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Você não estava aqui (2019) e a uberização do trabalho




               O capitalismo atual é anômico. Ele funciona em garantir o lucro e o crescimento, mas sem saber para quem ou para o que vai esse lucro. Consecutivamente esse capital sente que não deve ter responsabilidade em integrar as relações sociais, mas sim que deve na verdade despersonalizar as relações econômicas.


                           "Anomia". A palavra busca descrever o estado de perda de identidade e sentido típica de uma ruptura gerada por mudanças estruturais no mundo e no tecido social. O capitalismo, o crescimento da sociedade contemporânea, com a vida nas cidades, e o imperativo do uso da razão marcam a transição do século XVIII para o XIX. A palavra serve para explicar quando algo na sociedade não funciona, gerando patologias, mazelas morais e sociais. O capitalismo surgiu com essa promessa funcional: integrar a sociedade entre o trabalho e o valor. Logo, a função do capitalismo em sua essência é garantir a geração de riqueza e a funcionalidade da sociedade, dando valor ao trabalho e integrando o indivíduo a sociedade em sentido de gerar riqueza para os outros e para si mesmo. 

                         Porém, o capitalismo atual é anômico. Ele funciona em garantir o lucro e o crescimento, mas não se tem como saber para quem ou para o que vai esse lucro. Consecutivamente esse capital sente que não deve ter responsabilidade em integrar as relações sociais, mas na verdade deve despersonalizar as relações econômicas. Idealmente isso poderia ser positivo. A descentralização do trabalho permite a maior flexibilidade no processo de produção. Mas na prática está transformando a relação de economia e trabalho totalmente anômicas. Isso pode ser melhor visto na questão do capitalismo de aplicativos. 

                               Para não sermos dogmáticos, claro que temos que admitir que em situações específicas o capitalismo e regimes de trabalho com aplicativo podem salvar vidas e garantir a renda emergencial e imediata, coisa que certos seguimentos políticos de esquerda não conseguem entender. Mas ao mesmo tempo, a incerteza, a despersonalização dos negócios e a falta de garantia lança o indivíduo de volta as intemperes que o capitalismo surgiu para conter. É isso que podemos ver em "Você Não Estava Aqui". 

                                A tradução literal do título original seria "Desculpe, nós sentimos sua falta". O título brasileiro acabou sendo mais emocional. No enredo, acompanhamos a história de Ricky, sua esposa e seu casal de filhos. Eles passam por dificuldades financeiras desde a crise econômica de 2008, quando perderam sua casa. Agora Ricky tem de trabalhar como entregador de pacotes, onde o regime de contratação é feito através da ideia de que o funcionário na verdade é um sócio, um empreendedor independente, associado ao chefe da empresa. Isso é apresentado em uma cena, onde seu chefe brutamontes, faz um discurso de "coaching" para os seus funcionários. Esse jogo é importante para que entendamos a jogada. Ricky não trabalha para uma pessoa que o paga pelos serviços prestados, Ricky trabalha para uma meta, quanto mais ele entrega mais ele recebe, fazendo com que Ricky chegue a trabalhar 14 horas por dia. Sua família não está distante disso. Sua esposa, Abbie, trabalha enfermeira home-care, atendendo as pessoas com problemas de saúde os mais distintos possíveis. 

                                      Só que tal condição está destruindo a família. Eles já quase não se vêem mais e seu filho Seb está andando com um grupo, realizando constantemente o crime de dano ao pichar paredes de locais públicos, indo parar na delegacia. 

                                     Não há muito o que comentar do filme. Sua premissa é a sua conclusão,  a narrativa só se desenrola lentamente em torno disso. Aspectos técnicos, como câmera, direção, fotografia e direção artística no filme são bem básicos, tornando inclusive seu desenrolar enfadonho, mas o momentos de Ricky com sua filha são bem bonitos. Gosto dos filmes de Ken Loach. Considero que ele seja um ótimo diretor e a mensagem social de seus filmes sempre me interessou bastante. Seu filme anterior, "Eu, Daniel Blake" sobre um senhor buscando o benefício na previdência social, foi ótimo. Mas tem uma coisa que não bate em "Você não estava aqui".

                                    A mensagem do filme talvez seja que Ricky deveria ser menos conservador e ouvir sua esposa e ficar com sua família, mas ao mesmo tempo ele quer criticar o modelo de negócios por aplicativo, mostrando como a família é dependente financeiramente de um capitalismo descentralizado e imperialista. O filme seria uma demonstração sobre a situação da classe econômica no capitalismo e como ele está corroendo as relações sociais. Mas para quem é feita essa demonstração? Se a resposta for para o próprio povo trabalhador que está sendo explorado, duvido muito que o filme o impacte, pois o filme é triste e seu final aberto. Se você é um trabalhador que trabalha 14 horas por dia, duvido que no seu tempo vago você queira ver um filme sobre o seu trabalho. O que me leva a opção de que o filme é feito para aqueles que não tem experiência com esse tipo de negociação de tempo e afeto de quem trabalha desde jovem, sendo então um filme voltado para conscientizar setores da elite e da classes médias sobre a situação. Talvez esperando que através disso eles tenham pena dos mais pobres e parem de naturalizar a desigualdade. Mas se perante a ascensão dos conservadores na política de todo mundo, crise econômica e na área de saúde, contendo até vírus de proporção mundial, eles ainda não perceberam a deterioração da democracia e das instituições, será o filme de Ken Loach o divisor de águas que os fará perceber? Acho difícil...É um filme tocante, e é importante que um cineasta conhecidamente engajado como Ken Loach se posicione sobre os problemas da sociedade, mas talvez seu teor seja triste demais para fazer diálogo democrático necessário, deixando-o com ar derrotista demais para conscientizar de fato. 

                                             

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