Pular para o conteúdo principal

A Hora da Estrela (1985): Adaptação do livro de Clarice Lispector aborda o antissemitismo escondido no senso comum contemporâneo




Primeiro longa-metragem da cineasta brasileira Suzana Amaral lançado em 1985. Baseado na obra homônima de Clarice Lispector, de 1977. Lispector era ucraniana de nome de nascença Хая Пінкасiвна Ліспектор, Chaya Pinkhasivna. O filme foi muito bem recebido na época, principalmente na Europa, e centra-se em uma jovem alagoana de nome judeu, Macabéa, que se muda para São Paulo depois de sua tia falecer. Ela se muda para uma casa com outras mulheres, e sempre é mal tratada por sua "falta de trato social". Ela não se encaixa no padrão eurocêntrico das loiras de São Paulo. Macabéa segue as estrelas, a cabala, o rádio e todas as superstições são seus guias espirituais.  O filme ficou com título de Hour of the Star em inglês, Macabéa foi interpretada magistralmente por Marcélia Cartaxo, que chegou a ganhar um Urso de Prata de Melhor Atriz, como também Melhor Filme no Festival de Cinema de Havana de 1986.

Disponível no MUBI e no Youtube

Vale lembrar, antes de começar a crítica, que não encontrei nenhuma análise fílmica, artigo científico ou nada, além do próprio livro de Clarice, que falasse com todas as letras que o livro e o filme são uma denúncia ao antissemitismo velado tanto do Rio de Janeiro, quanto de São Paulo (culturas do Sudeste e Sul do Brasil). O livro abordar o Rio de Janeiro (local com alto índice de moradores vindos do nordeste) é mais um elemento histórico de Clarice no romance, que disse ter tido a ideia do livro quando viu a figura de um senhor nordestino que parecia meio perdido na cidade. 


Já na história, Macabéa é moça muito pobre e órfã. Ela perdeu a tia e teve que arrumar emprego como uma datilógrafa. Ainda virgem que gosta de Coca-Cola, ela passa o tempo escutando o rádio e copiando a moda das outras mulheres. Sua falta de experiência na vida faz com que ela goste das pequenas coisas, como o prazer de andar de metrô. Quando ela escuta uma música no rádio imediatamente chora ao sentir. Tudo que ela sabe vem da educação do rádio. No filme, as cenas de São Paulo e de sua arquitetura são marcantes. 


Até que ela conhece Olímpico, um metalúrgico vindo da Paraíba e que sonha um dia em ser rico. Ele também não tem cultura ou educação, mas ele crê que sabe tudo e que um dia quer ser deputado no congresso, pois isso faria ele ter carro, encanamento e esgoto e dinheiro para gastar. 




Ele mostra para Macabéa seu dente de ouro e diz que um dia terá a boca toda cheia de dentes de ouro. Eles começam a namorar, mas é basicamente um namoro de encontros no parque. Ela fica impressionada com as coisas que ele lhe diz. Ele planeja considerar Macabéa para esposa por causa de sua inocência, já que ela fica repetindo as coisas que ele diz, e as coisas que o rádio diz. Ele costuma ser bem rude com Macabéa sem perceber. O filme parece ter certa tendência de normalizar o desnível de cobertura e representação de certos grupos. Por exemplo, Hollywood e o mundo ocidental tem um padrão: a mulher loira de olhos claros, Macabéa não se encaixa nesse padrão, portanto está fora dos olhos do desejo, do marketing, fora da televisão, das novelas.


Depois que ele oferece um café para ela, ele diz que dava o café, mas que se ela quer leite, ela tem que pagar por isso. Quando ela tenta cantar uma música que ela gosta, ele joga ela no chão, fazendo com que ela não consiga ir no seu emprego. Gloria, a amiga loira e atraente de Macabéa sempre deu conselhos para ela sobre homens, mas ela mesma namorava um diferente a cada semana. 


Gloria fica tão desesperada para se casar que ela vai procurar ajuda na umbanda. Lá, ela é aconselhada pela mãe de santo para manipular e roubar o homem de uma amiga, como sacrifício para depois conhecer seu homem dos sonhos. 


Olímpico abandona Macabéa e diz que ela é o cabelo em sua sopa que o enoja. Gloria conhece o homem dos sonhos e deixa Olímpico. Quando Macabéa vai na cartomante, ela vê o passo e eventualmente a conta que ela conhecerá com um rico estrangeiro que dirige uma Mercedes. 



Pela primeira vez, Macabéa fica animada e compra um vestido novo. Mas na saída, ela é atropelada por um estrangeiro em uma Mercedes. Enquanto ela sangra na rua, ela imagina o motorista a carregando de braços abertos...




As Diferenças em relação ao livro e Minha Leitura do filme


O livro "A Hora da Estrela" é um clássico da literatura nacional brasileira, e é de uma das maiores escritoras brasileira. Em tempos de guerra na Ucrânia, vale lembrar da herança da nascida ucraniana Clarice Lispector, um belo exemplo literatura humanista, complexa e engajada de Clarice, que considerava a cidade de Recife como sua cidade natal. No livro, ela é uma nordestina no Rio de Janeiro, no filme, ela é uma nordestina em São Paulo (onde Suzana se formou em cinema na USP), o que explica a mudança de eixo para fazer um filme onde a cineasta era mais confortável. Seria bem mais provocante encarar de fato que onde o antissemitismo (manifestado no preconceito contra o nordestino, a figura do "paraíba"), seja uma realidade comum da sociedade fluminense, que associa o nordestino a figura do retirante, ou de quem foge da seca.


Existem diversas "imagens" na cabeça das pessoas quando se fala do Nordeste, várias descrições maldosas também sobre as características físicas de quem seria nordestino, negro ou judeu. O filme abordar São Paulo faz sentido pelo aumento drástico de imigrantes nordestinos que São Paulo teve, o que formou a cidade enquanto trabalhadores que construíram a São Paulo moderna e que trabalhavam no subemprego e muitas vezes, mal pagos ou em situação análoga a escravidão. 


O preconceito contra o nordestino é uma situação muito triste que vive locais como o sudeste (local onde o euro centrismo cultural é bem maior). Infelizmente, o senso comum sobre o nordestino ainda é bem parecido com o descrito no livro Sertões de Euclides da Cunha, que trouxe uma visão "científica" da forma do racismo contra o nordestino, justificando a diferença entre uma vida no republicanismo do sudeste frente aos "coitados crentes" do nordeste que não entendiam que a polícia e o exército não se "poderia enfrentar" em uma sociedade civilizada. O ex presidente Lula, por exemplo, é um desses homens nordestinos que migraram para São Paulo, e que sofreram preconceito pelo seu local de origem social. 


Diferentemente de outros livros de Clarice Lispector, como "Perto do Coragem Selvagem", ou "Laços de Família", ou mesmo "O Livro dos Prazeres". Ou um dos meus favoritos "Como nasceram as estrelas: as doze lendas brasileiras", Clarice começou a se inspirar em autores como Dostoievski e Hermann Hesse, mas intimamente, sempre escolheu o livro pelo título, formando seu gosto literário. 





Clarice Lispector no programa Panorama da Tv Cultura de São Paulo, onde ela fala sobre seu processo criativo e reflete sobre seus romances: 





Historicamente, macabeu é uma palavra que vem do hebraico antigo e significa "martelos". Eles foram um grupo étnico, integrantes de um exército rebelde judeu que assumiu o controle de partes da Terra de Israel  e reintroduziram a religião judaica depois das conquistas gregas e de toda a influência helenística (leia-se branca ocidental). Os macabeus foram o povo que lutou pela independência dos judeus em relação aos conquistadores ocidentais, e iniciaram o movimento que levou a independência da Judeia, antes do domínio romano.


No livro conta a história de uma alagoana que vive no Rio de Janeiro como Clarice, já o filme aborda São Paulo enquanto adaptação. A autora busca se afastar da temática política, mas a sua descrição da alma humana transcende todas as fronteiras, sendo uma das maiores escritoras não só brasileira, mas do mundo também, sua complexidade é difícil de descrever em palavras, mas está presente no texto como Clarice descrevia, ela "Cosea para dentro" e não para fora.


O impacto psicológico da literatura de Clarice é grande. Nas ruas do Rio de Janeiro, ela "pegou no ar" de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina. Ela brinca com o narrador masculino, que se chama Rodrigo S.M Relato, e que teria como personagem favorito o que é inspirado nele mesmo. Essas genialidades da escrita é que colocam Clarice Lispector como não apenas uma escritora, mas como forma de aumentar o seu amor humanista geral pelas pessoas, como também pelo nada, pelo vazio, pela meditação. Essa era sua pegada. 


O recurso utilizado do "narrador-escritor" que apresenta a obra é distinto pela primazia de brincar não apenas com o significado, mas também com as armadilhas da linguagem, que como diria Barthes, "nunca é inocente" em condenar ou louvar. É uma forma de literatura moderna, como a de Fernando Pessoa que questiona os valores da comunicação em si mesmos, convidando a obra para ser escrita junto com o leitor, que se fascina. Meio sem querer, ela começa a história como quem não quer nada. Depois dedica para seu sangue, e depois para gnomos, anãos, sílfides e ninfas, como também fala dos "profetas do presente" que habitam a vida. Tratando-se como diria na primeira página de um livro essencialmente inacabado.


A visão de moças espalhadas pelos cortiços, vivendo, sendo substituídas, é impactante. Ela consegue um emprego depois de fazer um curso de datilografia e ganha com isso menos que um salário mínimo e vive sofrendo implicância por parte dos outros.  O tema da culpa é notado em um dos capítulos do livro por parte de Macabéa, por se perceber diferente dos outros. Ela é um imigrante nordestina  que se sente deslocada  e "incompetente para a vida” no Rio de Janeiro. No filme, a solidão urbana de São Paulo também serve para demonstrar isso. 



Segundo Pauline Kael, em sua coletânea de crítica de cinema. Ela se disse viciada no filme. Especialmente a performance de Marcelia Cartaxo. O filme te pega de jeito, ela diz. A imagem de Macabéa, que é como é, uma imagem de terrível solidão de uma mulher da massa brasileira, alguém que você não notaria na rua passando de soslaio sem olhar uma segunda vez. Macabéa tinha mal cheiro, pois raramente tomava banho. 


O quanto nos perdemos em nós mesmos na tentativa de se encaixar. Em uma das cenas do filme, uma moça alisa o cabelo e fala uma frase racista, como se fosse senso comum. A temática do racismo e da xenofobia está ali. Não precisa delimitar ou falar quando exatamente, são pequenas nuances, jogos de cena, algumas posturas que denotam humilhação e diferença. Macabéa não podo comer nada além de hot dogs por ser barato, por isso dorme mal e está sempre sujando a folha dos memorandos que faz enquanto datilógrafa (uma profissão já extinta). 


Ela não dormia direito por conta da azia que sentia vinda do café frio que tomava toda noite antes de dormir. A fome ela disfarçava comendo papel. Essencialmente, Macabéa também é uma história sobre subemprego, a fome e a xenofobia contra grupos étnicos não dominante, postura comum no sul e sudeste do país de certa valorização eugênica das pessoas, só que escondido, afinal, somos o "país da democracia racial" (como defendido depois por Gilberto Freire). Macabéa também é meio getulista e se informa e gosta de gostam fruto do desenvolvimento. Como o Rádio Relógio, que escuta a hora certo, além de transmitir propaganda e cultura boba. 


A autora divida o seu "eu" lírico na história. De um lado ela é masculina e neutra, de outro ela é Clarice mulher e sensível. Esse distanciamento entre Clarice e sua obra só pode ser explicada pela tentativa dela demonstrar através de Macabéa a tentativa de classificação banal entre seres humanos, como guerras e bullying. A força judaica de Macabéa não descrita na maioria das descrições e análises sobre o filme e o livro é um dos temas mais interessantes de Clarice. O Rio de Janeiro, com alta taxa de imigrante nordestinos (lugar de onde vem a maioria dos descendentes judeus). 


A força viria do Talmud e da Cabala, que presidem a terra dos tesouros e dos anãos, que na tradição popular germânica, vieram do sangue e dos ossos de um gigante (como na lenda do Golem). Eles conhecem e dominam toda a natureza, essas pequenas superstições são abordadas como o lado mágico da narrativa de Macabéa, a autora vê nessas lendas uma força vital humanista que gira o enredo da história. 


Bastidores e produção do filme



A cineasta Suzana Amaral tem uma carreira brilhante, possuindo um tipo de visão de cinema diferenciada. Suzana Amaral Rezende (São Paulo, São Paulo, 1928 - idem, 2020). Diretora de cinema, diretora de TV, crítica de cinema e professora. Destaca-se por seu pioneirismo como mulher à frente da direção de filmes, posição historicamente ocupada por homens, e, principalmente, por seu trabalho na recriação de obras da literatura brasileira.


Em 1968, ela ingressa no curso de cinema da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e o conclui em 1971. Nesse período, produz os curtas-metragens Eu sou Vocês, Nós Somos Eles (1970); Semana de 22 (1970) e Sua Majestade, Piolin (1971). Em 1972, ministra aulas de roteiro e fotografia na ECA/USP.


Ela também cursou pós graduação na NYU (faculdade onde Spike Lee é professor). Teve ao todo 9 filhos, um deles enquanto cursava cinema na USP. Se diz seguidora da indústria de filmes da Índia, e seguidora do budismo, a cineasta também faleceu recentemente, agora em 2020. A temática do filme é super atual, e no estrangeiro ficou conhecido como uma ideia forte de contemporaneidade e de compreensão existencialista da vida de quem não pode ter uma cultura individual e que apenas pode viver e se educar através da cultura de massa. Em um mundo que sempre debate a fome, a cultura fica um pouco esquecida. Talvez seja o maior tom crítico do filme.


Ao descrever sobre o caráter de Macabéa, Suzana disse estar inspirada no valor histórico da visão do herói como em Macunaíma, pensando isso na forma de uma heroína feminina. Ao comentar sobre o que teria de diferente desse livro para o resto da literatura de Clarice, Suzana falou que esse era o livro da crítica social pesada que Clarice faria, ou seja, esse seria seu livro mais político de Clarice Lispector, adentrando nas fissuras do subdesenvolvimento e sua relação com o relativismo e a carência cultural da relativa maioria da população brasileira. 


Filme completo no Youtube:






Comentários

Em Alta no Momento:

Os Desajustados (The Misfits, 1961): Um faroeste com Marilyn Monroe e Clark Gable sobre imperfeição da obra do artista e o fim fantasmagórico da Era de Ouro do Cinema Americano

Rastros de Ódio (The Searchers, 1956): Clássico de John Ford é o maior faroeste de todos os tempos e eu posso provar

"1883" (2021): Análise e curiosidades da série histórica de western da Paramount

Um Morto Muito Louco (1989): O problema de querer sempre "se dar bem" em uma crítica feroz à meritocracia e ao individualismo no mundo do trabalho



Curta nossa página: