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7 Prisioneiros (2021): Da flexibilização trabalhista ao trabalho escravo


Filme dirigido por Alexandre Moratto conta a história de Mateus (Christian Malheiros), de 18 anos, que mora no interior do Brasil com sua mãe e irmãs. Ele se dá bem com a família e sua mãe trabalha incessantemente para sustentá-los, com o custo de vida alto do Brasil atual, entre comida, energia elétrica, telefone e tudo mais. Então, quando um recrutador chamado Gilson oferece a Mateus e outros jovens de sua vila a oportunidade de viajarem para São Paulo, eles aceitam na hora, se lançando ao desconhecido, onde acabam presos a uma situação de trabalho escravo. Vencedor do Melhor Filme em Língua Estrangeira do Festival Internacional de Cinema de Veneza


História por trás do filme


Em entrevista ao Film Independent sobre sua estreia na direção de Sócrates, o cineasta brasileiro-americano Alexandre Moratto anunciou que estava desenvolvendo um roteiro original sobre a escravidão moderna e o tráfico de pessoas no Brasil. Moratto foi escalado para trabalhar novamente com a co-roteirista Thayná Mantesso no filme. Em 5 de setembro de 2020, Moratto revelou que estava colaborando novamente com os diretores Ramin Bahrani e Fernando Meirelles, por meio de sua produtora O2 Filmes, para a produção do filme, com distribuição da Netflix. Bahrani, o mentor da escola de cinema de Moratto, apresentou o filme à empresa enquanto dirigia The White Tiger. Falando sobre o filme, Moratto disse: "Agora eu sinto que estou neste lugar realmente afortunado de poder fazer esses filmes a partir desses roteiros originais que tenho escrito sobre questões ou pessoas ou comunidades ou assuntos pessoais que são muito importantes para mim e que sinto que precisa expressar."


Em entrevista para o Latino Review Media, a entrevistadora afirmou ter se surpreendido com a temática do filme pois acreditava que a escravidão havia acabado, e o diretor Alexandre Moratto esclareceu que no Brasil o trabalho escravo ainda pode ser muito encontrado, algo que o incomodava e o estimulou a fazer o filme.



O papel principal do filme foi escrito por Moratto especificamente para Christian Malheiros, que ele descobriu durante testes intensivos para Sócrates, onde acabou sendo escalado e ganhou destaque no Brasil. Moratto também escalou um imigrante brasileiro que trabalhou por seis meses em uma fábrica enquanto conduzia entrevistas de pesquisa com sobreviventes do tráfico de pessoas.


Para Santoro, em entrevista para o UOL, o filme só aconteceu por causa do streaming, o que na minha visão é bem legal pois um novo estilo de filme está surgindo, muito mais honestos, sabendo que não dependem apenas das salas de cinema e bilheteria para fazerem sucesso.



Existe um vídeo feito pela Netflix com Rodrigo Santoro e Christian comentando sobre o filme e bastidores. Um dos detalhes interessantes, é que como o filme foi rodado em um bairro mais periférico de São Paulo, segundo Santoro eles tinham que parar a gravação por causa de marteladas em obras na casa vizinha. Ele também deixou entender que foi bem difícil, como alguém progressista, interpretar alguém tão mau. Vale a pena conferir.




Em entrevista ao Notícias da TV, o ator Bruno Rocha, que interpreta o Samuel no filme, explica como encontrou o sentimento de revolta que Samuel traz à tona, ao perceber que foi enganado e forçado ao trabalho escravo em um ferro-velho, em sua própria vida pessoal.


O ator frisa que não imaginava que a escravidão contemporânea poderia estar tão perto até revelar a mãe como seria a história do longa-metragem e ela lhe contar sua trajetória: "Ela saiu do interior de São Paulo com 17 anos para trabalhar como faxineira na casa de uma mulher que a trancava, não pagava o combinado, fazia ela trabalhar horas sem parar. Quando eu descobri, entendi na hora por que estava nesse projeto. Meu pensamento foi de: Agora eu tenho onde vingar uma história que também é minha e está dentro de casa."



Leitura do filme


7 Prisioneiros é com certeza a maior surpresa do cinema nacional de 2021. Em um ano posterior a pandemia de Covid-19 e com os ideais do atual governo, há poucos filmes nacionais novos disponíveis no momento. Além disso, com o orgulho e nacionalismo do Brasil meio abalado, tem sido difícil encontrar filmes que fiquem no meio termo entre louvor total do país e a esculhambação total da imagem do país, o que é sempre complicado pois os governos passam mas os filmes ficam. 


A premissa do filme é bem simples. Mateus mora com a mãe e as irmãs em uma casa, que nas primeiras cenas do filme fica claro se tratar de algum lugar do interior ou distante de um grande centro. E desse jeito, meio sem explicar e priorizando o "mostrar", entendemos que a família de Mateus é pobre e faz o máximo de esforço para manter a união da casa. Mas está claro que os gastos com contas e alimentação são altos, e não há emprego fácil pois eles moram no interior: ou são trabalhos manuais na roça ou não se faz nada. 


Isso revela um aspecto complexo do Brasil: com a inflação e o custo de vida, parece um crime tentar sobreviver, onde parece que seu "lar" só existe relativo ao seu poder de comprar e dinheiro disponível. Se acabar seu dinheiro e você não tiver emprego, todo afeto e amor despendido a você iram acabar, e logo você é o problema a ser "resolvido". 



Esse aspecto cruel do Brasil, acaba com a naturalidade das relações sociais, sendo todas as pessoas mensuradas por um número: o do lucro. Essa parte é cruel, pois está claro que a família gosta de Mateus, mas na medida que não há mais recursos, chegou o momento dele ser "sacrificado" sendo lançado em um mundo desconhecido e que de cara parece querer o devorar. Na hora que Mateus parte, sentimos o perigo pois sabemos que ele não tem dinheiro ou recursos para voltar ou se proteger. 




Eles vão então para a cidade de São Paulo, e a viagem não pareceu longa, dando a impressão de Mateus morava em São Paulo mesmo, apenas alguns quilômetros distante do centro. Para quem não é brasileiro isso pode parecer complicado, pois é difícil entender como a pequena diferença entre centro e periferia pode mudar todo o arcabouço de possibilidades e tratamento despendido. 


Nos minutos iniciais, São Paulo parece fantástica e representada de maneira similar a filmes onde personagens vão tentar a carreira em Los Angeles na indústria cinematográfica de Hollywood. Mas não demora muito para o carro virar algumas esquinas e entrar em um grande galpão de ferro-velho. Por mais que tudo pareça grande e público, há sempre que se preocupar com o interno: onde dormir, o que comer e quanto tudo isso vai custar?



Fica claro das primeiras interações do chefe, Luca, com Mateus as metáforas de flexibilização trabalhista. Primeiro, que não foi falado em CLT em nenhum momento, mas sim apenas como um bico que você vai fazer sem nenhum compromisso. É claro também a construção do trabalho intermitente, já que os jovens possuem um alojamento para dormirem no lugar de trabalho, afinal eles podem ser solicitados a qualquer momento. Segundo, quando bate a fome e eles não tem dinheiro para comer, o patrão dá o dinheiro para comerem como quem faz um favor. 




Como destacado pelo próprio ator Christian Malheiros, é de se estranhar de cara que eles trabalham o tempo todo, vem o patrão dispendendo dinheiro para tudo, mas sem nunca pagá-los. É muito bem trabalhado esse aspecto rotineiro por parte do diretor, desde quando eles entram no galpão e todas as oportunidades se tornam um "extracampo" perante a imposição do ferro-velho, até quando começam a trabalhar perceber lentamente a situação onde se encontram. 


Chega então o momento da verdade, e Luca revela que desde que chegaram ali os gastos dos jovens tem sido contabilizado e eles agora possuem uma divida com o patrão, pois além de alimentação e moradia, eles devem pagar pelo aluguel das ferramentas utilizadas: não são detentores dos meios de produção. Segundo já havia pensado Karl Marx, os capitalistas são os donos dos meios de produção, eles empregam os trabalhadores e a eles pagam salários. 


Os proletários, por sua vez, oferecem sua mão-de-obra para realizar determinado trabalho em troca de uma remuneração. Segundo a teoria marxista, meios de produção são os conjuntos formados por meios de trabalho e objetos de trabalho e tudo aquilo que medeia a relação entre o trabalho humano e a natureza, no processo de transformação da natureza em si. As relações que se estabelecem entre os homens na produção, na troca e na distribuição dos bens são as relações de produção. O modo de produção é a maneira pela qual a sociedade produz seus bens e serviços, como os utiliza e os distribui.




A grande maldade do filme é que esse capitalista detentor dos meios de produção no Brasil de 2021 é um miliciano, o que é uma ironia por si só. Eles tentam então fugir, mas percebem que estão totalmente presos no galpão. Quando um deles finalmente consegue fugir após um descuido, temos a real proporção do que está acontecendo. 


A PM de São Paulo trás de volta o rapaz que fugiu, e começam a expor que sabem onde moram e o nome da mãe de todos os jovens presos ali. Isso toma uma proporção profunda, já que fica claro que aquilo é uma milícia.

 



Eles não tem para onde fugir, pois sem dinheiro e escolaridade só resta o crime, e se voltarem para casa, podem ser recapturados e ainda levar perigo para suas famílias. Essa sequência nos mostra que o trabalho escravo no Brasil é praticamente legalizado, basta que a pessoa seja pobre e sua cidadania questionada. 


Aqui um pensamento meu do inicio do filme foi reforçado. Toda perspectiva e dinâmica do filme podem ser reposicionadas para a ida de jovens pobres para a universidade no Brasil atual. Sem dinheiro próprio ou da família, morando longe da cidade, sem onde morar ou comer; os jovens as vezes são lançados na narrativa de que cursar uma graduação irá os salvar, mesmo sem saber qual profissão vão seguir e com uma economia em crise. Alguns contraem dívida para cursarem a faculdade privada. Isso parece justo dentro de uma visão humana de sociedade? Ainda mais se pensarmos que essa estrutura ajuda os que são mais abastados e logo se esforçam menos profissionalmente.




Faz sentido também aplicar ao próprio mundo trabalho. No Brasil, havia as leis trabalhistas de 1943, levaram ao que chamamos de CLT. Consolidação das Leis de Trabalho é o resultado de 13 anos de trabalho de juristas que se empenharam em criar uma lei que atendesse, na visão da época, à necessidade de proteção do trabalhador, dentro de um contexto de "estado regulamentador". Porém, com flexibilização trabalhista imposta no governo Temer, se tornou possível a "negociação direta com o patrão" e assim contratar sem respeitar leis trabalhistas. O que os 7 Prisioneiros explora, é que assim se legalizou de novo a escravidão, de uma maneira soft e combinada.


Segundo levantamentos e alguns pesquisadores, a reforma trabalhista dificultou o combate ao trabalho escravo. A Constituição brasileira de 1988, prevê a redução dos riscos inerentes ao trabalho como direito fundamental dos trabalhadores. A “Reforma Trabalhista” trouxe profunda precarização do mercado de trabalho e não concretizou as promessas de criação de empregos e impulso da economia. Assim, o contexto político em que houve a aprovação da “Reforma Trabalhista” se demonstrou absolutamente oportunista e antidemocrático. A flexibilização de normas trabalhistas impacta diretamente no combate ao trabalho análogo ao escravo, face à naturalização das péssimas condições de trabalho, tornando vazios conceitos que integram o Art. 149 do Código Penal, que prevê o crime de manter trabalhadores em condições análogas à escravidão. 




Eventualmente acompanhamos Mateus aprender com a estrutura, ganhar a confiança de Luca e se tornar ele mesmo capataz do chefe contra os outros escravos. A isso Nietzsche chamou "moralidade senhor–escravo", no livro a "A Genealogia da Moral". Para Nietzsche, uma moralidade é inseparável da cultura que a valoriza, o que significa que a linguagem, os códigos, as práticas, as narrativas e as instituições de cada cultura são informadas pela luta entre essas duas estruturas morais. A moralidade do escravo não visa exercer a vontade de alguém pela força, mas pela subversão cuidadosa. Não visa transcender os senhores, mas torná-los escravos também. A essência da moralidade do escravo é a utilidade: O bom é o que é mais útil para toda a comunidade, não apenas para os fortes.


Mesmo que eu não concorde totalmente com Nietzche e sua visão fatalista do mundo, Paulo Freire no Pedagogia do Oprimido já refletia sobre a cobiça do oprimido em se tornar opressor. É mais ou menos isso que acontece com nosso herói da história, Mateus. 


Ele se justifica dizendo que se não for ele ali, será outro e isso se refletiria no pior tratamento as colegas impostos ao trabalho forçado. Assim, Mateus se vê como agente da moralidade, que ficaria no meio, uma "terceira-via", entre a truculência e conservadorismo de Luca e o ódio a hierarquia dos colegas. Mesmo se fosse em um trabalho legal e remunerado, não é difícil ver isso acontecer em ambiente de trabalho, onde o patrão sempre tem seus favoritos. 




Esse fator da "transição" do personagem e sua personalidade, junto com o fato de descobrirmos que Luca e sua mãe vieram do interior, onde ele roubava galinhas a cavalo da fazenda onde ela trabalhava; fazem Mateus perder sua fé. O bom e o mau são ambos populares, sendo que enquanto os bons só são oprimidos, o mau apresenta uma solução: o individualismo. No início, Mateus é o primeiro a pensar coletivamente e tentar conquistar mais direitos para ele e os colegas, mesmo na situação de escravidão. E é justamente isso que na visão do filme o torna mais preparado para ser opressor também. 


Não tem como não ler 7 Prisioneiros de maneira política. Luca seria o bolsonarista padrão, que veio de uma vida pobre, mas sempre passando por cima das pessoas, e por isso trazendo consigo uma visão de hierarquia e meritocracia, que só existem enquanto moralidade. Os colegas escravizados, seriam de "extrema-esquerda", pois não conseguem ver nenhum vínculo possível, e Mateus seria a esquerda política que tenta negociar. Mas é possível negociar com tais lados ou só está ganhando com a destruição e ambos?


O final do filme é demasiado aberto para mim e estraga um pouco o filme. Não queríamos uma acomodação e sim uma superação, pois se não fica parecendo que o filme quer dizer que o trabalho escravo vale a pena, e isso não faz sentido né!? Era para ser assim mesmo, foi uma exigência do estúdio ou o que deu para fazer com o orçamento? Só sei que não faz sentido. Mas se interpretarmos como metáfora dos tempos políticos atuais, não significa uma acomodação ou adaptação estranho ao autoritarismo? Devemos entender como uma mensagem para os oprimidos, que apesar de tudo podem eles também prosperar e mudar de vida? Só sei que não chega estragar o filme, mas poderia ser um final melhor. 


Porém, de maneira geral, 7 Prisioneiros é um filme ótimo. Na minha opinião, o melhor filme brasileiro de 2021, algo que não será reconhecido por ser um filme de streaming, mas algo que considero super democrático. Apresenta alguns problemas, principalmente no roteiro afinal é apenas o segundo longa do diretor Alexandre Moratto. Por exemplo, ao criar o elemento dos policiais que sabiam onde moravam as famílias dos garotos, se impediu de criar uma boa conclusão para o filme se tornando fatalista demais a conclusão. Mas sua direção é boa apesar de simples. A atuação do filme está espetacular, com um Rodrigo Santoro cruel e que mal parece o mesmo ator que faz a série Westworld atualmente. Ele sempre fez atuações pesadas, mas sendo alguém mais progressista interpretando um conservador, a contradição deu um tom especial. O mesmo vale para André Abujamra, ator, cantor e filho do grande Antônio Abujamra, que no filme faz um capanga sinistro de Luca. Entretanto, a maior surpresa do filme foi Christian Malheiros, um ator jovem e muito bom que eu não conhecia até ver o filme, mas que é bem popular nas redes. O garoto simplesmente arrasa nos tons de transição entre o garoto bom que se torna mau também. 


 Disponível no Netflix.








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