A Morte Comanda o Cangaço (1960): Um dos maiores nordesterns, filme reflete contradições entre o cangaço e a narrativa do herói dos faroestes
Dona Cidinha tinha um filho de nome Raimundo Vieira que durante os acontecimentos foi julgado, torturado e dado como morto, porém, o mesmo conseguiu sobreviver com a ajuda de seus vaqueiros e pequenos lavradores, e se escondeu num sítio. Depois disso eles se organizam e atacam a fazenda do Coronel Nesinho, que é morto, e prendem Florinda que o Coronel tinha enviado como recompensa ao cangaceiro Silvério, entretanto, Raimundo e Florinda se apaixonam. Logo após ficar sabendo da morte do Coronel, Silvério faz um ritual de "corpo fechado", e ciente de que estava imbatível prega medo, horror e violência pelo sertão e se esconde na caatinga. O grupo que tinha Raimundo e Florinda a frente, se encontra com um beato e seus companheiros e com a ajuda de um rastejador, encontram o esconderijo de Silvério, o combate final entre Silvério e Raimundo acaba com a morte do brutal cangaceiro, trazendo novamente a paz pro sertão.
História por trás do filme
Carlos Coimbra era diretor, montador, roteirista, produtor. Na adolescência em Campinas, trabalhou em escritório de cinema e cantou na rádio local. A partir de 1949, assumiu funções diversas nas rádios Tamoyo e Tupi e tentou consolidar carreira como artista de rádio no Rio de Janeiro, sem sucesso.
Também foi correspondente cinematográfico da revista Palmeiras, figurante em filmes da Atlântida e assistente de direção de Luzes nas Sombras (1953), filme dirigido por Carlos Ortiz (1910-1995) e Heládio Fagundes. Já em São Paulo, escreveu e dirigiu os faroestes Armas da Vingança (1955), com Alberto Severi, vencedor do prêmio Saci, e Dioguinho (1957), em que também assina a montagem. Escreveu o roteiro e assina a montagem do longa-metragem Cavalgada da Esperança: Padroeira do Brasil (1958), de Heládio Fagundes. Realizou Crepúsculo de Ódios (1959) e montou Fronteiras do Inferno (1958), de Walter Hugo Khouri (1929-2003), Rastros na Selva (1959), do italiano Mário Civelli (1923-1993), e A Moça do Quarto 13 (1961), do estadunidense Richard E. Cunha (1922-2005).
Até chegar em 1960, quando dirige o nordestern, A Morte Comanda o Cangaço.
O gênero surgiu em 1953, com o filme "O Cangaceiro", que se baseava na história de Lampião e seu bando. A película foi premiada em Cannes e levou o cinema brasileiro para todo o mundo. Se nos Estados Unidos era comum que protagonistas de filmes do velho oeste – como Tom Mix e John Wayne – ganhassem suas próprias revistas em quadrinhos, aqui também aconteceu. Milton Ribeiro (que não é o ministro da educação), destaque do filme de Lima Barreto, estrelou uma série de HQs que levava seu nome.
Meses após o lançamento de "O Cangaceiro", foi criada a radionovela "Jerônimo, o Herói do Sertão". A obra era transmitida pela Rádio Nacional e contava a história do herói titulo que, ao lado de sua noiva Aninha e de seu companheiro de aventuras Moleque Sacy, vagava pelo sertão combatendo o mal. A série ultrapassou fronteiras e se tornou um gibi de sucesso. Os radioatores viraram verdadeiras celebridades e, nas páginas extras da revista em quadrinho dos anos cinquenta, o leitor tinha acesso a uma breve biografia dos que interpretavam Jerônimo, Brasil afora, já que havia um ator por região.
Selecionado para o 11º Festival de Berlim, o filme é distribuído pela Cinedistri, de Oswaldo Massaini (1919-1994), com quem desenvolve longa parceria, iniciada com a montagem de O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte.
Dirige, escreve e monta para a Cinedistri sete longas: os nordesterns Lampião, o Rei do Cangaço (1963), Cangaceiros de Lampião (1967) e Corisco, o Diabo Loiro (1969); as comédias O Santo Milagroso (1966) e Se Meu Dólar Falasse... (1970); o drama religioso A Madona de Cedro (1968); e o épico histórico Independência ou Morte (1972). Este, realizado em comemoração dos 150 anos da independência do Brasil, tem êxito de bilheteria e recebe elogios de Emílio Garrastazu Médici (1905-1985), presidente à época.
Nos anos 1970, volta a montar filmes de terceiros, como Idílio Proibido (1971), de Konstantin Tkaczenko (1925-1973); Ana Terra (1971), de Durval Garcia (1931); A Marcha (1972), de Oswaldo Sampaio (1912-1996); O Descarte (1973), de Anselmo Duarte e Elas São do Baralho (1977), de Silvio de Abreu (1942). Funda, em 1973, a produtora CSC Produções Cinematográficas para realizar o thriller O Signo de Escorpião (1974), seu maior fracasso, e o sucesso Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel (1979). Realiza também, por encomenda, o policial O Homem de Papel (1976) e a aventura automobilística Os Campeões (1982). Sem conseguir viabilizar novos projetos para cinema, faz o especial televisivo A Guerra dos Farrapos (1986), para a TV Bandeirantes.
Carlos Coimbra inicia a carreira de diretor cinematográfico durante um vácuo criado na produção de São Paulo, em que a falência dos projetos de sistema de estúdio propicia oportunidades para filmes independentes. O sucesso financeiro de seus primeiros longas, leva-o para a Boca do Lixo, ainda em formação, que sedia quase todos seus trabalhos posteriores. Coimbra firma-se como um diretor de encomendas, nome de confiança de Oswaldo Massaini. Responsabiliza-se pelo controle de boa parte do processo, pela escrita do roteiro e pela montagem dos filmes. Com isso, adquire reputação e liberdade para escolher os projetos que lhe interessam, como filmes de ação, cangaço, comédia, romance histórico e drama.
Coimbra realizou A Morte Comanda o Cangaço, de produção de Aurora Duarte, depois de fazer três filmes de cangaço com parcos recursos. Adapta a estrutura dos faroestes norte-americanos ao nordeste brasileiro, regido pela lei do sertão. O modelo estadunidense de confronto entre o bem e o mal, numa terra sem lei e prestes a ser civilizada, é reconstruído em cenário nacional. No filme, um modesto fazendeiro busca se vingar de um cangaceiro que destrói sua terra e degola sua mãe. O diretor inova ao realizar a história no sertão cearense, em Quixadá, captando a paisagem local, e ao filmar em cores, dando uma exuberância às imagens da terra árida, em que predominam matizes do vermelho, amarelo e do laranja.
Ainda que o longa O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto, seja o filme inaugural do ciclo do cangaço, apenas com A Morte Comanda o Cangaço que o gênero efetivamente se desenvolve, com produções realizadas nos anos 1960 e início dos 1970. Coimbra realiza ainda outros três filmes, com raízes históricas: Lampião, o Rei do Cangaço, Cangaceiros de Lampião e Corisco, o Diabo Loiro. Há ainda filmes no meio que abordam a questão do cangaço de maneira mais política, como Deus e o Diabo na Terra do Sol.
Cangaceiros de Lampião remonta à trama do filme de 1960, em que um fazendeiro busca vingança de cangaceiros bárbaros, em contexto posterior à morte de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião (1898-1938). Já os dois outros compõem-se de cinebiografias sobre personagens notórios do cangaço. O cineasta parte de pesquisas e depoimentos, inclusive de Dadá (1915-1994), companheira de Corisco (1907-1940), para escrever o roteiro, e busca a “fidelidade da história”.
Para os filmes de cangaço, Coimbra utilizava uma estrutura narrativa diversa das demais produções. Em Lampião, o Rei do Cangaço, por exemplo, a história é contada em fragmentos por um cantador cego, o que confere uma dimensão mítica ao protagonista, e utiliza esculturas de Mestre Vitalino (1909-1963), filmadas em estúdio, para comentar a trama por meio das expressões das consagradas figuras de barro do artista. Em A Morte Comanda o Cangaço e Cangaceiros de Lampião, utiliza o retrato do cangaceiro truculento e vilão e, em Lampião... e Corisco.., o do homem obstinado e companheiro, ainda que violento.
Tal complexidade na composição do personagem histórico também está presente em Independência ou Morte. O filme aborda a vida do imperador D. Pedro I (1798-1834), seu romance com a Marquesa de Santos (1797-1867) e os episódios em torno da independência do Brasil em 1822. Coimbra arquiteta um herói falho e devasso, mais interessado em mulheres do que em política, e constrói uma independência acidental, de interesses espúrios, mesmo reproduzindo imagens míticas da fundação do Estado brasileiro.
O cineasta tinha preferência por planos em movimento, com uso de carrinho e de lentes zoom, e cuidado na composição da mise-en-scène, sem prender-se a uma identidade cinematográfica autoral. Consolidou-se como diretor de apuro técnico e visual e eficiente contador de histórias, preocupado com qualidade e com apelo popular.
Leitura e Crítica do Filme
A Morte Comanda o Cangaço é um filme rústico e culturalmente instigante. Sua proposta, para além do cangaço, retrata com extrema fidelidade os traços culturais adjacentes a vida no Nordeste do Brasil. Diferente de outros filmes do gênero, que utilizam os elementos nordestinos dentro de uma visão geral do "ser brasileiro" e englobando isso em narrativas de compreensão geral; A Morte Comanda o Cangaço realiza a operação de imersão cultural total. Somos levados a uma aventura de som, cor, imagem e sentimento, onde cada detalhe etnográfico e antropológico da experiência são valorizados na representação da trama em destaque.
O primeiro traço dessa representação marcante é o som. As canções cantadas no filme são regionais e locais, dando um ar polifônico ao filme, com as canções estalando nos ouvidos. As danças, principalmente nas cenas dos cangaceiros, são genialmente demonstradas e filmadas. A montagem entre as danças, o ritmo e o sentido do filme, por vezes são inebriantes, partindo de uma postura imperativa e orgulhosa da cultura nacional, ao mesmo tempo que busca misturar isso com a linguagem da sétima arte. O resultado é uma sincronia perfeita entre a linguagem narrativa tradicional, até tipicamente americana demais já que o filme buscava ganhar o Oscar, e a cultura regional, que mais do que anular o sentido da narrativa, a reorienta em sentido cultural para um horizonte maior do que o final do roteiro e conclusão da trama do filme.
A trama é sobre disputa de terras, e extremamente complexa. De um lado tempos os colonos, dos das próprias terras, que tentam pela força do próprio trabalho ter uma fazenda autônoma, que se auto sustente. De outro, os cangaceiros que nada tem além boleia de seus cavalos e seus fuzis. Na visão do filme, estabelecendo algo bem similar ao que faz os faroestes de tese, os cangaceiros trabalhavam para um fazendeiro local, das grandes lavouras agroexportadoras, que pagam para combater os colonos, fazendeiros incipientes e sem terras do local. Ou seja, aqui o filme já está explorando uma tese que contradiz o senso comum de esquerda geral: que os cangaceiros eram heróis populares, que lutavam ao lado dos mais pobres contra as opressões dos fazendeiros locais.
Isso é uma segunda questão: por que se associar ao mandante local para atacar um fazendeiro que tem pouco, quando se pode atacar o próprio fazendeiro que tem mais? Isso é justamente o que o filme não que pensar enquanto proposta.
Temos um herói, que perdeu tudo que tinha perante a postura imperativa de sua família contra o cangaço. Ele então vai através de uma aventura por vingança contra a morte da figura feminina e matriarcal perdida. Só que no meio do filme, há uma certa dissonância, pois ao longo da trama percebemos que nosso "herói" age por motivação pessoal, enquanto os cangaceiros agem pela cultura, representando o papel de emissores dos momentos mais culturais do filme.
É obvia a noção, como em outros filmes de cangaço, que a atividade do banditismo era degradante para as mulheres, mas do outro lado há uma certa cultura do endeusamento da donzela, que na verdade busca sublimar e calar as mulheres. Isso é notável no momento que os vaqueiros que estão ao lado dos colonos, cantam uma canção sobre "amarrar o pé da moça ao pé da mesa". Mas onde a maior prova disso, foi no duelo final, quando o herói luta contra o cangaceiro, não é ele que resolve a disputa, e sim sua parceira e interesse romântico na trama. Esse elemento, além de parecer uma referência direta ao filme Matar ou Morrer (1952), entrega a falta de sentido e sinceridade na motivação do herói e que as mulheres sim tem um motivo real para não gostar ou aderir ao cangaço.
Entretanto, fica o gosto amargo que no final da trama ambos, o herói e a mocinha agiram apenas por motivação pessoal e vingança infrutífera, enquanto os cangaceiros por mais incorretos que fossem em seus atos, mostravam ser os verdadeiros habitantes da terra, que só agiam daquela maneira por não haver nenhuma forma de dinheiro ou auxílio.
Isso torna o filme de Carlos Coimbra extremamente contraditório, pois pelo roteiro aponta para via de solução democrática e pacifista (mesmo que passe pela morte dos bandidos). Mas pela direção, fotografia e montagem do filme, aponta para beleza e necessidade de recuperação histórica da memória e identidade estética do cangaço para o cinema, principalmente de faroeste.
Essa mistura, entre o cinema narrativo e dramático americano e o cinema mais sensorial e focado na edição como o soviético, tornam para mim o filme muito interessante culturalmente, pois é provocante em sua proposta dissonante entre o herói parecer vilão e o vilão parecer apenas mais uma vítima dos fatos. Na verdade, acredito que essa é a única interpretação possível do filme: que o herói era vilão e que sua busca por vingança não levou a nada, apenas ao individualismo narrativo e romântico, típico dos faroestes americanos mais conservadores. Só que essa mensagem pode ser complexa demais para a maioria entender, tornando assim o filme complexo demais para uma visão inicial ou incipiente.
Entretanto, é com certeza um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos e merece ser assistido pelo menos uma vez por quem gosta do nosso produto nacional.
Disponível no Youtube:
Se não houvesse uma velada tendência de apoio ao crime organizado o texto acima seria a melhor descrição do trabalho de Carlos Coimbra. Excetuando a ideologia implícita "bandidólatra" há um importante trabalho informativo escrito por um grande jornalista.
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