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American Factory: a crise na industria americana


    
         American Factory, traduzido no Brasil como Indústria Americana, é um dos indicados a ganhar o Oscar 2020 na categoria de melhor documentário



         American Factory, traduzido no Brasil como Indústria Americana, é um dos filmes indicados a ganhar o Oscar 2020. Concorrendo na categoria de melhor documentário, o filme é um dos favoritos a levar a estatueta para casa. E não por menos. Fora a temática atual, que demonstra a situação da classe trabalhadora americana perante a crise das fábricas automobilísticas, há pessoas muito importantes por trás da produção do documentário, que o transformam por si só em um objeto político e com intenções políticas.

         A produtora do filme, Higher Ground Productions, foi criada em 2018 pelo ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama e sua esposa Michelle. O projeto é uma parceria voltada a criar conteúdo audiovisual para a Netflix. Em entrevista, Obama disse que seu tempo na administração pública o permitiu pensar em como melhorar e dar voz a questões que parecem esquecidas ou desconhecidas. Michelle disse na época que"Barack e eu sempre acreditamos no poder da narrativa para nos inspirar, nos fazer pensar de maneira diferente sobre o mundo ao nosso redor e nos ajudar a abrir nossas mentes e corações para os outros. O Netflix é um local natural para os tipos de histórias que queremos compartilhar, e estamos ansiosos para iniciar esta nova e emocionante parceria."

        Sabendo desse background, vamos ao filme. O filme é um documentário que demonstra a realidade cotidiana dos trabalhadores e funcionários de uma fábrica automobilística da General Motors que, devido a crise, está prestes a fechar, deixando vários desempregados. Mas antes de fechar, a fábrica é comprada por uma empresa chinesa chamada Fuyao Group, que investe 500 milhões de dólares para modernizar e garantir os empregos de todos os funcionários que já existiam na fábrica.

      Tudo parece muito bom. De uma situação de desemprego geral, passa-se a contratados por uma empresa proveniente de um dos países que mais cresce no mundo, e ainda por cima um país com sistema comunista. Mas o problema aparece nas diferenças culturais em relação a compreensão do trabalho por parte de chineses e americanos.

      O novo patrão da empresa, Cao Dewang é um empresário chinês de sucesso. Na China ele é membro da Conferência Consultiva do Povo de seu território e um conhecido filantropo chinês, que faz doações para ajudar as pessoas mais pobres do país. Logo vemos que não se trata de uma pessoa má ou conservadora, muito pelo contrário. Mas Cao Dewang durante o filme considera os trabalhadores de sua fábrica de Ohio muito “preguiçosos”, opinião compartilhada pelos funcionários chineses da fábrica. Já os funcionários americanos, acreditam que os chineses e o dono da fábrica não o respeitam, e por isso não se preocupam com coisas como sustentabilidade, poluição ou até mesmo da segurança dos trabalhadores americanos, onde o documentário apresenta inclusive casos de trabalhadores que realizaram seu trabalho durante anos e se feriram nos primeiros de meses trabalhando para os chineses, adquirindo lesões crônicas.

     Outro ponto que divide as opiniões é organização e o imposto sindical. Os chineses são totalmente contra sindicatos, proibindo a existência dos mesmos na fábrica. Já os trabalhadores acreditam que sem o sindicato o dono da fábrica pode demiti-los, como também explorá-los em suas funções com tarefas mais pesadas.

     Grande parte dessas divisões são construções culturais feitas ao longo da História dos dois países. Por exemplo, na China a resistência à dominação e imperialismo da Inglaterra fez com que desde o início do século XX setores nacionalistas e militares estivessem ao lado dos comunistas dentro do ideal de manter a segurança e a hegemonia nacional. Isso fez com que desde o início o ideal da segurança nacional, cidadania, trabalho e desenvolvimento nacional fossem vistas em conjunto como projeto comunitário e nacional. A própria organização distrital na China, vincula a organização local e republicana à organização federal, logo quando os cidadãos trabalham na China, sentem trabalhar em prol da nação, pois há um projeto nacional. Já os americanos, tem a experiência de os donos das fábricas e empresários golpearem os trabalhadores, os explorando e quando o negócio não é mais lucrativos, declaram falência para não ter que pagar os honorários dos trabalhadores. E na China há sindicatos, que são comunistas como o governo, e os direito trabalhistas são amplamente respeitados, mas mesmo assim os empresários chineses são relutantes em confiar nos sindicatos americanos.

       A visão do liberalismo e do mercado nos dois países é difusa, já que, por exemplo, os Estados Unidos participaram de duas guerras mundiais. Já a China não participou das duas guerras. Logo o desenvolvimento capitalístico na China possuí uma visão vinculante com as ideias de pátria e nacionalidade. Já nos Estados Unidos, a noção de desenvolvimento é autoritária, baseada no liberalismo e não na nacionalidade, gerando assim uma diferenciação entre patrões e empregados, onde esses últimos são vistos apenas como engrenagens para desenvolver o sistema, que é austero. Assim na China o desenvolvimento é algo nacional, construído pelo povo e em prol do povo. Nos Estados Unidos, o desenvolvimento é feito pelas elites nacionais, onde de maneira liberal os trabalhadores podem estar totalmente alheios aos planos dos empresários e patrões.
      
      O problema sobre o crescimento da China apresentado pelo documentário não é universal. O Brasil por exemplo faz parte de um outro modelo econômico onde problemas apresentados não fazem sentido, já que nossa economia possui um modelo agroexportador, e nossas relações com a China são mais no sentido de exportar produtos agropecuários do que importar a mão de obra ou indústrias chinesas. Isso explica, por exemplo, porque Bolsonaro consegue manter relações com a China, fazendo inclusive visita oficial ao país, porém se tratando em exportar a tecnologia 5G da China, alinha o Brasil a Trump e os Estados Unidos, tendo uma postura conservadora em relação à absorção da tecnologia, educação e mão de obras chinesas para dentro dos países. No setor de metalurgia dos Estados Unidos entretanto, essa resistência é cada vez menor e é o que podemos observar no filme.

     American Factory é um ótimo filme para entendermos o cenário político americano de base. O “american dream” de uma sociedade sem pobres, na realidade atual se converteu em uma situação de crise, onde ou se tem emprego ou se vive da sorte cotidiana e ajuda de parentes e amigos. As faculdades são privadas e o sistema de saúde, apesar do esforço do “obama care”, também são. Logo se inserir como mão de obra do mercado é uma das poucas opções para os que têm pouca renda. Ao mesmo tempo, para o filme a relação que os patrões chineses das multinacionais desenvolvem com seus empregados, sua rejeição à organização sindical e as demissões, compõe o cenário onde cresce o trumpismo nas classes populares. Sem as condições para se tornarem democratas, sem oportunidades e sem emprego, só resta a essa parcela da população o sistema de relações casuais, que através da relação com uma figura populista como a de Trump, conseguem se reunir em torno da onda. 

    Mais do que criticar os chineses, que na verdade são apresentados com muito respeito no filme, ele quer identificar para tentar resolver os dilemas culturais que está fazendo com que o crescimento dos mercados chineses parem de estimular o trumpismo e o populismo no país, e a única forma de fazer isso é se voltando para entender o povo, as bases. Democracia em Vertigem terá que disputar a estatueta do Oscar com American Factory, e mesmo sendo um filme mais dinâmico por falar de algo que divide todos os brasileiros até hoje, American Factory tem aquela áurea democrata que interessa mais a Academia, por falar de um fator mais próximo para o público americano, ainda mais em um ano eleitoral que pode acabar com a reeleição de Trump.

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