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1917 (2019): Mensagem de paz em tempos de guerra



     O filme mostra como foi a experiência da guerra para a mente dos ingleses: uma armadilha. Isso pode ser visto como uma mensagem de pacifismo, explorada em momentos como no fato do cabo William fugir de quase todos os combates do filme. Como disse o próprio Hobsbawm, a Inglaterra “perdeu uma geração” morta na "Grande Guerra".


"O soldado da paz não pode ser derrotado
Ainda que a guerra pareça perdida

Pois quanto mais se sacrifica a vida
Mas a vida e o tempo são os seus aliados" Cidade Negra e Herbert Vianna.



      1917 é uma coprodução entre Inglaterra e Estados Unidos, retratando a Primeira Guerra Mundial, também conhecida como a “Grande Guerra”. O filme acompanha a missão de dois soldados britânicos durante o episódio conhecido como “Operação Alberich”. Baseado em fatos reais, a operação se deu em território francês, entre Arras e Saint-Quentin, e consistiu em uma falsa fuga elaborada pelos alemães, que na verdade era uma retirada estratégica com objetivo de atrair os ingleses para uma armadilha sabendo de seu ataque. Essa poderia ser a definição perfeita para uma “false flag”, ou seja, uma cortina de fumaça. Tudo o que os dois soldados britânicos devem fazer é entregar a mensagem ao superior britânico do ataque, coronel Mackenzie (Benedict Cumberbatch), avisando que a retirada alemã é armada, e que se os ingleses atacarem vão todos morrer.

       Antes de dizer o quê penso sobre o filme, quero contextualizar um pouco a narrativa. Aqui vai um trecho descrevendo a Primeira Guerra Mundial e sua importância histórica, escrita pelo historiador já falecido Eric Hobsbawm em A Era dos Extremos:

“     Essa era a “Frente Ocidental”, que se tornou uma máquina de massacre provavelmente sem precedentes na história da guerra. Milhões de homens ficavam uns diante dos outros nos parapeitos de trincheiras barricadas com sacos de areia, sob as quais viviam como — e com — ratos e piolhos. De vez em quando seus generais procuravam romper o impasse. Dias e mesmo semanas de incessante bombardeio de artilharia — que um escritor alemão chamou depois de “furacões de aço” (Ernst Jünger, 1921) — “amaciavam” o inimigo e o mandavam para baixo da terra, até que no momento certo levas de homens saíam por cima do parapeito, geralmente protegido por rolos e teias de arame farpado, para a “terra de ninguém”, um caos de crateras de granadas inundadas de água, tocos de árvores calcinadas, lama e cadáveres abandonados, e avançavam sobre as metralhadoras, que os ceifavam, como eles sabiam que aconteceria.

         A tentativa alemã de romper a barreira em Verdun, em 1916 (fevereiro-julho), foi uma batalha de 2 milhões de homens, com 1 milhão de baixas. Fracassou. A ofensiva dos britânicos no Somme, destinada a forçar os alemães a suspender a ofensiva de Verdun, custou à Grã-Bretanha 420 mil mortos — 60 mil no primeiro dia de ataque. Não surpreende que na memória dos britânicos e franceses, que travaram a maior parte da Primeira Guerra Mundial na Frente Ocidental, esta tenha permanecido como a “Grande Guerra”, mais terrível e traumática na memória que a Segunda Guerra Mundial. Os franceses perderam mais de 20% de seus homens em idade militar, e se incluirmos os prisioneiros de guerra, os feridos e os permanentemente estropiados e desfigurados — os “gueules cassés” [“caras quebradas”] que se tornaram parte tão vivida da imagem posterior da guerra —, não muito mais de um terço dos soldados franceses saiu da guerra incólume.

          As possibilidades do primeiro milhão de soldados britânicos sobreviver à guerra incólume eram de mais ou menos 50%. Os britânicos perderam uma geração — meio milhão de homens com menos de trinta anos (Winter, 1986, p. 83) —, notadamente entre suas classes altas, cujos rapazes, destinados como gentlemen a ser os oficiais que davam o exemplo, marchavam para a batalha à frente de seus homens e em conseqüência eram ceifados primeiro. Um quarto dos alunos de Oxford e Cambridge com menos de 25 anos que serviam no exército britânico em 1914 (Winter, 1986, p. 98) foi morto. Os alemães, embora contassem ainda mais mortos que os franceses, perderam apenas uma pequena proporção de seus contingentes em idade militar, muito mais numerosos que os franceses: 13% deles. Mesmo as baixas aparentemente modestas dos EUA (116 mil, contra 1,6 milhão de franceses, quase 800 mil britânicos e 1,8 milhão de alemães) na verdade demonstram a natureza assassina da Frente Ocidental, a única onde estes lutaram. Pois embora os EUA perdessem entre 2,5 e 3 vezes mais homens na Segunda Guerra Mundial que na Primeira, em 1917-8 as forças americanas estiveram em ação por pouco mais de um ano e meio, enquanto na Segunda Guerra Mundial foram três anos e meio — e num único setor bastante exíguo, e não no mundo inteiro.”

         O território e batalhas descritas por Hobsbawm nesse trecho são os mesmos apresentados pelo filme 1917. O filme quer retratar como a Inglaterra experimentou de maneira mais extrema a primeira grande guerra do século XX, que para alguns foi mais intensa e mortífera que a própria Segunda Guerra. A experiência inglesa com a guerra para muitos foi mais traumatizante do que geralmente se indica. Pelo padrão cultural e civilizacional que o país vivia até então, e como disse o próprio Hobsbawm, a Inglaterra “perdeu uma geração” morta na guerra.

      País inventor do capitalismo moderno e da indústria, a Inglaterra não possuía naquela época uma geração de homens preparados para o serviço pesado. Na verdade, estamos falando de uma geração de jovens, estudantes, universitários, operários, que foram mandadas por uma guerra abstrata para suas realidades cotidianas.

        Na primeira guerra, a Alemanha acabava de se unificar e historicamente esse processo é muito longo para ser descrito aqui, mas basta dizer que estamos falando de uma geração de homens alemães ainda ligados a caça, trabalho pesado em obras e viviam muito mais em interiores que os ingleses. Além disso, era um povo que havia acabado de se unificar através dos ideais de nacionalismo, povo e superioridade, e que estavam recentes e vivos na mente de sua população. Já os ingleses eram mais hedonistas, e já duvidam sobre questões como de nacionalidade perante os desafios de sobreviver a vida moderna das cidades e do capitalismo.

       De repente, temos um confronto onde os jovens ingleses que faziam faculdade, pensando em emprego, sustento próprio e família, indo para uma guerra contra os alemães, que culturalmente estavam vivendo um processo próximo ao de outros países durante a Idade Média para a Idade Moderna e as questões de nacionalidade implicadas no processo. Obviamente seria um massacre. Isso é identificado por alguns como um dos primeiros golpes dados pela Europa na Inglaterra por ser um país demasiado grande financeiramente e também em poder. Logo para desacelerar seu crescimento, atraí-los para uma guerra para que seu crescimento capitalístico fosse desacelerado perante as demais potências europeias e mundiais. As ideias de liberdade e poder inglesas foram fundamentais para os chamar para uma guerra contra o radicalismo, e é isso que 1917 demonstra.

         A mensagem é clara: não estamos prontos para uma guerra. Todo o filme e a descrição da batalha onde há uma emboscada são uma metáfora de como foi toda a experiência da guerra para a mente dos ingleses: uma armadilha. Isso pode ser vistos como uma mensagem de pacifismo explorada no filme em vários momentos, como no fato do cabo William fugir de quase todos os combates do filme: a guerra para ele não faz sentido, e por isso ele sempre foge da peleja. Aqueles que a enfrentam e são determinados e honrados em querer o combate são os que morrem de maneira rápida e instantânea. Não há continuidade narrativa, apenas a oportunidade de matar ou de ser morto e quanto mais você desvia mais sobrevive, e assim mais fica próximo de conseguir levar sua mensagem.

         Também o fato do filme se passar em plano sequência faz com que diversas vezes o filme lembre um jogo de videogame, onde por momentos o filme quer passar a sensação de que temos que apertar algum botão para ver a cena seguinte, como nos “quick-time events” dos games onde o jogador deve esmagar o botão.



        Isso nos leva a fotografia do filme, que é a que mais gostei desse ano. A fotografia feita pelo famoso Roger Deakins deixou o filme lindo visualmente e funciona maravilhosamente com a mensagem existencialista e de paz da história. A cor acinzentada, o plano sequência com jogos de câmera e abrindo em certos momentos para grandes planos abertos que exploram paisagens simétricas, dão um ar grandioso ao filme, onde parece que estamos vendo algum filme de Kurosawa. Por isso aposto que deve levar a estatueta do Oscar de melhor fotografia para casa. Também deve levar melhor som. A mensagem pacifista e antiguerra, que parece querer em parte dizer o por quê a Inglaterra é por vezes conservadora e toma atitudes como o Brexit, vai agradar bastante a Academia. Assim também é um grande candidato ao melhor filme do ano. Mas ainda aposto no Jojo Rabbit pelo filme ter uma ideia mais política, contra o autoritarismo, tornando-o mais atual que 1917, que é mais belo do que de fato o filme que marca o contexto atual.

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