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Morte em Veneza (1971): Uma crise de criatividade e um romance impossível são usados para refletir o contexto boêmio e decadente de antes das grandes guerras


Gustav von Aschenbach, um renomado compositor austríaco, viaja para Veneza em busca de inspiração e descanso. Lá, ele se hospeda em um luxuoso hotel à beira-mar, onde conhece Tadzio, um belo jovem polonês que está de férias com sua família. Gustav fica fascinado pela beleza e inocência de Tadzio, e começa a segui-lo pela cidade, sem nunca se aproximar ou falar com ele. Enquanto isso, uma epidemia de cólera se espalha por Veneza, mas Gustav ignora os avisos e permanece na cidade, obcecado por Tadzio. O filme retrata a decadência física e moral de Gustav, que se entrega a um amor platônico e impossível


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O filme, assim como o livro, tem uma premissa de gênero muito interessante. Ao falar logo no título a palavra "morte", quer de propósito nos jogar logo de cara no gênero criminal, de detetive e investigação. E nesse gênero, é comum vermos primeiro a morte e depois a investigação dessa morte. Aqui passamos todo o filme/livro nos questionando: quem morreu ou vai morrer? 


No meio, somos provocados pela figura do escritor apaixonado por um rapaz de beleza extremamente feminina. Aqui é preciso destacar a incrível perspicácia do diretor do filme, Visconti, que soube construir psicologicamente cada transição psicológica do filme. Como na primeira vez que ele vê Tadzio, onde ele tenta ignorar mas a câmera continua focar em Tadzio, ressaltando sua beleza que é ambígua, nos fazendo constantemente pensar se inicialmente não estamos olhando para uma mulher. 


Logo na sequência, o autor trava um debate filosófico com um amigo, que obviamente é um tropo do próprio autor. No quarto de hotel, eles travam um debate psicológico e filosófico sobre o verdadeiro valor dos sentimentos em perspectiva com a arte e a existência humana. Para ser bem pragmático, de um lado o protagonista está falando sobre a educação, a arte e a ciência em um plano geral, enquanto um projeto humano. Por isso, para ele, a arte é como a ciência e a educação, possuindo a missão de passar sabedoria, por isso ele não acredita que seja possível um envolvimento real, pessoal, e romântico com seu objeto, uma vez que isso "corromperia" a arte, em uma visão bem similar a cristã, mas que preserva pelo progresso e pela ciência. 


Já seu amigo, acredita que isso nada tem a ver com a real arte, uma vez que se o mal existe ele deve ser representado. Logo, para conhecer a verdade, o autor, da arte ou da ciência deve "se envolver", se contaminar, para só assim entender a malícia humana. Em termos estéticos e de arte, essa visão está certa, uma vez que propõe que toda a elevação cultural do ocidente, principalmente europeia, é uma farsa. Porém, em termos políticos, que é o tom do debate do amigo, essa ideia de romper com o estabelecido, na arte e na ciência remeteria ao pensamento, que no contexto de Thomas Mann, levaria ao nazismo pelo senso de "reparação histórica". Só que tão pouco o puritanismo cristão do autor parece a solução. 


Aqui, além de estar debatendo a questão de separação entre trabalho de campo e o trabalho teórico, a sequência busca debater com é o lugar da arte, da literatura, perante o trabalho científico e acadêmico. Ela subverte e vulgariza a ciência ou está junto no processo civilizacional de "disseminar as luzes"? 


Se pensarmos a questão das formas de Tadzio e de sua beleza, querem refletir a nossa própria noção do que é belo. A "musa inspiradora" tem as formas perfeitas de um homem, o que faz muito sentido se pensarmos que diversos pintores do Renascimento italiano eram homossexuais e introduziam na arte a sua noção de belo através da simetria das formas, que podem inclusive ser masculinas. Isso seria o desvelar de uma farsa, a da "musa", já que a inspiração poderia vir de qualquer lugar, ou seria um pensamento machista e antirromântico pela dúvida que provoca a arte? Esse é o ponto de a Morte em Veneza.


O ponto para a trama é que o protagonista se moraliza e por si só, estabelecendo ele mesmo por seus preceitos artístico que o romance com Tadzio é impossível, mesmo que ele observe que o garoto é aberto para um amizade mais "colorida" com um dos amigos. Entretanto, ao mesmo tempo, o protagonista não consegue deixar Veneza. Um, por que sua mala foi despachada errado. Dois, pois obviamente está apaixonado por Tadzio e sabe que ao partir tudo acabou, se tornando apenas mais uma história de verão. 


Assim, passamos por mais alguns momentos interessantes e geniais da direção, tudo parece uma tragédia cômica que ri da cara do protagonista, e ele sabe disso. 


A certa altura, todos são acometidos por uma epidemia de varíola, fazendo parecer que agora todos os personagens estão presos juntos em uma quarentena. Só que agora, o tom trágico e de morte já tomou conta dos becos de Veneza, fazendo com que mesmo que consumado, o romance de Tadzio seria apenas um jardim no parque das elites. Ainda mais depois da epidemia de cólera que assolou a região.


Temos então a épica cena do protagonista no barbeiro. Ele faz o famoso "serviço completo", aparando barba, cabelo e bigode, ainda passando uma maquiagem no rosto, como era costume na época. Só que pelo olhar do próprio diretor e para audiência contemporânea, a cena é cheia de ironia pois é como se ele estivesse se montando, e assumindo sua sexualidade gay, dentro do costume mais ultrapassado dos homens antiquados do início do século XX, que passavam a maquiagem no rosto para se declarar para amada em um serenada a luz da lua, onde a maquiagem ajudaria a reconhecer seu rosto mesmo com a pouca luz. 



Aqui precisarei contar o final do filme, pois a reflexão total do filme só faz sentido comentando o final. Acontece que no momento onde ele parecia que ia se declarar, o homem fica tão estupefato com a beleza de Tadzio (ou provavelmente também foi impactado pela doença) que sucumbe por não conseguir se declarar. A tradição, a moralidade e até mesmo sua visão do que seria a "missão do escritor" e da sabedoria, se declarar em uma sociedade conservadora e hierarquia, era o mesmo que a morte. 


Assim, nos é revelado de quem a é a "morte em Veneza" apenas no final, e é do próprio protagonista, que morre por amor e não por assassinato. É extremamente criativo, original e irônico, uma vez que entrega libertinagem das elites do final do XIX para o início do XX, ao espectro de uma tragédia das elites. 


O filme reflete como o conhecimento, a sabedoria, é profundamente impactado por nossas paixões, onde tentar recalcar essas paixões pode ser destruidor.   


O livro, A Morte em Veneza, aborda o bloqueio criativo de um autor frente a uma paixonite não correspondida, ele comenta do caráter bucólico e romântico de Veneza e suas pequenas canoas, as ruas estreitas, muito antigas e muito românticas, que são na verdade muito sujas são mencionadas pelo autor. Vemos essa retroalimentação na questão do autor Thomas Mann se colocar no lugar e vice e versa do autor. Vemos então a diferença quase surreal das duas partes do livro A Morte em Veneza sobre esse espírito da juventude perdida que o autor busca encontrar na paisagem italiana. Lá ele fica hospedado em Lido.


Já o segundo capítulo que é quase um livro a parte. "TonioKröger" é sobre a infância e os desejos não realizados da vida do autor, com o tema do exílio do artista da realidade. Podemos pensar a obra de Mann como uma intensa alegoria dos sentimentos em relação a arte e a criação artística que obedece padrões mesmo que a maioria das pessoas entendam arte como apenas dom e originalidade, isso dentro do campo do senso comum. A Morte em Veneza, que por sua vez já aborda a vida do autor depois de tragédias e consagrações, altos e baixos.  


Sendo inspirado na experiência pessoal do autor que se hospedou em um hotel em Veneza em 1911 e ficou impressionado com a beleza de um rapaz. Mann também se baseou na vida de Gustav Mahler, em sua aparência física e background. O diretor Luchino Viscondi, ao fazer o filme em 1971, optou por colocar Aschenbach como um compositor de música mesmo e usar diretamente as obras de Mahler na trilha sonora. A novela também chegou a ser adaptada para ópera por Benjamin Briitten em 1973.


Também é mencionado que o lugar que ele viaja que é idílico fora de Munique de onde ele veio originalmente (já que é um turista alemão), seu desprezo pelo lugar é descrito por ele como “gente maltrapilha e simples. Mas mesmo assim essas pessoas capturam sua fascinação e seu olhar.  Ele se aventura por uma pequena ilha no mar adriático, onde tinha uma casa de campo em Trieste. Mas é no Hotel Balneário onde ele conheceu Tadzio e se apaixonou simbolicamente pelo rapaz, o "muso" que seduziu seus pensamentos macabros. Em Veneza, a descrição normalmente romântica do lugar sede a ideia de uma cidade fedida de cheiro e doente em miasmas. 


O autor se apaixona platonicamente pelo jovem, o qual o ator já foi conhecido como o homem “mais bonito do mundo”, Tadzio, é descrito no livro como um garoto na puberdade com cabelos loiros e angelicais, e membro caloroso de uma família grande de mulheres que o criava com muito zelo e amor, onde a caretice da educação feminina tornava todas as meninas meio sem graça, pelo penteado liso e pelas roupas censuradas. Mas não o menino, ele era apenas amor, parecia no livro uma descrição da educação grega livre, onde aos homens que é permitido o comportamento de musa. Na vida real, o ator que fez o filme e que recebeu essa maldição na época, exatamente como descrito no livro, de ser "o garoto mais bonito do mundo", teve uma vida trágica.


Ainda há uma crítica aqui ao estilo psicológico de livros como “Os Miseráveis”, pois o protagonista teria escrito uma obra similar. Olha essa ironia: “Um Miserável”, é o livro pretenso do autor da estória. O velhaco autor representa a velha Europa frente a cultura popular, e o autor representa o imenso ego da condição de existência de um autor, e sua forma de arte é perpassada por aqueles paradigmas antigos de Nietszche sobre arte, música, autor, nação e nacionalismo. 


Aschenback representa além da velha Europa, o engessamento do intelectual de laboratório frente as novidades da cultura popular. Esse estranhamento é visto pela inveja da experiência fora do campo da arte, que é o campo onde as representações são impregnadas da técnica de gênios que que por sua vez, se inspiram em diversos elementos, como na música de Wagner, por exemplo, e o intrínseco nacionalismo romântico escrito por ele em suas peças teatrais. 


Ao final, a vida do protagonista é perdida quando ele tem um treco ao ver seu desejo interno refletido na realidade presente dele. Ele vê o objeto de seu desejo, gostando de um garoto mais velho mas dentro da idade, quando ele vê o objeto desejo, desejando por si uma sexualidade e uma autonomia, ele perde o controle e morre. Sua vida de cenografia e tragédias que lhe renderam fama tinha acabado e sem nenhum legado (já que perdeu sua família antes mesmo de começar a estória do livro).


O que nos leva a uma reflexão mais profunda ainda: se a atração por Tadzio está associado a sua beleza e jovialidade, não seria sua atração por ele também a vontade de reparar o filho e a família perdida? A volta aos anos de jovialidade que não volta... 


Ele chegou a perseguir o menino e sua família para ficar de olho nele, um tanto doentio para quem sabia que não poderia tomar uma atitude. Na verdade, a relação não é amorosa, é uma relação de admiração enquanto objeto do homem velho em relação ao menino que lhe servia de muso de inspiração. 


Há aqui toda uma piada elaborada, Aschenback seria o tipo de cara que “quase chegava lá” em termos de arte, quando a tragédia atacou sua vida, foi coroado com uma “arte madura” por parte de sua crítica. Sua inspiração é fornecida em contexto de viagem, de hedonismo, quando ele vê no garoto Tadzio a juventude livre e colorida, sem nem pensar muito ou se precisar se justificar, Tadzio não era apenas objeto de seu desejo, era como uma pintura que indicava um tipo de ideal grego, clássico, fora do alcance.  O protagonista, um autor de musicais de renome alemão morre na praia diante do objeto de seu desejo fora de seu alcance, pode-se dizer que morreu disso, de desejo…


“Decorreram alguns minutos antes que alguém acudisse ao hóspede que acabara de desmaiar, com o corpo prostrado sobre o braço da cadeira. Levaram-no ao quarto. E no mesmo dia ainda o mundo recebeu com reverência e comoção a notícia de sua morte.” (P.81)


Ou seja, vivenciando sua homossexualidade sem medo e sem ajuda abusiva de alguém externo que o usa como musa inspiradora. Há aqui uma crítica ao caráter artificial e fictício da arte e de sua potência de representação, o jovem belo é apenas uma paisagem, como ele é a fantasia mais afável aos dias finais do autor de renome, ele também significa a risada das crianças que inocentes brincam na rua, o sucesso dos vendedores de rua e a lotação amena e cultural de locais como Veneza, que são bonitos e arquitetônicos, porém velhos e muito sujos. Por isso livro e filme mostram o processo de higienização de lavar as ruas e passar cal. 


Não é um um filme fácil e está longe de ser puramente "divertido". Entretanto é um filme profundo, reflexivo, que faz refletir sobre questões de ética, uma vez que está cercado de humanismo e ironia, para buscar entender a dimensão de um relacionamento fora do padrão e que, ao mesmo tempo, é trágico. Por isso, entra naquela categoria de filmes necessários, pois aborda questões humanas e filosóficas que atingem todos nós. Em contextos histórico, o livro é um bom retrato do clima boemio e decadente do início do século XX na Europa, e que vai levar as duas grandes guerras. Já o filme, sabe com perfeição aprofundar a tragédia, a piada, uma vez que já era a metade do século, e aquilo que podia conter certa beleza nos relatos de Mann, fica empoeirado pela polvora do cinismo de Visconti, que reflete a beleza dessa época, mas como esse "romance" do popular com a "Belle Époque", com a burguesia, estava fadado ao fracasso pelas grandes guerras, nunca maus sendo retomado.  


Em outras palavras, é um filme para poucos. Você pode tanto amar, como odiar, o que não torna o filme ruim. Um dos filmes que mais recomendo no momento, pois está super atual. 



História e produção do filme


Visconti filmou muitas das cenas no Grand Hôtel des Bains localizado no Lido de Veneza, onde Thomas Mann havia passado férias em 1911, o que inspirou o conto. Juntamente com a família, o jovem Visconti integrou no ano seguinte a distinta companhia do hotel, que retrataria fielmente no seu filme quase 60 anos depois. Além do seu charme cosmopolita, também exala a elegância discreta encontrada no Grand Hôtel de Balbec de Marcel Proust. Junto com Death in Venice, Visconti também planejou iniciar uma adaptação cinematográfica de In Search of Lost Time, um projeto que nunca verá a luz do dia. Para Death in Venice, as cenas retrospectivas foram filmadas na Áustria e no norte da Itália.


No início houve dificuldades organizacionais e legais, pois os direitos do filme já haviam sido concedidos. A administradora do patrimônio Erika Mann os havia vendido em 1963 por US $ 18.000 ao ator e diretor José Ferrer e ao produtor de cinema Joseph Besch, que então encomendou um roteiro de HAL Craig (de), no qual Aschenbach era escritor como no conto. A princípio, Ferrer queria dirigir o filme, mas depois desistiu em favor de Franco Zeffirelli.


O papel principal foi recusado por atores conhecidos. Além de John Gielgud e Burt Lancaster, Alec Guinness também desistiu. Para Piers Paul Reads, esta é a “maior oportunidade perdida” da sua vida, já que é um dos raros atores capazes de retratar um escritor de forma convincente. Após longas negociações entre os advogados, um contrato foi assinado emmarço de 1970, pelo qual Ferrer, que inicialmente queria assumir o papel de Aschenbach, vendeu seus direitos a Visconti por 72.000 dólares americanos.


Desde o tiroteio, surgiram conflitos e altercações, principalmente por causa da relação entre Mahler e Aschenbach. O famoso modelo literário, a grande empresa cinematográfica e nomes como Visconti e Bogarde contribuíram para que a adaptação fosse aguardada com curiosidade e discussões antes mesmo de o filme chegar aos cinemas. Este interesse traduziu-se em artigos de imprensa e contribuições para revistas cinematográficas e literárias, que tratavam da transformação do escritor em compositor e da música utilizada. 


O artigo mais influente foi o longo artigo Visconti in Venice do crítico de cinema americano Hollis Alpert, publicado em agosto de 1970 na Saturday Review, um renomado semanário. Alpert viajou a Veneza para discutir com Visconti os trabalhos em andamento. Como o diretor não estava disponível, o crítico recorreu a Dirk Bogarde, que se dispôs a falar sobre o filme e seu papel e a quem considerava uma fonte confiável. Bogarde relatou uma anedota de Visconti que o teria levado a transformar o escritor em um compositor do início do século XX:  Thomas Mann teria conhecido em um trem, na volta de Veneza, um homem de cinquenta e um anos -velho chorando, com cabelos tingidos e maquiagem ruim, visivelmente em grande angústia. Ele teria falado com ele e saberia que se tratava de Gustav Mahlerele mesmo, apaixonado por um menino que personificava beleza, pureza e inocência. Ao final do filme, Bogarde estaria na praia no papel de Aschenbach e observaria o menino que logo deixaria Veneza, infestado de cólera.


O encontro no trem não aconteceu e é pura invenção. Isso não poderia acontecer, até porque o compositor, sofrendo de uma doença cardíaca, foi atormentado por outras preocupações durante os últimos estágios de sua vida em Nova York, Paris e finalmente Viena. Como Alpert descreve, as primeiras tentativas de maquiagem fizeram o ator parecer estranhamente semelhante a Mahler, que parecia muito próximo dos envolvidos, então eles optaram por uma semelhança com Thomas Mann.


O artigo de Alpert gerou inúmeras cartas de leitores da revista. Assim, em outubro do mesmo ano, a viúva de Thomas Mann, Katia, sublinhou que a anedota do encontro no comboio era excêntrica e que “o protagonista e a trama [...] não tinham absolutamente nenhuma relação com Mahler”. A segunda filha de Mahler, Anna, também reagiu e negou "qualquer intenção da parte de Thomas Mann de identificar Aschenbach com Mahler". Ela se referiu a uma carta de Golo Mann que supostamente falava de mentira. Visconti também negou qualquer semelhança física com Mahler.


No entanto, o próprio Thomas Mann sublinhou a relação entre o famoso compositor e a personagem do seu conto. Numa carta de 25 de março de 1921, escreveu ao historiador de arte Wolfgang Born  (de) que a morte de Mahler, da qual soube "na Ilha Brioni  " através da imprensa vienense, foi incorporada ao conceito de novo. 


A "personalidade intensa e devoradora" do músico causou "a impressão mais forte" nele. Os “tremores da sua morte” teriam “misturado com as impressões e ideias” que “deram origem à notícia”. Ele teria dado ao seu “herói da decadência orgiástica não apenas o primeiro nome do grande músico”, mas também “a máscara de Mahler” na descrição exterior. A última imagem da coleção, intitulada Der Tod, mostra a cabeça de Aschenbach e “inconfundivelmente” traz as feições de Mahler. A carta foi publicada como prefácio do livro ilustrado Der Tod in Venedig, que continha nove litografias de Wolfgang Born.


Visconti decidiu prescindir da música composta especialmente para o filme e convocou, além de Gustav Mahler, outros compositores como Modest Mussorgsky, Ludwig van Beethoven e Franz Lehár (The Merry Widow ).


Visconti usa o adagie pós-romântico da Quinta Sinfonia de Mahler muitas vezes para transmitir o humor de Aschenbach. No conto, as poucas alusões à música estão ligadas a momentos em que o subconsciente de Aschenbach se expressa ou em que a racionalidade e a cultura parecem ameaçadas pela loucura ambiente. No filme, por outro lado, é uma parte contínua e integrante da obra.


Tendo outras obras de Mahler tocadas para ele, Visconti ouviu a peça um dia e ficou surpreso com a perfeição com que combinava com os movimentos e imagens, "o corte, todo o ritmo, como se tivesse sido composto especialmente para isso". Da cena de abertura à cena da morte, ela ressoa quatro vezes em longos trechos e uma vez em versão para piano no primeiro flashback, onde Alfried a executa ao piano. O caráter intimista dessa música lenta marca o filme e acompanha os movimentos do protagonista por Veneza. O mesmo vale para a parte central mais dinâmica, marcada por uma inquieta escala cromática wagneriana, que alude ao leitmotiv do olhar em Tristão e Isolda. O adagio fundamenta a busca solitária de Aschenbach por algo novo em uma melancolia insistente e sugere que as esperanças escondidas em seu desejo de beleza são vãs.


O filme teve sua estreia mundial em Londres em 1º de março de 1971, na presença da Rainha Elizabeth II e da Princesa Anne, e arrecadou fundos para a preservação de Veneza. Na Itália foi lançado em5 de março de 1971 em Milão. Na França, sai em23 de maio de 1971 no Festival de Cinema de Cannes de 1971 e lançado nacionalmente em4 de junho de 1971. Morte em Veneza foi lançado na Alemanha Ocidental em4 de junho de 1971; a primeira transmissão de televisão estava no ar14 de março de 1993no canal ZDF. Na Alemanha Oriental, foi exibido pela primeira vez em 1974.



Por meio de certas declarações, Katia Mann e Visconti tentaram evitar potenciais escândalos que, no entanto, eclodiram após o lançamento do filme. Klaus Pringsheim, cunhado de Thomas Mann, enviou uma forte carta de protesto à produtora cinematográfica. Ele falou de um “crime de dupla calúnia” tanto contra Mahler, “cuja imagem venerável é lamentavelmente desonrada”, quanto contra Thomas Mann, cujo “romance” (sic) é estigmatizado como fonte de calúnia para “milhões de espectadores que não t lê-lo. Seria necessário “fazer algo para reparar uma injustiça imperdoável e proteger os nomes de dois gigantes da literatura e da música europeias de novos insultos”. A carta aberta foi assinado por maestros como Otto Klemperer, Fritz Mahler  (de) e Wolfgang Sawallisch, bem como pelo presidente da Internationale Gustav Mahler Gesellschaft  (de) Erwin Ratz e foi publicado em dezembro de 1972 na revista Österreichische Musikzeitschrift  (de) sob o título Protest gegen Mahler-Diffamierung . 


Foi veiculado que o enredo do filme "foi baseado [...] em um episódio da vida de Gustav Mahler", o que contraria os fatos e o conto, que está ligado à experiência pessoal de Mann em Veneza em 1911 e que, de resto, é produto da sua imaginação. Aschenbach certamente apresenta algumas referências autobiográficas, mas é “um personagem inventado”. Tadzio é “a imagem de um belo rapaz” que o autor conheceu na cidade e que hoje vive em Varsóviacomo Barão Wladyslaw Moes. Em homenagem ao compositor, Thomas Mann teria escolhido o primeiro nome Gustav e dado-lhe a aparência de Mahler. Visconti foi acusado de falsificar o relato e a sua base histórica; alusões à morte da menina e uma passagem da Quarta Sinfonia , com a qual Alfried gostaria de apoiar as suas teses, teriam feito acreditar na autenticidade.


Katia Mann confirmou que a descrição detalhada de Tadzio se deveu justamente à sua viagem a Veneza. Em entrevista tardia, ela explicou que o 'menino muito charmoso, bonito como um deus, com cerca de treze anos' com seu 'terno de marinheiro, gola aberta e uma bela malha' chamou a atenção do marido. Ficara fascinado, amara-o “mais do que a razão” e “sempre o observara na praia com os seus camaradas”, embora não o tivesse “seguido por toda a Veneza”.


Em uma resposta de Mann para o filme ele disse: "Nada é inventado, o viajante no cemitério de Munique, o barco escuro para vindo da Ilha de Pola, o velho dândi, o gondoleiro desconfiado, Tadzio e sua família, a partida perdida por causa de bagagem extraviada, cólera, o funcionário da agência de viagens que confessou a verdade, o charlatão perverso, isso eu sei… Era tudo verdade.


A história é essencialmente uma história de morte, a morte vista como uma força de sedução e imortalidade, uma história sobre o desejo de morte. Porém, o problema que me interessou sobretudo foi o da ambiguidade do artista, a tragédia do domínio da sua Arte. A paixão como desordem e degradação foi o verdadeiro tema da minha ficção.


O que eu originalmente queria contar não tinha nada a ver com homossexualidade; foi a história do último amor de Goethe aos setenta anos, por Ulrike von Levetzow, uma jovem de Marienbad: uma história perversa, bela, grotesca e perturbadora que se tornou a Morte em Veneza. A isto juntou-se a experiência desta viagem lírica e pessoal que me fez decidir levar as coisas ao extremo introduzindo o tema do amor proibido. O fato erótico aqui é uma aventura antiburguesa, tanto sensual quanto espiritual. Stefan George disse que em Morte em Veneza tudo o que é elevado é reduzido à decadência e ele está certo.", concluiu Mann.


Depois de um tempo, as coisas se acalmaram, principalmente quando Michael Thomas Mann saiu em defesa de Visconti em outra carta aberta, justificando sua abordagem pela técnica de seu pai. A notícia foi bem transposta para o cinema e a “aposta artística” teve sucesso, porque as “relações latentes com Mahler tornaram-se visíveis e audíveis”. O "Aschenbach na tela" foi, no entanto, "um homem quebrado desde o início [...], um excêntrico neurótico" que morreu "tristemente " e não tinha a altura de queda schopenhaueriana do original .


Comentários

  1. Palavras do próprio Thomas Mann, interrogado por Visconti em 1951 a respeito desse filme - está em francês, mas os interessados poderão traduzir com uma ferramenta do Google:
    "Rien n'est inventé, le voyageur dans le cimetière de Munich, le sombre bateau pour venir de l'Île de Pola, le vieux dandy, le gondolier suspect, Tadzio et sa famille, le départ manqué à cause des bagages égarés, le choléra, l'employé du bureau de voyages qui avoua la vérité, le saltimbanque méchant, que sais-je… Tout était vrai.
    L'histoire est essentiellement une histoire de mort, mort considérée comme une force de séduction et d'immortalité, une histoire sur le désir de la mort. Cependant le problème qui m'intéressait surtout était celui de l'ambiguïté de l'artiste, la tragédie de la maîtrise de son Art. La passion comme désordre et dégradation était le vrai sujet de ma fiction.
    Ce que je voulais raconter à l'origine n'avait rien d'homosexuel ; c'était l'histoire du dernier amour de Goethe à soixante-dix ans, pour Ulrike von Levetzow, une jeune fille de Marienbad : une histoire méchante, belle, grotesque, dérangeante qui est devenue La Mort à Venise. À cela s'est ajoutée l'expérience de ce voyage lyrique et personnel qui m'a décidé à pousser les choses à l'extrême en introduisant le thème de l'amour interdit. Le fait érotique est ici une aventure anti-bourgeoise, à la fois sensuelle et spirituelle.
    Stefan George a dit que dans La Mort à Venise tout ce qu'il y a de plus haut est abaissé à devenir décadent et il a raison."

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    1. Obrigado pela contribuição, acrescentarei ao texto a tradução.

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  2. No início do texto diz : 1951 não é um equívoco,já que o filme é dos anos 70?

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    1. Em nenhum momento do texto foi mencionada a data de 1951. A história se passa em 1911, data da época do livro. O filme é de 1971, refletindo os anos do livro. Obrigado pelo comentário, um abraço!

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  3. Texto longo mais compensado em lê-lo pelo primor, explicitação, beleza... de encher os.olhos.

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    1. Muito obrigado! Segue nossa página para não perder nada

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