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Associar a Revolta da Vacina ao bolsonarismo é de uma ignorância sem tamanho


Revolta da Vacina foi movimento histórico que contribuiu para otimizar métodos científicos de vacinação. Compará-la ao bolsonarismo é terraplanismo maior do que falas contra vacinação


É sempre difícil entender acontecimentos históricos sem realizar juízos de valor imediatos. Se vemos uma coisa que hoje em dia é considerado senso comum mas no passado não era, sentimos a sensação de "progresso" e "superioridade". Assim, se vemos a palavra associada a algo positivo e alguém se posiciona contra, julgamos como ignorante, mesmo que no passado.

Isso acontece de maneira recorrente quando se fala da Revolta da Vacina. Ocorrida em 1904, auge da conhecida "República Velha". A revolta contra  vacinação da varíola ganhou as páginas dos jornais em charges e chamou a atenção das autoridades pela seu furor e violência, que tomou as ruas, principalmente do Centro do Rio em protesto, virando e depredando carros e bondes.  

Então, é comum varias pessoas entenderem a história de maneira superficial e atacarem as pessoas do passado como "anti-ciência". Essa versão é estupida por ignorar as próprias causas da revolta, que foi o método de aplicação da vacina

Na época, vacinas não eram aplicadas com seringas, mas sim com uma espécie de ponta de lança ou florete, embebida na solução da vacina, com o qual era feito um corte sobre a pele, método que é questionável em sua efetividade imunológica. Além disso, não havia "posto de saúde" para vacinação. As vacinas eram aplicadas por autoridades militares e policiais, que iam até as residências. Em caso de recusa, eles invadiam as casas e vacinavam as famílias a força. O principal motivo da revolta era esse, já que os oficiais ao fazerem isso, seguravam as mulheres e levantavam o vestido e recolhiam as mangas, expondo pernas ou braços, sinais de erotismo para a etiqueta da época. 

Além disso, principalmente no Rio de Janeiro, a vacinação fazia parte de um projeto de reformas urbanas e sanitárias, encabeçadas por Pereira Passos, e que resultaram no "centro moderno", com desocupação e demolição de cortiços. Por coincidência ou não, as pessoas mais atingidas por tais "modernizações" foram as pessoas pobres que foram afastados dos centros e obrigados a migrar para as favelas e morros ao redor do centro do Rio. É como se "moderno", "saudável" e "limpo" fossem antônimos de pobre.

Vejam bem, é muito diferente ser contra a vacina por motivos ideológicos e logo não querer se imunizar, de se recusar a passar por métodos vexatórios associados com a imunização. 

Isso não existe hoje em dia. O método de vacinação é eficaz, quase indolor e pouco ou nada invasivo, tornando a recusa a imunização em ato ideológico. 

A fala de Bolsonaro dizendo que "ninguém é obrigado a tomar vacina" é totalmente irresponsável, e nada tem haver com a Revolta da Vacina e as causas históricas associadas a mesma. Lá havia motivação real. As reclamações foram importantes, primeiro enquanto movimento político, já que foi uma das primeiras mobilizações contra a República Velha e que levariam Getúlio Vargas ao poder. Segundo, por ser um movimento que através das reclamações, serviu para otimizar os métodos de vacinação. 

As pessoas do passado, estão protegidas pela história, mas Bolsonaro não. Ligar os dois é anacronismo, e anacronismo é pensar de maneira não científica, e logo proteger um pouco Bolsonaro.   

A quem interessar, recomento o livro "Pereira Passos, um Haussmann tropical: a renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX", de Jaime Benchimol,historiador e pesquisador da Fiocruz.



   

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