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Perfume de Gardênia (1992): Um retrato dos efeitos do denuncismo policial no jornalismo brasileiro

 

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Perfume de Gardênia é um filme brasileiro, dirigido por Guilherme de Almeida Prado. Se passando entre o final dos anos 80 e início dos 90, a trama neo noir acompanha a vida do taxista carioca Daniel. Ele passa o dia inteiro dentro táxi interagindo com as pessoas mais diferentes possíveis, lendo ou ouvindo jornais policiais. Essa relação de indiferença, o torna uma pessoa amarga, sobrando para sua esposa Adalgisa e seu filho Joaquim suportarem suas paranoias


Esse filme é um pouco subestimado. Lançado no início dos 90, em uma época que o cinema nacional foi devastado, o filme possui uma estética noir mais comum em filmes dos anos 80, o filme ficou obscurecido pela época, mas possuindo diversos elementos que tornam o filme interessante.


Como já disse, acompanhamos a história do taxista Daniel, interpretação de José Mayer. De perfil conservador e sério, Daniel passa grande parte de seu tempo ouvindo jornais policiais no rádio do táxi. Isso passou a dar a ele a concepção de que a sociedade está "perdida". Para completar, nas cenas iniciais do filme um casal tenta assaltar seu carro, mas Daniel anda armado e mata os dois bandidos. 


Além disso, dirigindo pelas madrugadas do Centro do Rio, Daniel acaba dirigindo para putas, traficantes, bicheiros, drogados e outras pessoas que habitam o "submundo" das noites cariocas. Todos eles contam suas estórias e experiências a Daniel, que as escuta com um misto de nojo e curiosidade.


Este clima contribuí para a deterioração da sanidade de Daniel, o que se reflete no comportamento dele com a família. Sua esposa, Adalgisa vive e é tratada como dona de casa, mãe e mais nada por ele.


Certo dia, Daniel está no trabalho e uma equipe de cinema vem rodar em seu bairro, e o diretor nota Adalgisa e simpatiza com ela. Ele a convida para atuar em uma "pontinha" no filme. Ela aceita, sem comunicar nada ao marido.


Um belo dia (mas não tão belo assim), o filme estreia no cinema, e Adalgisa, inocente, convida seu marido para assistir. Acontece  que para desespero de Daniel, o filme é uma espécie de chanchada, com cenas de nudez e onde sua esposa faz uma cena erótica. E enquanto a cena se deu com um homem ok, mas quando começa uma cena de cunho homossexual entre a personagem de Adalgisa e sua empregada, com assobios da plateia, Daniel se emputece e sai da sala.


Se pensarmos bem, naquela época o erotismo e a nudez eram algo muito explorado pelo cinema de arte, principalmente a Nouvelle Vague, sendo considerado algo sofisticado e cult. Adalgisa de certa maneira tinha razão a tomar tal atitude: o problema de Daniel era a  repressão sexual. Ela tentou estimulá-lo de uma maneira sofisticada, interpretando uma "puta" sem ser de fato, já que nesses filmes não há ato sexual de fato, apenas a simulação. Mas Daniel é reprimido e conservador demais e não vê assim. O episódio acaba com o casamento dos dois. 


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Vários anos se passam, Joaquim se torna adulto. Seu pai continua como taxista e sua mãe canta em shows de cabaré, cena que lembra o filme Veludo Azul (1986). 


Uma vez que a convivência com o pai é rotineira e fria, Joaquim quer ter mais contato com sua mãe. Só que ela já está decadente em sua carreira e alcoólatra, como se a ausência da família impedisse seu sucesso artísticos, algo muito conservador por parte do filme. 


Daniel por sua vez nunca esteve tão louco. O jornalismo policial denuncista cresce e se torna quase como um ruído constante, ganhando espaço na trilha para exemplificar a loucura de Daniel, algo que lembra o clássico Bandido da Luz Vermelha. Mas agora, Daniel vai além e começa a ir em delegacias do Rio de Janeiro confessar crimes que ouvia no rádio e lia no jornal.


Resumindo a história, Daniel no fim do filme mata a esposa, se revelando um feminicida, e nos levando a desconfiar se ele de fato não cometeu os crimes que confessou. Mas ele não calculava, é que se filho estava na casa e ele que segura o B.O, levando o pai ao desespero final do filme. Seu conservadorismo era uma fachada para esconder suas próprias loucuras.


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É interessante analisar como o filme reflete algo conhecido para os quem conhecem o jornalismo brasileiro: a ascensão do jornalismo denuncista. É chamado de jornalismo denuncista, um estilo que passou a ser usado no início do anos 90 por só focar em denuncias, escândalos, casos de corrupção e demais crimes com teor moral, objetivando atingir o espectador de maneira sensacionalista, mesmo que de maneira infundada e sem nenhuma prova. 


O clima do governo Collor contribuiu para isso. Quando eleito em 1989, Fernando Collor de Mello prometeu acabar com a corrupção e com os chamados "marajás", nome para os altos funcionários públicos indicados e não concursados. Entretanto uma vez eleito, não fez nada do que prometeu e isso despertou o ódio da imprensa que começou a atacar Collor por tudo. Os menos profissionais aproveitaram para levar esse clima de revolta para o jornalismo policial, e logo crimes que chocam a opinião pública, e assim ganham teor político. Serial killers, psicopatas, crimes violentos e entre familiares viraram o foco e dos jornais. O motivo é claro: como estavam com um governo que haviam ajudado a eleger mas perderam de controle, a crítica não pode se áter a política e ir além: atacar algo como a "essência" perdida do ser humano.


"Mundo tá perdido mesmo", "bandido bom é bandido morto", "ser humano não presta"... filosofias pragmáticas e cotidianas que dão respostas rápidas pro vazio da existência e convivência em sociedade e da incapacidade de alterar o futuro político do país. Mas quem, como Daniel, poderá se esconder por trás de tal narrativa? 


O filme é bem de TV e não tem muita produção, mas a estética noir, estilo filmes de Hong Kong, e a trama psicológica tornaram o filme atemporal. A direção e a fotografia são ótimas. Christiane Torloni, mesmo bem jovem, e José Mayer estão interpretando demais no filme, em arquétipos que eles viriam a reencenar em várias novelas depois. Mas a retórica e estética fatalista e realista, por vezes limita o filme a um universo caótico, onde nada dá certo e logo não há potência. Mas o fator da crítica perfeita a mídia da época fazem o filme valer a pena e ser quase como um registro de um o momento de virada histórica no país. 


O diretor, Guilherme de Almeida Prado, tem uma visão kitsch do Brasil, com influência de filmes B, do noir e do melodrama das novelas que me agrada bastante. 


Carlota Joaquina que se dane: Perfume de Gardênia é o verdadeiro filme da retomada.


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