeste pois coloca que não há jeito errado de se colocar, o importante é não se acovardar perante uma situação, demonstrando também que Taylor tem lábia.


Caminhamos para a sequência final, quando os agentes decidem por em prática o plano decisivo. Mas antes, acontece a hilária cena onde Cole convence a loira ingênua que consegue a beijar sem a tocar, se ele perder paga 5 dólares. Ela, ingênua, duvida e paga para ver, ele então a beija e dá os 5 dólares, ao que Taylor chama de "truque de índio", reforçando a questão do poder da lábia no filme. Hilário.



O plano é simples, primeiro eles estão em uma cidade à frente, por onde o trem ainda vai passar. Lá eles instalam uma bomba com um barril de pólvora em uma ponte pela qual o trem passará, instalam metralhadoras .50 giratórias em uma posição de vantagem e combinam com um pastor de ovelhas para bloquear a estrada. 



Quando o trem desacelera, Dennis Cole sobe a bordo sorrateiramente, toma a cabine do maquinista e para o trem no meio da ponte. Parados, Morales sai para conferir o que está acontecendo. Eles tem certa ajuda da menina, que está sendo abusada por Morales e apesar da lábia do vilão, ela decide reagir por sua brutalidade excessiva. 



Assim, desorientado Taylor impõe o terror contra ele, ameaçando a atirar nele e em todos, ao mesmo tempo que acionará o pavio da pólvora para mantar a ponte e todo o trem pelos ares. Aqui, começa um empasse, já que para Morales duvida até o fim de sua capacidade para tal. Nesse momento do filme é preciso atenção para entender toda a dinâmica: quem salva o dia e mata Morales, é o que eu chamo de "brasileiro" (Fernando Lamas), que dá uma voadora de capoeira no peito do cara, derrubando ele para fora do trem. 




No fim das contas, o arsenal e o terror provocado pelo agente americano eram só lábia, e não serviu para nada além de aterrorizar as pessoas o suficiente para elas evacuarem o trem rápido e evitar qualquer vítima. Mas se a ameaça de Morales já havia sido evitada, qual a necessidade de manter o clima de ameaça até o fim como suspensão narrativa? 



Acredito que isso é porque toda a cena é uma alegoria da América e da política dos Estados Unidos perante ameaças na América do Sul. Morales representa o México, mas também o banditismo e o radicalismo ao sul da fronteira de maneira geral. Ele tem todo o naipe de um ditador latino, pelo menos o arquétipo disso na visão americana. Mas os agentes cowboys também são o arquétipo dos americanos supostamente nice guys, que usam todo o seu poder bélico para criar um clima de terror e desestabilizar a ameaça com a lábia. Mas na prática, quem eliminou a ameaça foi Lamas, que para mim representa o Brasil e quem levou a fama foram os americanos. Por quê? Porque eles sabem mentir e tem armas e o personagem de Lamas não tinha lábia. 



No final, a ameaça só serviu para coordenar o desespero das pessoas melhor e depois, como bons americanos, Taylor confessa: "Eu menti". Uma jogada de mestre, quase de pôquer, utilizando o seu poder visual e bélico para sustentar seu blefe, sua "fake news". Só dá pena do personagem de Lamas, que se arrastada desesperadamente tentando fugir do trem, baleado, só para descobrir que tudo era um blefe dos americanos para desmoralizar Morales. 



Assim, se tornando um faroeste que reflete sobre o poder do carisma e como todo o universo da política e do crime estão entrelaçados, onde cada ação gera uma reação, dando uma grande sensação de realidade e verossimilhança. 


A primeira vista, você pode julgar que se trata de um filme B, meio trash e improvisado. Mas o filme vai se provando aos poucos e em detalhes. O estilo da filmagem e da técnica de fotografia é para soar meio rústica de propósito, em um técnica meio televisiva para parecer que tudo é mais real e tenso do que pareceria se a filmagem fosse limpa. A caracterização dos personagens e das pessoas do trem também é tão boa, que o filme vai te convencendo aos poucos, chegando no final eletrizante e épico, diferente de qualquer coisa que já tinha visto em um faroeste até então. 



Como uma produção CBS, não impressiona o trabalho de ambientação interna e de fotografia. Os caras das produções CBS/Paramount são feras em controlar os ambientes para tornar todo o espaço psicológico e metafórico, já que o trem é o filme, a narrativa em si e enquanto ele continua o filme permanece frenético, parando apenas no fim do filme. 


A fotografia, por sua vez, explora muito bem o espaço do Novo México. Sim, Novo México e um trem em uma narrativa meio faroeste. De fato parece uma das influências para Breaking Bad



As atuações não são muito de se impressionar. Rod Taylor, Lamas e principalmente o ator que faz Chuco, mesmo que arquetipicamente, são os destaques do filme. Mesmo assim não impressionam muito. Esse é daquele tipo que os atores podem ser meio amadores, pois é muito mais sobre arquétipos dentro de uma grande situação que é o foco em si de toda a trama e linguagem do filme. O diretor soube aplicar um poder de síntese, resumindo o filme ao mínimo possível para construir sua alegoria. 


Se você assiste o filme uma vez, nunca vai esquecer da situação do trem sequestrado, do vilão e do final épico onde o poder da palavra muda tudo. Um faroeste diferenciado mas que com certeza diverte, emociona e ainda faz refletir através de algumas alegorias políticas bem simples, mesmo que bem diluídas dentro da trama, sobre a relação entre os países potências da América do Norte e do Sul


Apesar de estar no Youtube, na época eu só consegui comprando o DVD nas Lojas Americanas. Pena que não consigo os outros episódios da série que o filme inaugura, sendo tanto o filme como a série itens raros de colecionador, que você não encontra fácil nem para comprar, alugar ou baixar. Fica a dica para a CBS/Paramount: um conteúdo que merece ser redistribuído. 



História por trás do filme/série



A série foi criada pelo veterano escritor e produtor de TV Douglas Heyes, que também atuou como produtor executivo. Ele dirigiu episódios de The Twilight Zone, The Adventures of Rin Tin Tin, Baretta e Magnum, P.I.


Ele escreveu e dirigiu o filme de TV Powderkeg que serviu como o filme piloto da série Bearcats. 


Os episódios foram filmados em locações perto de Tucson, Arizona, e também dentro e ao redor de Santa Fé, Novo México. Powderkeg foi sindicalizado na década de 1970 e frequentemente exibido por estações de TV locais dos EUA, e foi o único episódio da série a ser lançado como uma fita de vídeo VHS separada.


A série contou com uma série de estrelas convidadas bem conhecidas, incluindo Leslie Nielsen, Kevin McCarthy, Jane Merrow, Keenan Wynn, Henry Darrow, David Canary, Ed Flanders, Morgan Woodward e Eric Braeden.



Para as filmagens, a série usou duas réplicas metálicas em larga escala da primeira geração (1912-1916) Stutz Bearcats feitas pelo personalizador de carros de Hollywood e construtor de carros de cinema George Barris. Embora externamente muito perto dos carros originais, na verdade eles foram construídos em chassis personalizados alimentados por tração Ford e tinham modernos sistemas de freio de quatro rodas para segurança. 


As duas réplicas eram muito semelhantes umas às outras, porém a primeira construída (e a usada para a maioria das filmagens) tinha uma transmissão manual de 4 velocidades, enquanto a segunda tinha uma automática. 


Além disso, houve uma pequena variação na localização da lâmpada de buzina e nas listras nas laterais do capô do segundo carro, de modo que os carros podem ser diferenciados ao visualizar de perto os episódios. Além dos dois carros usados na série, Barris construiu e manteve um terceiro carro para uso em carros que diferem em muitos detalhes e cores dos carros de TV. Todos os três carros sobrevivem hoje, embora o carro de exibição de Barris tenha sido extensivamente modificado. 


Os automóveis originais stutz bearcat tinham sido fabricados em Indianápolis, Indiana; o edifício da fábrica de Stutz ainda existe, mas atualmente é usado como um complexo de artes e escritórios.



O episódio "Groundloop at Spanish Wells" apresenta um avião J-1 Padrão de 1918 (embora seja chamado de Curtiss Jenny no roteiro) que havia sido recentemente restaurado em Tucson (onde o episódio foi filmado) por Charles Klessig de Fargo, Dakota do Norte. Um episódio posterior com o mesmo personagem piloto, "O Retorno de Esteban", apresentou um biplano britânico de Havilland DH.60 Moth de 1929. De acordo com Klessig, o episódio foi filmado no Novo México, onde as altitudes mais altas impediram o uso da aeronave mais antiga.



O tanque da Primeira Guerra Mundial mostrado no episódio "The Devil Wears Armor" é um tanque M1917 (também conhecido como Six Ton), uma versão americana do Renault FT. Sua arma não é autêntica. O M1917 foi encomendado pela primeira vez em 1917, e o primeiro exemplar foi produzido no final de 1918. A empresa modelo MPC (Model Products Corporation) lançou um kit modelo de 1/25 em escala de um Stutz Bearcat. 


Fora da tela, Taylor muitas vezes era menos charmoso em suas brigas com a CBS. Ele foi inflexível sobre fazer o show diferente, como ele disse a um artigo do Guia de TV de 1971:


"A única coisa que temos para nós é a nossa era. Foi uma época interessante e engraçada, com melodrama à moda antiga e assoante do vilão. ... Vamos jogar isso em parte para rir, com o gesto amplo e até talvez a garota amarrada aos trilhos da ferrovia. ... O show deve ter a sensação de olhar para daguerreótipos."


Ele também lutou para tirar os personagens do Sudoeste ocasionalmente e capitalizar no início da Primeira Guerra Mundial. E houve brigas por censura, também, com Taylor rugindo: "O que quer dizer que eu não posso parecer eufórico depois daquela noite com a bela garota mexicana?"


Taylor ganhou a maioria das batalhas, mas o programa perdeu a guerra de audiência.


Assista o filme "Barril de Pólvora" aqui















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