O filme mostra como foi a experiência da guerra para a mente dos ingleses: uma armadilha. Isso pode ser visto como uma mensagem de pacifismo, explorada em momentos como no fato do cabo William fugir de quase todos os combates do filme. Como disse o próprio Hobsbawm, a Inglaterra “perdeu uma geração” morta na "Grande Guerra".
"O soldado da paz não pode ser derrotado
Ainda que a guerra pareça perdida
Pois quanto mais se sacrifica a vida
Mas a vida e o tempo são os seus aliados" Cidade Negra e Herbert Vianna.
1917 é uma coprodução entre
Inglaterra e Estados Unidos, retratando a Primeira Guerra Mundial,
também conhecida como a “Grande Guerra”. O filme acompanha a
missão de dois soldados britânicos durante o episódio conhecido
como “Operação Alberich”. Baseado em fatos reais, a operação
se deu em território francês, entre Arras e Saint-Quentin, e
consistiu em uma falsa fuga elaborada pelos alemães, que na verdade
era uma retirada estratégica com objetivo de atrair os ingleses para
uma armadilha sabendo de seu ataque. Essa poderia ser a definição
perfeita para uma “false flag”, ou seja, uma cortina de fumaça.
Tudo o que os dois soldados britânicos devem fazer é entregar a
mensagem ao superior britânico do ataque, coronel Mackenzie
(Benedict Cumberbatch), avisando que a retirada alemã é armada, e
que se os ingleses atacarem vão todos morrer.
Antes de dizer o quê penso
sobre o filme, quero contextualizar um pouco a narrativa. Aqui vai um
trecho descrevendo a Primeira Guerra Mundial e sua importância
histórica, escrita pelo historiador já falecido Eric Hobsbawm em
A Era dos Extremos:
“ Essa
era a “Frente Ocidental”, que se tornou uma máquina de massacre
provavelmente sem precedentes na história da guerra. Milhões de
homens ficavam uns diante dos outros nos parapeitos de trincheiras
barricadas com sacos de areia, sob as quais viviam como — e com —
ratos e piolhos. De vez em quando seus generais procuravam romper o
impasse. Dias e mesmo semanas de incessante bombardeio de artilharia
— que um escritor alemão chamou depois de “furacões de aço”
(Ernst Jünger, 1921) — “amaciavam” o inimigo e o mandavam para
baixo da terra, até que no momento certo levas de homens saíam por
cima do parapeito, geralmente protegido por rolos e teias de arame
farpado, para a “terra de ninguém”, um caos de crateras de
granadas inundadas de água, tocos de árvores calcinadas, lama e
cadáveres abandonados, e avançavam sobre as metralhadoras, que os
ceifavam, como eles sabiam que aconteceria.
A
tentativa alemã de romper a barreira em Verdun, em 1916
(fevereiro-julho), foi uma batalha de 2 milhões de homens, com 1
milhão de baixas. Fracassou. A ofensiva dos britânicos no Somme,
destinada a forçar os alemães a suspender a ofensiva de Verdun,
custou à Grã-Bretanha 420 mil mortos — 60 mil no primeiro dia de
ataque. Não surpreende que na memória dos britânicos e franceses,
que travaram a maior parte da Primeira Guerra Mundial na Frente
Ocidental, esta tenha permanecido como a “Grande Guerra”, mais
terrível e traumática na memória que a Segunda Guerra Mundial. Os
franceses perderam mais de 20% de seus homens em idade militar, e se
incluirmos os prisioneiros de guerra, os feridos e os permanentemente
estropiados e desfigurados — os “gueules cassés” [“caras
quebradas”] que se tornaram parte tão vivida da imagem posterior
da guerra —, não muito mais de um terço dos soldados franceses
saiu da guerra incólume.
As
possibilidades do primeiro milhão de soldados britânicos sobreviver
à guerra incólume eram de mais ou menos 50%. Os britânicos
perderam uma geração — meio milhão de homens com menos de trinta
anos (Winter, 1986, p. 83) —, notadamente entre suas classes altas,
cujos rapazes, destinados como gentlemen a ser os oficiais que davam
o exemplo, marchavam para a batalha à frente de seus homens e em
conseqüência eram ceifados primeiro. Um quarto dos alunos de Oxford
e Cambridge com menos de 25 anos que serviam no exército britânico
em 1914 (Winter, 1986, p. 98) foi morto. Os alemães, embora
contassem ainda mais mortos que os franceses, perderam apenas uma
pequena proporção de seus contingentes em idade militar, muito mais
numerosos que os franceses: 13% deles. Mesmo as baixas aparentemente
modestas dos EUA (116 mil, contra 1,6 milhão de franceses, quase 800
mil britânicos e 1,8 milhão de alemães) na verdade demonstram a
natureza assassina da Frente Ocidental, a única onde estes lutaram.
Pois embora os EUA perdessem entre 2,5 e 3 vezes mais homens na
Segunda Guerra Mundial que na Primeira, em 1917-8 as forças
americanas estiveram em ação por pouco mais de um ano e meio,
enquanto na Segunda Guerra Mundial foram três anos e meio — e num
único setor bastante exíguo, e não no mundo inteiro.”
O
território e batalhas descritas por Hobsbawm nesse trecho são os
mesmos apresentados pelo filme 1917. O filme quer retratar
como a Inglaterra experimentou de maneira mais extrema a primeira grande guerra do século
XX, que para alguns foi mais intensa e mortífera que a própria
Segunda Guerra. A experiência inglesa com a guerra para muitos foi
mais traumatizante do que geralmente se indica. Pelo padrão cultural
e civilizacional que o país vivia até então, e como disse o
próprio Hobsbawm, a Inglaterra “perdeu uma geração” morta na
guerra.
País
inventor do capitalismo moderno e da indústria, a Inglaterra não
possuía naquela época uma geração de homens preparados para o
serviço pesado. Na verdade, estamos falando de uma geração de
jovens, estudantes, universitários, operários, que foram mandadas
por uma guerra abstrata para suas realidades cotidianas.
Na
primeira guerra, a Alemanha acabava de se unificar e historicamente
esse processo é muito longo para ser descrito aqui, mas basta dizer
que estamos falando de uma geração de homens alemães ainda ligados
a caça, trabalho pesado em obras e viviam muito mais em interiores
que os ingleses. Além disso, era um povo que havia acabado de se
unificar através dos ideais de nacionalismo, povo e superioridade, e
que estavam recentes e vivos na mente de sua população. Já os
ingleses eram mais hedonistas, e já duvidam sobre questões como de
nacionalidade perante os desafios de sobreviver a vida moderna das
cidades e do capitalismo.
De
repente, temos um confronto onde os jovens ingleses que faziam faculdade, pensando em emprego, sustento próprio e família, indo
para uma guerra contra os alemães, que culturalmente estavam vivendo
um processo próximo ao de outros países durante a Idade Média para
a Idade Moderna e as questões de nacionalidade implicadas no
processo. Obviamente seria um massacre. Isso é identificado por
alguns como um dos primeiros golpes dados pela Europa na Inglaterra
por ser um país demasiado grande financeiramente e também em poder.
Logo para desacelerar seu crescimento, atraí-los para uma guerra
para que seu crescimento capitalístico fosse desacelerado perante as
demais potências europeias e mundiais. As ideias de liberdade e
poder inglesas foram fundamentais para os chamar para uma guerra
contra o radicalismo, e é isso que 1917 demonstra.
A mensagem é clara: não estamos prontos para uma guerra. Todo
o filme e a descrição da batalha onde há uma emboscada são uma metáfora de como foi toda a experiência da guerra para a
mente dos ingleses: uma armadilha. Isso pode ser vistos como uma
mensagem de pacifismo explorada no filme em vários momentos, como no
fato do cabo William fugir de quase todos os combates do filme: a
guerra para ele não faz sentido, e por isso ele sempre foge da
peleja. Aqueles que a enfrentam e são determinados e honrados em
querer o combate são os que morrem de maneira rápida e instantânea.
Não há continuidade narrativa, apenas a oportunidade de matar ou de
ser morto e quanto mais você desvia mais sobrevive, e assim mais
fica próximo de conseguir levar sua mensagem.
Também o fato do filme se passar em plano sequência faz com que
diversas vezes o filme lembre um jogo de videogame, onde por momentos o filme quer passar a sensação de que temos que apertar algum botão para ver a cena seguinte, como nos “quick-time
events” dos games onde o jogador deve esmagar o botão.
Isso
nos leva a fotografia do filme, que é a que mais gostei desse ano. A fotografia feita pelo famoso Roger Deakins deixou o filme lindo visualmente e funciona maravilhosamente com a mensagem existencialista e de paz da história. A cor
acinzentada, o plano sequência com jogos de câmera e abrindo em
certos momentos para grandes planos abertos que exploram paisagens
simétricas, dão um ar grandioso ao filme, onde parece que estamos
vendo algum filme de Kurosawa. Por isso aposto que deve levar a
estatueta do Oscar de melhor fotografia para casa. Também deve levar melhor som. A mensagem
pacifista e antiguerra, que parece querer em parte dizer o por quê a
Inglaterra é por vezes conservadora e toma atitudes como o Brexit,
vai agradar bastante a Academia. Assim também é um grande candidato
ao melhor filme do ano. Mas ainda aposto no Jojo Rabbit pelo filme ter uma ideia mais política, contra o autoritarismo, tornando-o mais atual que 1917, que é mais belo do que de fato o filme que marca o contexto atual.
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