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Dr. House: A saúde entre a medicina do diagnóstico e a medicina do cuidado




A série Doutor House talvez tenha sido uma das séries mais inovadoras das típicas séries americanas. Situada em torno do fictício hospital em New Jersey, o Princeton-Plainsboro Teaching Hospital. 

Afinal de contas, alguém lembra  aí, e vai apostar que a doença é lúpus? Para o Doutor House, sem exceções, "todo mundo mente". Apesar de sua visão pessimista de mundo. 


Doutor House ganhou espaço nos lares através de sua ironia ácida e afiada, e de sua eterna busca cética de ser o "antiheroi". A série da Fox foi ao ar pela primeira vez em 2004. O canal é conhecido pela ligação com um viés mais centralista e de direita dos Estados Unidos. Mas por isso mesmo sempre se esforçou em fazer entretenimento de qualidade.



Ou seja, ele pode até fazer boas ações para os outros, mas nunca gostaria que isso fosse o que seria falado sobre ele. Ele quer ser conhecido como mal e implacável. É mais fácil assim cortar a burocracia e assim, salvar vidas bem da maneira free style. Criada por David Shore, a série contou com 177 episódios, e ao todo, 8 temporadas.
 

Pensando no valor da série enquanto produto cultural, ela se situa no meio da típica série médica americana. Os americanos sempre tiveram preferência por assistir séries de cunho ou policial ou médico. Uma das primeiras da nova saga sendo a famosa E.R (plantão médico),  e depois a febre Greys Anatomic. 

O famoso ator que interpreta House é Hugh Laurie, um ator inglês que fez Stuart Little. Além de comediante, música e escritor, é evidente que o ator passou algo de genial para a interpretação de seu personagem. Como é visto na sua fita de audição, onde teve que esconder seu sotaque para interpretar um típico americano politicamente incorreto. 



Na hora de tentar o papel para Doutor House, ele não era a primeira escolha, mas acho que hoje em dia, ninguém pensaria no House interpretado por outro ator.


Como nos Estados Unidos a medicina é privada, ela envolve certo mistério mercadológico, é normal associar saúde com capitalismo, e a série Doutor House sabe disso, e busca problematizar a nossa tendência maniqueísta de buscar heróis plenos e chatos para torcer e ser fã. 


 A primeira temporada incluía Cuddy, Cameron, Chase, Foreman, Wilson e House. Esse era o elenco clássico, que foi se alterando ao longo das temporadas. 



Vamos a série e aos detalhes mais importantes:


No início, somos apresentados ao problemático Doutor House, médico de hospital universitário (aquele tipo de hospital que estudante de medicina reside, faz estágio, e depois vira médico). 


Doutor House mesmo sabendo que é avaliado de perto pela reitora e sua amiga Cuddy, que quer que ele desenvolva um "lado humano", e por isso o obriga a criar um "time" dele de analistas, fato que é desprezado por House, que acha que apenas com sua inteligência pode dar conta de todos os casos anormais que chegam até ele. Sua especialidade na medicina é a nefrologia, como também a infectologia. 

O time que ele monta é composto inicialmente por Foreman, médico negro e brilhante, que quer ser o antagonista em relação ao House. Mas o que descobrimos ao longo da temporadas, é que eles dois são os mais parecidos de todos! Foreman também é frio e brilhante, tão quão é Doutor House. 


A Cameron seria a personagem mais oposta ao House, humanitária, linda e boa moça, ela representa o lado mais inspirador da medicina. Já o Chase é filho de médico famoso, e por isso é considerado café com leite.


 Em vários momentos da série, House brinca com Chase ao longo da série, e diz que só o contratou porque seu pai pediu. Como Cameron, Chase é considerado um "lindo", "galã", aquele que seria o protagonista se a série fosse maniqueísta.


Doutor House também possui histórias mal resolvidas do passado, como seu grande amor Stacey, que volta em certa altura da trama, mas mesmo assim, a relação não dá certo.  House tem como hábitos nos tempos livres contratar prostitutas para os serviços de praste, como também para lhe fazer massagem. 


Acontece que ele sofreu um acidente grave, e por isso ele manca e sofre dores absurdas que o afastam da "humanidade" e de ser um médico "bonzinho". Seu vício em vicondin é uma ironia, já que é médico e deveria "dar o exemplo", mas acaba sendo dependente de remédios, e de sua tradicional bengala. Teve episódios onde ele experimentou outras drogas para substituir o vicondin. Chegou até a arranhar o uso de skates em certa altura da série, mas o resultado foi que ele ficou feliz, e atrapalhou seu eu ranzinza, necessário segundo ele, para fazer os diagnósticos que ninguém consegue. 

Afinal, um Doutor House da vida não se encontra em qualquer esquina, ou em qualquer hospital. Mesmo os hospitais sendo universitários, tudo é "a la carte", procedimentos e exames. Se você não tem dinheiro, dificilmente consegue se tratar com todas as morbidades e anomalias. 

A metáfora é que como a medicina nos Estados Unidos, Doutor House não é um franciscano que não liga para dinheiro.  A ironia e a o bate rebate da série é um nível lá em cima. Várias vezes, um detalhe nas viagens, o uso de algum chaveiro de chumbo, ou algo assim, é o que desenvolve uma condição ímpar, e é necessário estar fazendo outra tarefa, ou no caso do House, conversando com seu melhor amigo Doutor Wilson, para desvendar esse paradigma da doença. 

Normalmente, quando ele descobre o real motivo das patologias, ele abandona Wilson, ou quem estiver com ele no momento da epifania para lá, e vai correndo escrever no quadro para sua equipe para mostrar sua genialidade. 

Na quarta temporada, House faz uma nova seleção de time. Dessa vez, ele faz seleção através de um "reality", a brincadeira é colocar vários médicos competindo até o fim para conseguir as vagas de emprego. Tinha até mesmo um cara, ex faxineiro, que era um dos favoritos de House, e que tinha mentido de cursar medicina, mas que tinha assistido aulas escondido na faculdade que trabalhava antes como faxineiro.



Então entra em cena o elenco novo com a 13,  o Taub ex cirurgião, e a Amber, a "irmã" gêmea de personalidade de House, que acaba namorando Wilson, seu melhor amigo. 

A Cuddy é uma mulher bem empoderada, e há consenso de que é a única que ficou com o House apesar de todas as suas loucuras, na maioria das narrativas da trama. Cuddy é a única que consegue segurar os métodos não convencionais de House. 

O legal de House é que para curar um paciente, esse que ele sempre busca não conhecer. 
Seria muito fácil cair em locais de clichê, mas doutor House esconde um paradigma acadêmico muito forte, que é a medicina do diagnóstico, dos livros, do hospital privado, genial, e da universidade privada e cara. Essa é a medicina de House, distante do paciente, do seu "público", porém, ainda assim, genial. A medicina do diagnóstico é uma medicina essencialmente privada, que envolve uma burocracia específica para tudo e qualquer procedimento. É necessário autorização dos paciências e familiares para garantir os riscos de tratamento. 

A contradição é que House que trabalha no regime da medicina americana, quase acadêmica, também não gosta da burocracia, e sempre tenta passar por cima das autorizações para tratar os paciências, o que leva House a sempre debater com Cuddy os limites éticos da medicina. 

Para House, que é um maquiavélico clássico, os fins justificam os meios. Mas o que esconde no fundo, é que tem certa tara em descobrir o que ninguém descobre e assim salvar as pessoas, mesmo que ele não goste delas. 

Até o fim, o personagem busca manter seu estilo e forma de pensar, mas é forçado a entender que o mundo não pode girar apenas em torno dele, mesmo que ele seja genial. O canal que produziu a série é a Fox, emissora principal representante do campo dos republicanos nos Estados Unidos. Por isso podemos ver uma incitação ao politicamente correto em tempos de tantos governos de esquerda, que podiam se perder em busca de hegemonia e burocracia. 

A medicina do cuidado, que não é bem vista por House, é um tipo de medicina também muito válida, como vista em países como Cuba, ou no próprio Brasil com projetos como o "médico de família", estariam dentro desse universo da medicina social. Mas para a apreciação do estilo americano de medicina, é com certeza a série para entender como eles pensam a medicina e suas  tantas especializações.  

Acho interessante pensar que House é um cara avesso ao ato de conhecer o paciente. Para ele, o médico não precisa ser simpático. Para House, todos mentem, então precisa confiar em ninguém. Para eles, a medicina do diagnóstico, feita em uma hospital universitário ligado a Princeton. Esse tipo de medicina é mais cara, mais acadêmica, aquela da pesquisa, do estudo, da observação de anomalias e dos procedimentos que tem que conviver com a indústria da saúde e com as metodologias científicas de hipótese, observação, erro, acerto. 

Podemos entender que House simboliza uma série muito interessante e divertida para todos, mas especialmente para alguém que queira cursar medicina, por exemplo. Apesar de ser uma série médica, busca não ser refém da cultura "careta" da medicina. Também podemos tecer críticas dizendo que isso é uma forma de minimizar o poder dessa saúde privada americana. Mas a luta dentro do sistema de House, mesmo sendo uma luta individual, e pouco engajada politicamente, demonstra que ele quer ser um médico para as causas perdidas, para aqueles casos que ninguém entende. Isso equipara o House aos cientistas, mais do que aos médicos tradicionais.

De qualquer maneira, a série é imperdível. A segunda série que mais vi e revi, cada episódio tem uma gama extensa de lições sociológicas e debates existenciais profundos, a permissão para se ser inteligente desacompanhado de manual de boas 
maneiras foi uma grande visão do show. 

Uma qualidade que dificilmente vai brotar novamente nas séries americanas. Muito bom de ver e rever.  

Um clássico!

 E aí galera, bora maratonar?

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