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O Mundo em Perigo (1954): Filme sobre formigas gigantes radioativas reflete bem a mentalidade anti-comunista dos EUA na Guerra Fria



O sargento da Polícia Estadual do Novo México, Ben Peterson, e o policial Ed Blackburn descobrem uma garotinha vagando pelo deserto, perto da região de Alamogordo, em estado de choque e catatônica. Eles a levam para um trailer de férias próximo, localizado perto de um avião de observação, onde encontram evidências de que a menina estava lá quando foi atacada e quase destruída. Mais tarde, é descoberto que o trailer pertencia a um Agente Especial do FBI chamado Ellinson, em férias com sua esposa, filho e filha; os outros membros da família da menina continuam desaparecidos. Agora em uma ambulância, a criança reage brevemente a um som estridente e pulsante vindo do deserto. Ela se senta ereta na maca, mas ninguém mais percebe sua reação, e ela se deita novamente quando o barulho para. É um dos primeiros filmes de "monstro nuclear" dos anos 1950 e o primeiro filme a usar insetos como o monstro.


Em uma loja de propriedade do "vovô" Johnson, Peterson e Blackburn encontram o dono morto e uma parede da loja parcialmente arrancada. Depois de uma rápida olhada ao redor, Peterson deixa Blackburn para trás para proteger a cena do crime. Blackburn depois sai para investigar um som estranho e pulsante. Tiros são disparados, o som fica mais rápido e alto e Blackburn desaparece em uma cena aterrorizante. O capitão de Peterson mais tarde apontou que Johnson e Blackburn haviam disparado suas armas contra o atacante. Mais intrigante é o relatório do legista sobre a morte brutal de Johnson, que inclui uma enorme quantidade de ácido fórmico encontrada em seu corpo.




O FBI envia o agente especial Robert Graham ao Novo México para investigar, afinal uma das pessoas desaparecidas é um agente do FBI. Depois que uma estranha impressão é encontrada na areia perto do trailer dos Ellison, o Departamento de Agricultura envia os mirmecologista, Dr. Harold Medford (Edmund Gwenn), e sua filha, Dra. Pat Medford, para ajudar na investigação. O ancião Medford expõe a menina Ellinson aos gases de ácido fórmico, que a libera de seu estado catatônico; ela grita em pânico e grita "Eles!". As suspeitas de Medford sobre Camponotus vicinus são validadas por sua reação, mas ele não revelará sua teoria prematuramente.




No acampamento de Ellinson, Pat encontra uma formiga gigante de 2,5 metros de comprimento. Seguindo as instruções do ancião Medford, Peterson e Graham atiram nas antenas da formiga, cegando-a e matando-a usando uma submetralhadora Thompson . Medford finalmente revela sua teoria: uma colônia de formigas gigantes, mutada pela radiação do primeiro teste da bomba atômica perto de Alamogordo, é responsável pelas mortes na área. O General O'Brien ordena uma busca por helicóptero do Exército e o formigueiro gigante é encontrado. Bombas de gás cianeto são atiradas para dentro, e Graham, Peterson e Pat descem ao ninho para verificar se há sobreviventes. No fundo, Pat encontra evidências de que duas rainhas eclodiram e escaparam para estabelecer novas colônias.




História por trás do filme 


Sucesso de público e crítica, esse é um dos filmes mais reconhecidos da carreira do diretor Gordon Douglas, que inclui musicais, westerns e dramas policias. De acordo com o catálogo de longas-metragens do American Film Institute, pesquisas modernas creditam O mundo em perigo como o primeiro longa-metragem de insetos gigantes. Segundo o catálogo, “o técnico Dick Smith, do estúdio Warner Bros, projetou dois modelos ‘em tamanho real’ de formigas enormes, que eram controladas por cordas e roldanas, para interagir com os atores. Filmagens de modelos menores e de formigas de verdade, ampliadas para parecerem ter entre dois e quatro metros de comprimento, foram intercalados com o resto do filme.”




Quando Them! ou O Mundo em Perigo começou a produção no outono de 1953, foi originalmente concebido para ser em 3D e Warner Color. Durante a pré-produção, foram feitas filmagens de testes em cores e em 3D. Alguns testes de cores dos modelos de formigas em grande escala também foram feitos, mas quando chegou a hora de fazer o teste 3D, a Warner Bros. 'O equipamento da câmera 3D "All Media" não funcionou corretamente e nenhuma sequência pôde ser filmada. No dia seguinte, um memorando foi enviado informando que os aspectos de cor e 3D da produção deveriam ser descartados; widescreen preto e branco seria agora o formato de apresentação do filme. A Warner Bros. esperava emular o efeito de "tratamento de choque eficaz" de seu thriller de ficção científica anterior The Beast From 20,000 Fathoms; no final das contas, no entanto, o filme nunca foi feito em widescreen. Por causa da preparação de certas cenas, muitas das configurações de câmera para 3D ainda permanecem no filme, como os títulos de abertura e as tomadas de lança-chamas direcionadas diretamente para a câmera. 



Embora a Warner Bros. não estivesse satisfeita com os resultados em cores, os títulos do filme foram impressos em vermelho e azul vívidos contra um fundo preto e branco para dar à abertura do filme um "impacto" dramático. Esse efeito foi obtido por uma seção Eastman Color emendada em cada impressão de lançamento. 




A entrada do último ninho das formigas foi filmada ao longo dos vertedouros de concreto do rio Los Angeles , entre as pontes da primeira e da sétima rua, a leste do centro da cidade. A representação do deserto de Chihuahuan, no sul do Novo México, é na verdade o deserto de Mojave perto de Palmdale, Califórnia. O Mercy Hospital era uma instituição real e agora é o Brownsville Medical Center. 


James Whitmore usava "elevadores" em seus sapatos para compensar a diferença de altura entre ele e James Arness. Whitmore também empregou trechos de "negócios" (gestos e movimentos com as mãos) durante as cenas em que apareceu para chamar mais atenção para seu personagem quando não estava falando.


O grito de Wilhelm, criado três anos antes para o filme Distant Drums, é usado durante as sequências de ação: quando um marinheiro a bordo do cargueiro é agarrado por uma formiga, quando o personagem de James Whitmore é pego nas mandíbulas de uma formiga e quando uma viga de madeira no alto cai sobre um soldado na sequência de drenagem de tempestade de Los Angeles. 


As formigas gigantes, pintadas com uma cor verde-púrpura, foram construídas e operadas por técnicos invisíveis supervisionados por Ralph Ayers. Durante a sequência climática da batalha nos esgotos de Los Angeles, há um breve tiro de uma formiga se movendo em primeiro plano com o lado removido, revelando seu interior mecânico. Este erro foi obscurecido nos lançamentos em DVD do filme. 


O pôster do filme mostra uma formiga gigante com olhos ameaçadores de humanos, em vez dos olhos compostos normais de uma formiga, agarrando e levando embora uma mulher americana...




Os sons que as formigas gigantes emitem no filme são os gritos de pererecas com voz de pássaro misturados com os gritos de um tordo, toutinegra e pica-pau-de-barriga-vermelha. Foi gravado em Indian Island, Georgia, em 11 de abril de 1947 pelo Cornell Lab of Ornithology.


Este filme se tornou ícone da cultura pop norte-americana e existe um verdadeiro show de referências a ele em vários conteúdos de mídia diferentes. 


A banda Them do cantor Van Morrison foi nomeada em homenagem a este filme. Joey e Chandler fazem referência ao filme na TV em Friends (1995), no episódio "Aquele em que Rachel e Ross... você sabe". A banda punk The Misfits, lançou uma música intitulada "Them!", com letras diretamente inspiradas no filme, em seu disco Famous Monsters (1999). A série de videogames It Came from the Desert foi inspirada em Them! E por último o game Fallout 3 , que se passa em um deserto pós-apocalíptico irradiado, tem uma missão secundária envolvendo formigas gigantes mutantes intituladas "Aqueles!" em homenagem ao filme. 




Leitura do filme 


Assim que conheci o filme; através do jogo Fallout 3. Foi assim: eu já conhecia o jogo Fallout 3 há muitos anos, mas sempre me furtei a jogá-lo por o considerar maçante, com uma temática muito densa para a maioria dos jogos, e isso me dava preguiça de começar. Entretanto, com a pandemia de Covid-19, o jogo ganhou nova conotação para mim já que ele conta a história do mundo após uma suposta Terceira Guerra Mundial, entre China e Estados Unidos. 


Quando o clima de guerra nuclear tomou conta, uma empresa de tecnologia cria as "vaults"; uma espécie de abrigo nuclear a baixo da terra e em comunidade, onde as pessoas morariam em "isolamento social" por causa da radiação. Apesar do clima apocalíptico, as vaults eram vendidas como artigos de luxo em publicidades que mostravam o glamour e distinção social que era adquirir uma. Foi então que a China ganhou a guerra após jogar uma bomba atômica nos Estados Unidos.




Nós jogamos cerca de 200 anos depois, com o personagem que acompanhamos desde o nascimento até se tornar adulto na vault. Eventualmente acabamos por sair da vault para procurar o pai do protagonista, e vemos o que se tornou Washington, a capital dos Estados Unidos: um grande terreno baldio cercado de mutantes e bandidos. Quando você sai da vault no jogo, pode ir a onde quiser, eis que eu fui parar de cara na missão inspirada no filme. Entretanto o jogo piorou a situação e acrescentou sopro de fogo as formigas, tornando-as ainda mais bizarras e repugnantes (além de mortais). 




 Estou contando essa história pois essa missão do jogo reflete e me inspirou muito a criar o estilo e a linguagem do site O Gambiarra. Neste jogo, além de fazer gambiarras constantemente para sobreviver, com itens e lixos que você coleta no cenário, é possível notar a proposta de que em um universo apocalíptico os filmes se tornam guias de sobrevivência, ou seja, se tornam "gambiarras culturais". 



O jogo também deixou claro a intenção do filme com sua premissa sobre a invasão da China comunista aos Estados Unidos: "Eles!" são os comunistas, e O Mundo Em Perigo é uma peça de propaganda anti-comunista. Seu objetivo era disseminar o pânico moral para doutrinar os americanos contra o comunismo, associando de maneira fantástica e assustadora, a ideia de ameaça oculta e exterior com crime, imoralidade, desrespeito as leis, morte e crise.




De acordo com Stanley Cohen, autor de um estudo sociológico sobre a cultura e mídia juvenil, chamado Folk Devils and Moral Panics (1972), um pânico moral ocorre quando: "... [uma] condição, episódio, pessoa ou grupo de pessoas surge e acaba sendo definido como uma ameaça aos valores e interesses sociais". Aqueles que começam o pânico quando temem uma ameaça aos valores sociais ou culturais predominantes são conhecidos pelos pesquisadores como "empreendedores morais", enquanto as pessoas que supostamente ameaçam a ordem social têm sido descritas como "demônios folclóricos". Ele distingue 3 fases:


1 - Definir a agenda - selecionar eventos desviantes ou socialmente problemáticos considerados dignos de atenção, e então usando filtros mais refinados para selecionar quais eventos são candidatos ao pânico moral.


2 - Transmitir as imagens - divulgar as afirmações usando a retórica dos pânicos morais.


3 - Quebrar o silêncio, fazendo a declaração daquilo que o povo quer escutar. 


Desde a cena da garota mitologicamente perdida e traumatizada no deserto, se constrói a metáfora do desvio típica do pânico moral. "Eles!" são os comunistas. 





Entretanto, em nosso tempo, filmes americanos anticomunistas dessa época, como Matar ou Morrer (1952), são um dos tipos de filme que mais gosto de analisar por seu caráter ideológico exacerbado. Com a desagregação da União Soviética e o fim da Guerra Fria, o medo histérico dos comunistas desapareceu do cenário político internacional, fazendo com que muitos hoje mal se lembrem desse cenário. 


Com isso, filmes anticomunistas como O Mundo em Perigo, ganham nova conotação, parecendo muito mais ideológicos, histéricos e ameaçadores que os filmes comunistas dos soviéticos, geralmente centrados em temáticas históricas. Na verdade, este filme vai além: faz questão de mostrar seu poderio e sua vitória sob a ameaça externa. 




No final, toda a ameaça representada pelas formigas não é nada comparada ao grande poder exposto pelo complexo científico-militar dos Estados Unidos, que resolvem a crise. Entretanto, como sabemos, não existem formigas gigantes e os comunistas não comem criancinhas. Então quem tem o poder para controlar e destruir a vida das pessoas e de fato podem ser uma ameaça? Sim, exato, o complexo militar e científico que supostamente combateu a ameaça externa. Isso fica bem claro na cena da cidade, onde as pessoas estão pacíficas e felizes tomando conta de suas vidas, até geeps militares cruzarem as ruas junto com as notícias.


Fora um fator estético não muito pensado pelos produtores do filme: As formigas são o elemento mais visual e maneiro do filme, influenciando esteticamente vários produtos culturais, para além da mensagem ideológica, como quando os Misfits homenageiam mais as formigas em sua música (com o som aterrorizante produzido por elas) do que ao próprio filme. Ou seja, quando vamos ver o filme O Mundo Em Perigo, só vamos para ver as formigas. E se as formigas representam os comunistas e todos só vão no cinema para ver as formigas, não estão indo para consumir uma espécie de "marxismo cultural"?





Nos anos 1960, Lacan definiu a psicanálise como "o que reintroduz na consideração científica o Nome-do-Pai". Segundo artigo da psicóloga Rosa Lopes, o
 Nome-do-Pai é um conceito contemporâneo, criado por Lacan no Seminário 3, mas com antecedentes na obra de Lacan. Em "Os complexos familiares na formação do indivíduo", sob o termo "imago do pai", Lacan enuncia uma ordem diferente de todas as fantasmagorias mortíferas experimentadas pela criança na função materna, cujo dano é reparado pela função paterna. Enquanto identificação, ela impede o desejo incestuoso. Mas, como sublimação, produz uma outra forma de satisfação no lugar do valor sexual obtido com o recalque. Além disso, regula a maturação sexual e instaura a verticalidade das relações e a dissimetria dos gozos, posicionando-se entre o privado e o público. 


Isto permitiu: separar os registros real, simbólico e imaginário, indistintos em Freud; situar o plano simbólico (desejo do Outro) como transindividual; localizá-lo como objeção ao imaginário. A ordem simbólica repara o dano imaginário: é a diferença entre a experiência do corpo próprio fragmentado, vivida pelo sujeito, e a unificação experimentada por meio da imagem. É o operador que indica o caminho da satisfação substitutiva e instaura as diferenças sexual e geracional. Neste sentido, equivale à função paterna: se a fantasia é o laço que articula transitivamente, só a ordem simbólica pode sobrepor-se a este eixo e responder pela consistência, articulação e regulação do que está em jogo no laço imaginário.


Explicando: ao associar o tribalismo primal, remetendo ao formigueiro, a vida selvagem e coletiva, o filme busca operar uma castração através do medo e da repugnância das formigas. Aqui a figura do pai castradora só é substituída pelo Estado. Entretanto, ao fazer isso, reintroduz a pessoal no universo imaginário, libidinal, e simbólico. A ideia é que pela intensidade da representação simbólica (formigas assassinas) as pessoas naturalmente as repudiassem pelas ideias de perigo e desordem que causam. Entretanto, se é o operador (leia-se, a pessoa) que define o caminho do seu gosto e interação libidinal, eu posso construir um incrível afeto pelas formigas; ainda mais que no filme ninguém nunca pensou em as capturar e estudá-las cientificamente. 




Desde seu surgimento ao final fatídico, tudo o que o filme faz é pregar e guiar de maneira psicológica e automática para a necessidade imediata das formigas serem obliteradas, extintas. Porém, complicando mais ainda o debate com Bakhtin, formigas são seres naturais e matérias. Ao pensar em uma, existe todo um arquipélago de associações que fazemos baseados em nossas experiência; como lembrar de natureza, terra, fazenda, interior e etc. Esse elemento material e estrutural causado pelas formigas serem animais inofensivos a maioria das vezes, pode ser a explicação do filme sair pela culatra.  




Vale lembrar que as formigas estão associadas em nosso imaginário, desde Esopo na Fábula da cigarra, como animais trabalhadores e que vivem para o trabalho (ou seja, são os comunistas grandes trabalhadores?). Assim, para além da associação do medo e do pânico, ideias sociais, vem primeiro uma associação natural e do trabalho: as pessoas podem se identificar com as formigas. Ainda mais em países como Brasil e Estados Unidos, que possuem grande economias agrícolas. Não é muito inteligente em um país de fazendeiros colocar as formigas como inimigas, pois por mais que elas possa estragar seu pique nique, são animais cotidianos demais para termos medo o suficiente. Isso constrói o elemento plástico e pastelão final para configurar nosso afeto pelas formigas: as formigas são ridículas e inofensivas demais para sentirmos medo. Por isso não tenho medo de dizer que O Mundo em Perigo é o filme mais comunista em ser anti-comunista da História.




Os elementos visuais, a fotografia sombria, o som apavorante das formigas e todo elemento de extracampo das formigas, que demoram até aparecer, formam o espectro perfeito da ambientação do filme. É incrível como as cenas externas são feitas em estúdio e ainda assim parecem boas. Só que esses elementos são técnicos e formais, que se substituirmos o significante simbólico, ainda temos o mesmo resultado: são as formigas inocentes que tentam fugir dos cientistas e militares assassinos. Ou melhor: a ciência e os militares são o governo, e as formigas são o povo, governados como um coletivo, como formigueiro, como gado. Ou você aceita a viver no formigueiro (sociedade), controlado por policiais, militares e cientistas, ou será obliterado. 


Disponível no The Streamable.




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