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Spectros: Série nacional mistura fantasmas, folclore e história do Brasil


     

             A mistura de elementos paranormais, cultura asiática, e elementos da cultura brasileira, como a corrupção policial, barraquinha de pipoqueiro, lendas urbanas e a História, dão ar moderno e inovador a série


    
                   Estórias e filmes sobre fantasmas, zumbis e criaturas sobrenaturais sempre me interessaram por jogar com a ideia de uma força oculta que está latente e prestes a emergir e alterar a normalidade da sociedade. Por isso, fantasmas e zumbis muitas vezes podem ser vistos como metáforas da ideologia. Por exemplo, em A Noite dos Mortos Vivos (1968) de George Romero, os zumbis são forças inexplicadas e latentes que emergem do nada, meio sem explicação, mas no final os zumbis eram uma metáfora do racismo contra o protagonista.

                    Mas e se fantasmas e zumbis fossem herança do passado e lendas históricas do Brasil? É o que propõe a série Spectros. Produzido pela Netflix, e criada por Douglas Petrie (criador de Buffy e CSI)  a série nacional se passa no bairro da Liberdade em São Paulo, e conta a aventura de três jovens Pardal, Mila e Carla.

                         Logo de cara somos confrontados por um fantasma de uma gueixa japonesa. Ela nos dá a mensagem: “Não se deve romper a barreira entre os vivos e os mortos”. Então vemos a data de 1858, e um grupo de japoneses correndo de não se sabe o quê por um cemitério e se refugiando em uma igreja católica. Uma senhora japonesa com uma pequena menina, tentam entregar para o padre um embrulho com cinzas. Ao que se entende ela quer que o padre esconda as cinzas antes que a ameaça desconhecida irrompa, o que fatidicamente ocorre. Eram fantasmas, vestidos com roupas formais católicas, que matam todos, inclusive a senhora japonesa, sobrando apenas a criança, que se esconde em baixo de uma mesa, segurando apenas sua boneca. Justamente algo na boneca fez os fantasmas se afastarem.

                  Na verdade, a boneca é um Bunraku, bonecos de teatro, herança da cultura popular japonesa. Roland Barthes, em "Império dos Signos", explica um pouco dessa cultura, demonstrando como tem ligações com entidades fantasmáticas:

                  “Pode ser que a marionete japonesa conserve algo dessa origem fantasmática; mas a arte do Bunraku imprime-lhe um sentido diverso; o Bunraku não visa a “animar” um objeto inanimado, de modo a tornar vivo um pedaço do corpo, uma lasca do homem, conservando sua vocação de “parte”; não é a simulação do corpo que ele busca, é, por assim dizer, sua abstração sensível. Tudo o que atribuímos ao corpo total, e que é recusado a nossos atores sob pretexto de unidade orgânica, “viva”, o homenzinho do Bunraku o recolhe e o diz sem nenhuma mentira: a fragilidade, a discrição, a suntuosidade, a nuance inédita, o abandono de toda trivialidade, o fraseado melódico dos gestos, em suma, as qualidades que os sonhos da antiga teologia concediam ao corpo glorioso, isto é, a impassibilidade, a clareza, a agilidade, a sutileza. Eis o que Bunraku realiza, eis como converte o corpo-feitiche em corpo amável, eis como recusa a antinomia animado/inanimado e dispensa o conceito que se esconde por detrás de toda animação da matéria, e que é simplesmente a “alma”.

             Já a igreja que vemos no início é a Capela dos Aflitos, que fica no bairro da Liberdade. Inaugurada em 1775, era um lugar comum para a realização de velórios, sendo que as pessoas mais ricas eram enterradas dentro das igrejas, enquanto pobres escravos e indigentes, eram enterrados a céu aberto nos arredores da igreja em covas rasas.

                 Por trás da trama, também há a história baseada em fatos reais de Francisco José das Chagas, o Chaguinhas. Para quem não conhece, Chaguinhas foi uma figura importante da Revolta Nativista, movimento este onde soldados se rebelaram exigindo equiparação dos salários e dívidas ainda da Guerra do Paraguaí. Este é um ponto polêmico na História nacional, pelo fato de muitos historiadores revisionistas importantes serem a favor da guerra pelo seu sentido de nacionalismo. Entretanto, historiadores paraguaios e brasileiros de tendencia mais ao centro ou a esquerda, consideram que o evento foi um massacre e que criou uma mácula autoritária nas forças armadas brasileiras.

                      Voltando a Chaguinhas, ele foi identificado como líder do movimento e condenado a morte pela forca. José Bonifácio, figura importante da época, foi contra a execução e apelou pela vida de Chaguinhas, mas não foi considerado. Chaguinhas foi para forca, só que a corda arrebentou e o povo que acompanhava a execução gritou "Liberdade!". Segundo as leis francesas da forca, se a corda arrebenta em uma execução e a pessoa permanece viva, é entendido como "vontade divina" e é lhe concedido o perdão ou uma pena menor. Porém, Chaguinhas não teve tanta sorte e o ao governo ser consultado mandou seguir a execução. A corda arrebentou outra vez. E então Chaguinhas foi morto a pauladas. A série aliviou e disse que Chaguinhas foi morto enforcado com um cinto. Muitos afirmam que a execução teve fundo racista pela etnia de Chaguinhas.

                  Chaguinha é um personagem da série. Uma espécie de fantasma entre os demais, que serve como guia espiritual e protetor dos garotos em diversos momentos.

                  A série começa com os três, Mila, Pardal e Carla, em uma delegacia sendo interrogados por dois policiais civis sobre um crime, inicialmente desconhecido, depois revelado como o assassinato de uma senhora japonesa. De primeiro não gostei da ideia. Não gosto de séries, filmes e narrativas em geral que romanceiam a polícia e o judiciário, pois isso é uma das coisas que atrapalham no bom julgamento. Na brincadeira de culpado ou inocente, muitos erros acontecem e brincar com isso é muito sério. Mas então os policiais são demonstrados como dois facistinhas. A mulher, senhora mais velha, faz o perfil da policial "boazinha", mas tenta sempre jogar com o terror e o medo dos três jovens. Já o cara, é o perfil do "boyzão da civil": playboy, branco e racistinha. Durante o interrogatório, ele dá um soco na cara de Pardal, muito provavelmente pela sua origem. O sangue escorre. Mas sua companheira não concorda com a situação. Sem contar a trama, só vale destacar que o próprio policial civil estava possuído por um fantasma, sendo ele um dos vilões da trama, matando a própria parceira e os demais policiais da delegacia. Será o sobrenatural da série uma metáfora para fascismo?

                        Os episódios iniciais se passam então nessa situação, onde seus relatos na delegacia puxam flashbacks para explicar a trama da série. Mila, tem problemas com seu pai, que é alcoólatra mas esconde um segredo. Ela tenta ser uma menina modelo e estudiosa, mas é zoada pelas colegas da escola, sendo uma de suas bolinadoras a própria Carla. Carla é filha de uma evangélica fervorosa, e tem problemas com sua mãe que é conservadora mas só quer o bem da filha. Pardal é um jovem mestiço, que não estuda, e como sua mãe desapareceu, cuida de seu irmão mais novo, que é um pequeno gênio que está fazendo uma investigação independente sobre crimes e casos de morte no bairro da Liberdade, cruzando informações de jornais e da História. Por isso, Pardal tem que fazer serviços para a máfia chinesa para se sustentar e ao irmão. Ele não deseja ser criminoso e não é mau, mas acaba sustentando uma personalidade mais dura e é levado pelas situações.

                      Sem dar muitos spoilers, deixo para vocês conferirem a série e tirarem suas próprias conclusões. Mas gostei bastante e gostaria de destacar a qualidade técnica e narrativa da série, não devendo nada para séries gringas e também não as copiando, buscando referências próprias dentro da nossa cultura nacional. A mistura de elementos paranormais, cultura asiática, com cultura nacional e coisas tipicamente da nossa cultura, como a corrupção policial, barraquinha de pipoqueiro, lendas urbanas e histórias que de fato aconteceram, dão ar moderno e inovador a série. Isso torna a trama viva, pois já que os fantasmas ganham vida e há personagens e acontecimentos históricos, sentimos que a história está viva, em movimento, e que aquela história poderia estar acontecendo no esquina do seu bairro. Essa simultaneidade dá um caráter atual a série, tornando-a perfeita para ser vista em época de vírus e quarentena. Uma das melhores séries nacionais que já vi, se não a melhor.



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