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Tomb Raider, História e antiquarismo: proximidades e cisões marcam enredo da saga

 


Na maior parte do mundo, a História não é considerada uma ciência "para nerds". No Brasil, a tradição do bacharelado jurídico ou engenheira, criou um cenário onde mesmo as saberes pouco complexos podem ser considerados "densos", "parados" ou "chatos".


Entretanto, a muito tempo o profissional da história perdeu sua "aura" acadêmica. E por uma questão muito simples: objetos antigos podem ter muito valor. Imaginem quanto pode valer uma roupa usada por Napoleão ou um vaso da antiguidade chinesa?


Isso criou um profissional da História diferenciado: o homem que se interessa pelos fatos e coisas históricas, sem se interessar ou estudar a História em si( nas palavras do historiador, Arnaldo Momigliano). 


A profissão de antiquário é uma prática de trabalho com a história que remonta a tempos longínquos, e hoje os verdadeiros antiquários são raros (ainda mais em um país como Brasil que não viveu a tão romantizada Idade Média europeia). Mas o antiquarismo de maneira geral, saiu dos porões empoeirados e se modernizou e transformou no colecionador moderno. 


Todo mundo que coleciona coisas, mesmo que sem valor histórico, como action figures de Star Wars ou objetos promocionais da Coca Cola, praticam uma certa forma de antiquarismo. 


A pratica de colecionar objetos de relevância social em geral, se anexou como uma prática pseudo-histórica na cultura pop de maneira geral, e isso de certa forma trouxe de volta temáticas históricas as narrativas pop. Tomb Raider foi um dos produtos culturais que surgiram nessa esteira. 


Surgindo pela primeira vez 1996, no game Tomb Raider, o jogo conta a história da aventureira britânica, Lara Croft. Na trama da saga, Lara é filha de um renomado historiador britânico, por isso sempre foi criada em um ambiente de conhecimento histórico e com muitas lendas envolvendo objetos místicos e de muito valor espalhados pelo mundo. 


Lara é apresentada como uma mulher bonita, inteligente e atlética, uma arqueóloga britânica que se aventura em antigas tumbas e ruínas perigosas ao redor do mundo à procura de artefatos valiosos.


Lara Croft passou grande parte de seu tempo estudado em Wimbledon, em confinamento na alta sociedade, a que seus pais pertenciam. Tudo isso muda após uma viagem ao Himalaia, onde o avião em que Lara viajava sofre um acidente, do qual ela é a única sobrevivente. Lara teve que sobreviver por semanas até ser resgatada, tendo que aprender a caçar e sobreviver na marra.


A experiência alterou sua vida completamente, a levando a viajar pelo mundo e aprender sobre as diversas civilizações antigas. Em consequência, foi repudiada por seu pai, Lorde Richard Croft, que como historiador não aprovava que sua filha fosse uma antiquaria. 


Esse paradigma é explica pela visão que as profissões tem mutuamente de si. O historiador, vê o antiquário/arqueólogo, como "profissional" ou "mercador" da História. Isso porque, como dissemos, a prática consiste em recortar e dar ênfase mais aos objetos históricos e seu valor, do que o que ele pode representar em termos de conhecimento para civilização humana. 


Já o antiquário, vê o historiador como um burocrata de escritório, que só se interessaria pela historia uma vez que ela já aconteceu, logo pelas fontes oficializadas pela tradição ocidental. Então acreditam que a historia ainda deve ser "descoberta", através de objetos e demais itens desconhecidos ou esquecidos pela civilização. 


Em outras palavras, na visão do pai de Lara ela é uma saqueadora de tumbas ("tomb raider") e ela o vê como um elitista. Esse paradigma das formas de compreender e atuar em torno da História é o que gera o desentendimento de Lara com seu pai, marcando-a com uma insegurança que ela busca superar se ponto em aventuras sempre mais arriscadas.  


Lara passa a trabalhar como arqueóloga contratada, adquirindo artefatos e tesouros raros para museus e colecionadores ricos de todo o mundo, além dela mesma.


No jogo Tomb Raider de 2013, a série de jogos passou por um reboot, e vemos as origens de Lara Croft em sua primeira expedição. A história decorre em Yamatai, uma ilha onde a protagonista e os seus amigos naufragaram. Lara tem que salvá-los, além de ter que lutar contra os habitantes e os perigos naturais da ilha. 


Yamatai é um país da antiguidade em Wa (Japão) durante o período Yayoi (circa 300 AC – 300 DC), referenciado em documentos históricos e de navegação chineses e japoneses da antiguidade, mas que simples na Modernidade desapareceu dos registroa deixando dúvidas de aua localização e até mesmo de sua existência. Até hoje, historiadores linguistas e sinologos buscar precisar a localização de Yamatai, sem sucesso.


Depois de muitas horas de pesquisa, Lara acredita que Yamatai está localizada no interior do Triângulo do Dragão, junto à costa japonesa. Depois de um naufrágio, Lara encontra Yamatai e descobre que na ilha existe um culto de fundamentalistas religiosos sádicos, controlados pelos restos de um antigo exército Shogun, místico exercito que fazia parte da Guarda do Trovão que protegia a Rainha Himiko.


Durante o jogo, varias itens e cenários fazem referência a Segunda Guerra Mundial na ilha, alusão ao fato de a seita ser composta de extremistas e o Japão ter aderido ao bloco dos nazistas na guerra. Nesse jogo, mas também em outros, Lara Croft aparece como agente do "iluminismo" contra o obscurantismo de seitas. Inclusive os vilões de Tomb Raider são ou se tornam secundários perante as forças mágicas envoltas na trama. 


Esses elementos fazem de Lara, como uma britânica, uma espécie de missionária da democracia liberal, contra o obscurantismo de regimes autoritários. Só que esse discurso da centralidade é usado para equiparar regimes de esquerda e socialistas a regimes fundamentalistas, religiosos e ditaduras militares. 


Isso nos leva a pensar, como já sugeriu o próprio criador original da Tomb Raider, Toby Gard, como uma vilã ou anti-herói. Ela vai até países, intervém na cultura local, mata animais, mata indígenas e moradores locais, em busca de roubar artefatos históricos, para vende-los no mercado negro dos milionários mundiais e em troca de dinheiro o qual ela nem precisa, já que é filha de uma rica família e mansão que vai em busca de aventuras para se sentir melhor. Tanto que a versão de 2013, tentou mudar essa imagem de Lara, fazendo-a parece frágil e indefesa perante riscos as quais ela não escolheu passar.


E esse dilema de caráter da Lara Croft e da saga Tomb Raider, é o que percorre as áreas profissionais de História como um todo. Agir sobre a história empiricamente, implica em ser agente alterador de seu rumo, e não agir a entrega a ser um campo academicista, voltado a eterna analise das versões oficiais da historiografia tradicional de gabinete. São disputas e decisões éticas que se dão em seu tempo e alteram a forma de sua feitura e do horizonte que ela pode construir. 


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