O Soldado das Sombras (Le Petit Soldad, 1963): Godard denunciou a tortura como repressão política na Guerra da Argélia e nos regimes autoritários
Durante a Guerra da Argélia, Bruno Forestier vive em Genebra para escapar do alistamento na França. Trabalhando para um grupo terrorista de direita, ele é ordenado a matar Palivoda, que é pró-FLN (Frente de Libertação Nacional da Argélia), para provar que ele não é um agente duplo. Entretanto, ele se pega no meio de recusa e hesitação. Enquanto isso, ele se encontra e se apaixona por Véronica Dreyer, que ajudou a FLN. Bruno planeja partir com ela para o Brasil.
Crítica do filme
A Guerra da Argélia, também conhecida como Revolução Argelina ou Guerra da Independência da Argélia, e às vezes na Argélia como a Guerra de 1 de novembro, foi travada entre a França e a Frente de Libertação Da Argélia (Front de Libération Nationale – FLN) de 1954 a 1962, o que levou a Argélia a conquistar sua independência da França. Uma importante guerra de descolonização, foi um conflito complexo caracterizado pela guerrilha e pelo uso da tortura. O conflito também se tornou uma guerra civil entre as diferentes comunidades políticas da Argélia.
Efetivamente iniciado por membros da Frente de Libertação Nacional (FLN) em 1 de novembro de 1954, durante o Toussaint Rouge ("Dia de Todos os Santos Vermelhos"), o conflito levou a sérias crises políticas na França, levando a queda da Quarta República (1946-58), substituída pela Quinta República.
A brutalidade dos métodos empregados pelas forças francesas não conseguiu conquistar muito apoio popular na Argélia, alienou o apoio na França metropolitana e desacreditou o prestígio francês no exterior. À medida que a guerra se arrastava, o público francês lentamente se voltou contra ela e muitos dos principais aliados da França, incluindo os Estados Unidos, mudaram de apoiar a França para abster-se no debate da ONU sobre a Argélia.
Após grandes manifestações na Argélia e em várias outras cidades em favor da independência (1960) e uma resolução das Nações Unidas que reconhece o direito à independência, o general Charles de Gaulle, o primeiro presidente da Quinta República, decidiu abrir uma série de negociações com a FLN. Estes terminaram com a assinatura dos Acordos Évianos em março de 1962.
A retirada francesa planejada levou a uma crise estatal. Isso incluiu várias tentativas de assassinato de De Gaulle, bem como algumas tentativas de golpes militares.
Após a independência em 1962, 900.000 europeus-argelinos (Pieds-noirs) fugiram para a França em poucos meses com medo da vingança da FLN. O governo francês não estava preparado para receber um número tão grande de refugiados, o que causou tumulto na França.
Depois de fazer Acossado (1960) e obter relativa fama, Godard quis retirar o potencial comercial de sua proposta cinematográfica e focar totalmente na vertente política em O Soldado das Sombras. Porém, em termos técnicos, o filme é um pouco mais simples em sua trama e linguagem que o anterior.
Começamos vendo alguns planos de carros, uma especialidade de Godard, já que naquela época as cenas de carro em sua maioria eram filmadas em estúdio. Godard tinha orgulho de filmar de dentro do carro em movimento e mudando de assento para reforçar certos ângulos.
Godard continua em sua proposta de usar os raccords entre os planos para criar caminhos, direções, para onde o personagem caminha, sinalizando seus caminhos e escolhas na linguagem do filme. Por exemplo, apenas aos 2:20, o protagonista cruza por Veronica (Karina) mas como ele lia o jornal atento, nem a percebeu. Ele só a percebe depois, aos 5min quando um amigo comenta sobre ela e a vemos interagindo com ninguém menos que o diretor, Godard, que está a dando um cachorrinho de brinquedo. Sem explicar, ela o abandona e sobe no carro com Bruno. Godard ainda aprece outra vez ao fundo de Bruno aos 8 min.
É interessante também o fato de Bruno ser fotografo e fanático pelo Brasil. Isso faz com que ele fica fotografando constantemente várias coisas, hora pelo interesso investigativo e horas pelo interesse artístico e beleza do que ele vê. Genialmente, Godard sempre sabe compor essa dinâmica do gosto pessoal e talentos de seus personagens, dentro da linguagem e atuação do filme, fazendo-nos crer por mais rudimentar que seja sua composição que o personagem é aquilo pois vive aquilo e fala daquilo o tempo todo.
Assim, nas cenas com Anna Karina, Bruno a fotografa constantemente apenas marcar seu comportamento de investigação e conspiração exacerbado ou porque é romântico, a acha bela e quer marcar isso? A ideia é explorar justamente essa barreira da indefinição entre o que é dito e o que nunca é dito, apenas ensejado.
Esse é o primeiro filme de Godard a estrelar Anna Karina, que estrelaria vários dos seus filmes posteriores. Nesse papel, ainda que simples e inicial ela está bem, apesar de interpretar alguém bem diferente de si e dando um show de expressividade.
O filme faz uma profunda reflexão sobre a natureza do herói e da narrativa heroica, assim como de arquétipos e ideais de masculinidade. Ao deserdar, Bruno foi para a chamada da aventura. Justamente ao tentar negar seu destino e sua aventura, foi que ele foi para seu centro. Lá ele faz "amigos", na verdade seus contados com a FLN. Aqui há de se fazer uma reflexão sobre Bruno preferir aderir a extrema-direita, algo que no filme só é ensejado claramente quando Bruno coloca a foto de Hitler em uma revista sobre o rosto, forma genial como Godard escolheu nos representar que o personagem apesar de parecer bobo e inocente está relativizando coisas muito pesadas dentro da ideia de se dar bem.
Percebemos a questão da masculinidade algumas vezes no filme. Como a condescendência dos homens, principalmente Bruno, com Veronica; no fato de Bruno demonstrar zero interesse por Verônica no início, focado em sua "missão", se interessando na verdade pela suposta ingenuidade política dela. Por exemplo, quando diz para ela que ele é um agente secreto, o que é engraçado pois aí já não é secreto.
Porém a cena mais simbólica disso é quando Bruno está no trem, lendo seu livro e dois homens aleatórios trocam conversa de maneira afetuosa e rindo exageradamente de situações sem nenhuma graça.
Nessa sequência há uma forte sugestão política, já que Bruno pede fósforos para um homem ao seu lado, que no exato momento está com o jornal aberto na cara do general De Gaule. O homem nem o responde, demonstrando que até o mero ato de de pedir um fósforo é algo político, impedindo assim a pretensa neutralidade de Bruno. Ele mesmo questiona isso ao se perguntar até quando sua natureza será tão simples, sendo ele apenas um homem sem ideal.
Por vez, como na cena do trem, Godard utiliza da técnica de reversão de um mesmo plano, para dar a sensação de movimento e transição, quando na verdade só é o mesmo plano invertido.
Mais uma vez, como em Acossado (já analisado aqui), há o uso do vozes no rádio, colocadas por cima das situações para marcar um clima e uma cena específica. Também a trilha de piano, marcante e sinistra, dando o tom de conspiração das cenas.
Porém, o auge do filme é a crítica a tortura. Em um clima aleatório e rotineiro, Bruno é torturado, em uma obvia crítica do filme aos métodos de certos grupos de guerrilha urbana. Por outro lado, Bruno é um direitista, ligado a um grupo fascista e que não sabe amar. Ele está no contrapasso da História: se todas as pessoas estavam fugindo da Argélia, ele apesar de direitista estava fugindo para lá, algo totalmente sem sentido.
É interessante também uma certa crítica aos plots de filmes de assalto e gangster, que sempre tem o Brasil como destino de fuga para depois de algum crime. Aqui o final trágico é surpreendentemente real e chocante, com a morte de Verônica apenas por conhecer Bruno e em Bruno sendo usado pelos próprios franceses para matar o líder do movimento argelino, em uma cena final realista por ser meio improvisada, no meio da rua com pessoas aleatórias transitando e que se assustam com a feitura da cena.
Talvez um pouco pesado mostrar que são os comunistas stalinistas e maoistas que torturam Bruno, uma óbvia crítica de Godard ao ciclo de esquerda da época. Mas ele é solto e o fato principal do filme, é que a extrema direita mata Verônica, algo que nunca teria acontecido se Bruno não fosse confuso ideologicamente e em torno de seus sentimentos em torno de Verônica. Se ele nunca tivesse se aproximado da direita e pensasse em ficar com ela desde o início, ela não teria morrido e ele não teria sido torturado. Entretanto, sem desertar da França, não teria conhecido ela, demonstrando que para Godard a crítica ao sistema e a escolha pessoal estão tudo bem, o problema era converter a postura de "fuga" em uma visão moralizante de mundo.
No final, diferente de Michel do primeiro filme, Bruno sobrevive e quem morre é Verônica. Aqui Godard corrige o final de Acossado, onde Patrícia, com seu jeito inconstante, levava a morte de Michel, que ela encara de maneira blasé, afinal nem o conhecia.
O final poderia ser interpretado por alguns como um recalque ou crítica de Godard as mulheres, quando na verdade era ao fato de Patricia ser uma academicista, superficial que só estava curtindo uma com Michel. Já Verônica era pixie, com pouca bagagem e conhecimento político, mas era inocente e foi usada por Bruno, que no final mal se abala com a morte e continua sua vida normalmente, sendo ele quem é blasé como Patricia.
Aqui essa mudança mostra que, apesar de bater questões entre masculino e feminino, o Godard foca sempre sua crítica no aspecto político, primeiro em uma americana jornalista sem emoções e um francês criminoso, depois com francês desertor e orgulhoso e uma argelina ingênua.
Godard reflete aqui o valor da História e seu contexto social e político, assim como eles impactam os relacionamentos, principalmente amorosos. Não é só porque não se acredita em certos ideais e organizações, não quer dizer que aquilo não possua valor simbólico. Assim, ele coloca a História como a ciência de vanguarda na frente de todas, pelo menos para dentro da inspiração cinematográfica. Não atoa nos referimos a narrativa de um filme como a "história ou estória do filme". Há ali, nesse quadro, a potencialidade de representação de tudo que de fato está envolvido naquele contexto.
Há uma certa simplicidade genial na elaboração dos temas e gêneros do filme. O filme é mais fácil que Acossado, mais leve e mais simples, apesar de todo a carga de acontecimentos pesados, como a tortura. O segredo acredito está em combinar o gênero de espionagem e intriga política, com o um filme experimental de romance alternativo. Há algo também de filme de gangster, já que Bruno é jogado entre dois lados para fazer seus serviços.
Mas um grande clássico da Nouvelle Vague que considero indispensável, e em aspecto de trama um filme muito interessante, apesar da simplicidade e estilo de seu desenrolar.
História por trás do filme
"Le Petit Soldat" foi o segundo filme de Jean-Luc Godard, feito em 1960, quando "Breathless" estava criando uma sensação e a Nova Onda Francesa fez a capa da Time mas só lançado 3 anos depois oficialmente. Não foi um grande sucesso.
Godard, foi dito, tinha perdido o toque leve de seu primeiro filme e ficou atolado na política. E seus estilos de filmagem e escrita, infelizmente, beiravam a anarquia.
Então "O Pequeno Soldado" foi rejeitado pelos críticos, que estavam ocupados fazendo carrinhos para "Jules and Jim" de Truffaut e "Hiroshima, Mon Amour" de Resnais.
E Godard começou um período de quatro anos em que seus filmes, um após o outro, foram criticados por não cumprirem a promessa de "Acossado". Normal.
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