No Japão dos anos 1950, o professor universitário Tatsuo Kusakabe e suas filhas Satsuki e Mei (aproximadamente dez e quatro anos, respectivamente) se mudam para uma casa velha perto do hospital onde a mãe das meninas, Yasuko, está se recuperando de uma doença
Esse é o primeiro filme do Estúdio Ghibli analisado no blog, e isso tem um motivo: o filme é repleto de simbolismo. Isso faz com que, muito provavelmente, pessoas tenham visões bem diferentes sobre o que ele quer dizer e representar.
Com a mãe ausente e o pai sempre trabalhando, a solidão — comum a muitas crianças japonesas, e também uma realidade para muitas crianças nascidas no final do século XX — se torna rotina para as meninas na nova casa. Mas, diferente de uma realidade urbana, a solidão aqui não se transforma em prisão, e sim em uma oportunidade de explorar. Elas descobrem logo que a casa é habitada por pequenos espíritos domésticos escuros e empoeirados, chamados susuwatari, que podem ser vistos ao se mover de lugares claros para lugares escuros.
Os susuwatari acabam partindo em busca de outra casa vazia. Mei descobre dois pequenos espíritos que a conduzem até o interior de uma grande árvore de cânfora. Lá, ela encontra e faz amizade com um espírito enorme, semelhante a um urso. Quando ele emite uma série de rugidos, Mei interpreta o som como “Totoro”.
Mei acredita que Totoro é o troll de seu livro ilustrado Three Billy Goats Gruff. Ela adormece sobre Totoro, mas quando Satsuki a encontra, Mei está no chão. Apesar das muitas tentativas, Mei não consegue mostrar a árvore de Totoro para sua família. O pai a conforta dizendo que Totoro aparecerá quando quiser.
Na minha interpretação, tanto os pequenos espíritos quanto Totoro representam o medo — o medo das meninas diante de tantas coisas novas e desconhecidas. A casa nova, a ausência dos pais e a incerteza quanto à recuperação da mãe geram esse medo, mas um medo envolto em esperança e liberdade para viver novas experiências, afinal, as meninas ainda estão no início da vida. É como se tudo isso se materializasse em figuras fantásticas, sendo Totoro a mais notável dessas manifestações. Por isso ele não aparece na presença do pai: ele se manifesta justamente na ausência dele.
Um dia, as meninas esperam o ônibus do pai, que está atrasado. Mei adormece nas costas de Satsuki e Totoro aparece ao lado delas, permitindo que Satsuki o veja pela primeira vez. Totoro tem apenas uma folha na cabeça para proteção contra a chuva, levando Satsuki a oferecer seu guarda-chuva a ele. Encantado, ele lhe dá um pacote de nozes e sementes em troca.
Nessa parte, a simbologia de Totoro se mistura com a do próprio pai — como uma manifestação simbólica de sua presença protetora mesmo à distância. Digo isso pela questão da troca: as meninas esperam o pai com um guarda-chuva, pois está chovendo. Conforme o tempo passa, a incerteza gera um certo medo, até que Totoro (o pai) aparece, e agradece a gentileza com presentes — como um pai traria ao chegar em casa.
Então, um gato gigante em forma de ônibus (Catbus) chega; Totoro embarca nele e vai embora, como o pai que elas veem indo e voltado no ônibus.
Poucos dias após plantarem as sementes, as meninas acordam à meia-noite e encontram Totoro e seus companheiros espíritos dançando ao redor do jardim. Elas se juntam a ele, e as sementes crescem em uma árvore enorme. Uma metáfora clara: união e coesão criam raízes, tradição e lar.
Totoro leva as meninas para um passeio em um voador mágico. De manhã, a árvore se foi, mas as sementes brotaram.
As meninas descobrem que uma visita planejada por sua mãe foi adiada por causa de um contratempo em seu tratamento. Mei fica chateada e discute com Satsuki. Ela decide levar sozinha milho fresco para sua mãe, mas se perde no caminho.
O desaparecimento de Mei leva Satsuki e os vizinhos a procurá-la, pensando que Mei morreu. Em desespero, Satsuki implora pela ajuda de Totoro. Totoro convoca o Catbus, que leva Satsuki até a localização de Mei, e as irmãs se reencontram. O ônibus então as leva para o hospital, onde as meninas descobrem que sua mãe foi mantida no hospital por um resfriado leve, mas está se recuperando bem. As meninas secretamente deixam a espiga de milho no parapeito da janela, onde seus pais a descobrem.
Por fim, a mãe retorna para casa e as meninas brincam com outras crianças enquanto Totoro e seus amigos observam de longe.
É um filme bem bonito e um final bem fofo, mas perceberam que algo não bate? O final é utópico na medida que a mãe originalmente é apresentada como doente a muito tempo, o que só pode ser por algo grave ou crônico. E no fim é ideal, tudo está lá e se corrige naturalmente com um certo realismo fantástico. Entretanto, como tudo volta a seu eixo o lado fantástico daquela época solitária, na gestão do pai, cercada de seres fantásticos ficam lá, mas... do lado de fora, ternos, mas distantes.
Sim, o filme representa a relação do medo com o inesperado que faz parte da vida quando somos crianças, e conforme crescemos ele sempre está mais ou menos lá. Porém é mais que isso pelo detalhe de Miyazaki ter escolhido o pós segunda guerra mundial para a trama se passar, ou seja, as crianças do filme são baby boomers. O Japão não tomou um caminho muito legal na Segunda Guerra Mundial ao se aliar ao lado do Eixo no confronto. Entretanto, como ja falei aqui no blog algumas vezes, o japonês médio está muito longe de decidir os rumos de um pais que tem uma monarquia que está a mais de mil anos no poder.
Isso gerou no pós guerra, período que o filme quer retratar, uma profunda sensação de impotência por parte do povo, que sente que deve reconstruir um país o qual não se sabe os rumos, gerando um medo pela incerteza, similar o das crianças do filme.
Essa ideia do esforço pela reconstrução do país é representada no empenho do pai no trabalho, chegando tarde diversas vezes. A mãe estar doente é como o Japão estar doente com o conflito, se recuperando lentamente. E Totoro é a representação da tradição cultural do país e como isso pode ser uma inspiração, uma perspectiva e caminho para como lidar com as crises do futuro. Se você pensar em como o Japão se empenhou para se tornar um símbolo em tecnologia e produtos culturais, como animes e games, para se afastar da sombra da segunda guerra, Totoro é uma ilustração perfeita desse medo transvestido de potência, inspirada na propria tradicional cultural do país.
O animismo é um tema central em Meu Vizinho Totoro, de acordo com Eriko Ogihara-Schuck. Animismo é a crença de que objetos, lugares e criaturas possuem uma essência espiritual distinta. O animismo percebe todas as coisas - animais, plantas, rochas, rios, sistemas climáticos, trabalho humano e, em alguns casos, palavras - como sendo animadas, tendo agência e livre arbítrio. O animismo é usado na antropologia da religião como um termo para o sistema de crenças de muitos povos indígenas em contraste com o desenvolvimento relativamente mais recente de religiões organizadas.
Totoro tem traços animistas e seria algo como um kami porque vive em uma árvore de cânfora em um santuário xintoísta cercado por uma corda xintoísta, e é conhecido como mori no nushi (mestre da floresta). Kami (神 em japonês) ser sobrenatural com poderes que um ser humano comum não tem como: espíritos da natureza, protetores ancestrais, divindades relacionadas à prática religiosa do Xintoísmo. Note-se, todavia, que esta palavra não corresponde exatamente ao que nas religiões monoteístas se entende por “deus”. Para essas religiões, “deus” tem um sentido de transcendência e superioridade, habitante de um mundo superior. Também há desses deuses no Xintoísmo, mas o conceito não é suficiente. Kami designa toda a sorte de espíritos, fenômenos ou "poderes sagrados" invisíveis e poderosos. O termo liga-se etimologicamente ao sentido de “divino, supremo, elevado, superior” e é preferível a qualquer tradução. Nas escrituras antigas, aparecem outros nomes para designar o divino, mas todos caíram em desuso.
Ogihara-Schuck escreve que quando Mei retorna de seu encontro com Totoro, seu pai leva Mei e sua irmã ao santuário para cumprimentar e agradecer a Totoro. Esta é uma prática comum na tradição xintoísta após um encontro com um kami. De acordo com Phillip E. Wegner, o filme é um exemplo de história alternativa, utilizando o cenário utópico dos animes. Na minha visão, criando a confluência perfeita entre tradição e modernidade, de medo e potência entre, por exemplo, a arte clássica e as lendas mitológicas e o cinema e a cultura pop.
Miyazaki queria exatamente isso: através do cinema transformar a magia das tradições em algo moderno, um produto da indústria cultural, que impacte as novas gerações, que no caso as gerações do final de 80 e anos 90. No Brasil devido o fenômeno do Vhs e sua vida tardia no Brasil, junto com a introdução precoce do DVD, fez com que os filmes de Miyazaki ficassem mais populares nos anos 2000, principalmente após o sucesso de A Viagem de Chihiro.
A geração dos anos 80 era conhecida como "geração perdida". E a geração dos 90 e inicio dos 2000, a geração dos últimos que cresceram dentro de uma educação tradicional, sem acesso direito e constante a internet. Miyazaki quer pegar esse medo do inesperado dessas gerações e equiparar ao medo dos boomers no pós-guerra para, por um lado, trazer luz ao fato de como a segunda guerra impactou o mundo e isso deve ser lembrado, mas principalmente para passar essa ideia de buscar a cultura tradicional como solução ao inesperado.
Porém, isso é um pouco cínico, uma vez que Miyazaki não estava nos anos 50 e já tinha visto o resultado daquilo: a busca desfreada por dinheiro e sucesso moldou o caráter da geração do pós segunda guerra de maneira trágica no Japão, criando uma impessoalidade, individualismo, queda da natalidade e da visão de mundo compartilhado. A visão de Miyazaki para isso é apenas continuar acreditando, pintando tanto em cores visuais como psicológica seu universo mágico na cabeça das crianças, para que se ignore a postura dos pais e das gerações anteriores, focando no lado utópico da vida para continuar acreditando num mundo melhor.
É por isso que não surpreende as pessoas estarem fazendo suas fotos ficarem estilo um filme do Studio Ghibli com a inteligência artificial: isso é culpa do próprio Miyazaki, que ao convidar as pessoas ao seu mundo fantástico, acaba se fazendo parte do imaginário delas de tal maneira onde elas querem se sentir parte daquilo, afinal Miyazaki nunca pararia para fazer um desenho de uma foto da sua avô ou de sua família. Aqui a IA está sendo usada para expandir os sonhos aos quais o próprio Miyazaki nos ensinou a sonhar, onde autoria e dinheiro se tornam detalhes. Acredito que se a IA for usada para plágio é um sério problema, mas se for para difundir ainda mais arte de um artista, isso é ruim? Acho que o próprio deveria adorar sua promoção espontânea.
Meu Amigo Totoro ainda pode ser atual e que continua tendo grande validade. Mesmo que sua crença um pouco cega no progresso seja um pouco exagerada e cínica para os dias de hoje, como a cena do Totoro, o herói do filme, relegado a algo exterior e separado da casa e da família, a ideia de relativizar as coisas ruins da vida para tentar superar e usar seus medos como potência para conhecer coisas novas é o que o torna um filme inesquecível.
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