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"Como as Democracias Morrem" e a autocrítica de FHC sobre a reeleição


Um livro em particular tem gerado muito debate dentro do campo da ciência política, o da dupla Steven Levitsky e Daniel Ziblatt: "Como as Democracias Morrem ou o que a História Releva sobre o Futuro"


No último domingo (6), o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso publicou um artigo no Estadão chamado "Reeleição e Crises". Nele, FHC começou com uma breve anedota sobre a vinda do filósofo francês André Malraux, na época ministro da cultura do general De Gaulle. Gaulle, um militar, chegou ao poder da França após a segunda guerra. 

Conservador, Gaulle era a opção mais à direita possível antes do nazismo, mas essa condição autoritária foi aceita pelos franceses pelo fato de o país estar no fim da guerra em uma condição de colaboracionista com o nazismo. Por isso, Gaulle passou anos no poder da França sem alternância de poder pelo medo dos franceses do nazismo, e gerou uma ideologia chamada de "gaulismo", algo similar ao lacerdismo. 

A ironia de FHC em contar o causo é querer mostrar que os autoritários franceses eram admirados pelas iluminadas elites intelectuais uspianas brasileiras. O que tinham em comum? A admiração por Brasília, enquanto símbolo arquitetônico e patrimonial de poder baseado na memória coletiva. Desde sua criação, o Brasil passou por uma ditadura, governos de direita, governos de esquerda, mas todos governaram de Brasília. 

Não deixa de ser curioso ver a elite desenvolvimentista da época, admirando um filósofo defensor de um militar conservador francês. FHC se tornou conhecido justamente por propor em seus livros que a dependência brasileira começava pela inspiração americanizada do que entendia por desenvolvimentismo as elites progressistas então representas pelo PSD. Mas a crítica de FHC esconde certa admiração e "vontade de ser", já que ele disputa ser da social democracia (já que é do PSDB). 

Indo direto ao ponto, o paralelo que FHC quer construir é com os tempos atuais, para dizer que se ele hesitar em criticar Bolsonaro e pedir por sua saída é por ele mesmo ter flertado com o poder e quando o teve quis mais ao aprovar a reeleição. Ele diz:

"Cabe aqui um “mea culpa”. Permiti, e por fim aceitei, o instituto da reeleição. Verdade que, ainda no primeiro mandato, fiz um discurso no Itamaraty anunciando que “as trevas” se aproximavam: pediríamos socorro ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Não é desculpa. Sabia, e continuo pensando assim, que um mandato de quatro anos é pouco para “fazer algo”. Tinha em mente o que acontece nos Estados Unidos. Visto de hoje, entretanto, imaginar que os presidentes não farão o impossível para ganhar a reeleição é ingenuidade."

A questão é que depois se afirmou que a emenda da reeleição foi aprovada apenas graças um suposto esquema de corrupção na câmara. Muitos críticos e analistas afirmam que para aprovar a reeleição, FHC comprou o congresso aproveitando sua posição de presidente, mas isso nunca ficou totalmente provado. Mas para alguns, esse foi supostamente o começo do esquema de compra de emendas parlamentares, que atravessou o "Mensalão" no governo Lula, passando pela compra de votos pelo impeachment de Dilma, até Bolsonaro e sua tentativa de cooptar o centrão no congresso com pautas de austeridade, como reforma administrativa. 

FHC diz que não, que ele não precisou comprar o congresso pois a maioria da população e do Congresso eram a favor da sua reeleição pois "tinham medo do Lula". Mas seu artigo é sobre o erro dos presidentes em governar de olho na reeleição, que é o que Bolsonaro está fazendo agora: eles governam de maneira interessada e eleitoreira. Para ele foi ali que a democracia "morreu um pouco", noção obviamente baseada no livro "Como as Democracias Morrem", que FHC já admitiu ter lido e ter o influenciado.

O livro e o ponto de visto é uma visão altamente divulgada nos campos acadêmicos, até mesmo chegando a figurar nas listas de livro do ex-presidente americano Barack Obama. 

O livro que tem tendências ideológicas claras sociais democratas, faz comparações e estudos, mas desenvolve seu argumento de maneira bem ensaística. A visão é estudar uma espécie de fórmula de ascensão e queda. Analisando fenômenos como a eleição de Trump e Bolsonaro em perspectiva de avanço de uma onda política conservadora e 

O livro que tem um viés nacionalista democrata, algo parecido com o PDT e o PSDB que fazem lembrar do socialismo do Governo de Salvador Allende no Chile dos anos de 1970. Como também fala sobre autoritarismo e democracias e suas crises em uma comparação com fenômenos modernos. Começando com a análise do caso da Venezuela e do Chile, em livre comparação.

 Chegando a dizer, de maneira correta, que a Venezuela era um país que viveu o maior período livre de ditaduras militares em toda a América Latina. Com governos democráticos desde 1958. 

Descrevendo também com razão, que a composição política na Venezuela é marcada por uma estabilidade perdida na década de 1980 com as crises inflacionárias causadas pelo processo de crise no petróleo. Assim surgiu a figura de Hugo Chávez, que tenta tomar o poder com ações populares diretas. 

A composição do livro aborda essa forma de analisar os sistemas de pesos e contrapesos das democracias modernas, assim também como enxergam o autoritarismo como típicos da Europa dos anos de 1930, e da América Latina de 1960-70. 

Esses sistemas de freios e contrapesos correspondem a essa fórmula não dita do rito político. Para funcionar o aparelho democrático, é necessário duas normas básicas, a tolerância mútua, ou o entendimento de que os concorrentes se respeitem como forças legítimas.  O que não seria o caso de Donald Trump, por exemplo.

O sociólogo e ex-presidente Fernando Henrique falou sobre a opção pelo projeto político da reeleição. Um dos critérios da ciência política para analisar uma democracia plena dentro do modelo clássico liberal de Westminster é exatamente a alternância de poder entre grupos antagonistas. Ou seja, o próprio conceito de democracia envolve polarização. 

Para citar um exemplo, o plano econômico do Real foi altamente celebrado pela nossa mídia. Depois de anos de crises, trocas de regimes monetários e inflação galopante, houve assim um consenso nacional de que precisaria 1)seguir mais ou menos um teto de gastos, 2) seguir o tripé macroeconômico de câmbio flutuante (para não inibir a realidade do valor de mercado), controle de índices e metas de inflação através da taxa de juros e por último, a responsabilidade fiscal (em tese tentar não gastar mais do que se tem). 

Isso é interessante, pois a maioria dos estudos na área relativiza a análise do autoritarismo e no carácter de autocracia que alguns regimes tomaram nessa época na América Latina. 

A reflexão sobre a Venezuela é historicamente correta, mas peca ao carregar demais a crítica e não fazer referência ao processo de sanções econômicas e políticas dentro das instituições internacionais que tirou a possibilidade de uma soberania econômica.  

O livro que apesar de conter uma boa opinião sobre América Latina não sabe exatamente como desenvolver um argumento claro sobre as possibilidades reais da democracia, pois admite que existia figuras na história americana que podem ser definidos como populistas ou autoritários como George Wallace ou Joseph McCarthy. Mas a crítica induz a uma forma de poupar o aparato de democracia americano, que basicamente é dualista, bipartidário. 

Termino o livro pensando se nossas instituições entraram em crise, como todo mundo tem crises que são cíclicas, cada país em certo momento.

 Ou penso que essas crises são projeções, sistemas de influência, verdadeiros "sistemas-mundo" da opinião pública que desenvolvem sua projeção de crise em edifícios institucionais sólidos, com por exemplo, interferências diretas ou indiretas. 

É uma visão que tenta comprovar que a vontade popular pode não significar exatamente razão política, o que, é claro, é verdade. Existem eleições fraudulentas e processos maquiados. Mas desse jeito parece que a democracia pode ser uma coisa para poucos. Assim como o PSDB, Partido da Social Democracia Brasileira se apresentava como uma solução de centro-direita, inspirada na confusa linha que divide a social democracia e o socialismo, pois vale lembrar que como Darcy Ribeiro, FHC passou por um período onde morou no Chile por ter sido perseguido pela ditadura militar. Na época eles o taxaram de "comunista" por conta de seus estudos e pesquisas. Mas na verdade, ele foi o grande "monetarista" do pensamento brasileiro, estimulando que essas reformas instrucionais, junto com o apoio da mídia poderiam dar para ele a popularidade para ser eleito, e depois para a conquista da emenda reeleição com apoio da câmara. 

Digamos assim, o PSDB tinha feito o "jogo" político clássico, "traindo" o modelo de democracia plena. Talvez FHC tenha percebido que, que perder ás vezes é bom. A reflexão pode ser motivada pela queda da popularidade do PSDB, que somente ganhou a presidência com a ideia de democracia de FHC. Serra perdeu e Geraldo Alckmin também. 

É mais ou menos, como o livro "Crítica e Crise"  de Reinhart Koselleck enxerga essa questão, para citar um outro lado da ciência política. A crítica não seria uma relação  consecutiva de tese, síntese e antítese, mas sim uma forma de análise onde a crítica geraria a própria crise, a induziria. 

Já Guillermo O'donnell exerce uma força parecida sobre a ciência política. Seus conceitos de Accountability Vertical e Horizontal, como o conceito de Democracia Delegativa envolvem essa forma de análise de critérios de identificação de nações com características ou autoritária como a não transição de poder, ou democráticas, como as noções de fiscalização, responsabilidade, prestação de contas, ou compromisso. 

Para concluir e ser o mais sucinta possível, o objetivo do artigo de FHC é justificar sua responsabilidade pelo bolsonarismo. FHC não é e nunca foi anti-Lula, tanto que pouco se posicionou sobre seu governo quando estava no poder. Mas FHC é e sempre foi anti- Dilma e anti-PT, pois para ele essas forças políticas "casaram" a partir de 2009 com as forças políticas das burguesias nacional-desenvolvimentistas de Juscelino e Jango, que admiravam Malraux e De Gaulle. Vale lembrar que em 2010, Dilma teve coligação com o PRTB do Atual vice, General Mourão, e estimulou a recriação do PSD, partido do Centrão que é aliado e compõe o governo Bolsonaro (nas comunicações!). 

Só que ele sabe que posicionar contra Dilma, como ele fez diversas vezes na grande mídia da época, gerou o bolsonarismo e destruiu o PSDB, e logo agora ele não poderia mais criticar. Mas logo agora, FHC? Ainda há democracia para isso? FHC e seu bad-timing que nunca se sabe se é inocente ou maldoso. 


Você pode ler a transcrição do artigo completo de FHC no Estadão a seguir:


Reeleição e Crises - (05/09/2020)

Recordo-me da visita que André Malraux, na ocasião ministro da Cultura de De Gaulle, fez ao Brasil. Esteve na USP, na Rua Maria Antônia, onde funcionava a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, e expôs no “grande auditório” (que comportava não mais que umas cem pessoas) sua visão de Brasília, obra de Juscelino Kubitschek. Malraux estava extasiado, comparava o plano diretor da cidade não a um pássaro (coisa habitual na época), mas a uma cruz. Com sua verve inigualável, dizia em francês o que não estávamos acostumados a ouvir em português: fazia o elogio da obra.

Esse não era, contudo, o sentimento predominante, pois víamos Brasília mais como desperdício, que induzia à inflação, do que como um “sonho”, um símbolo.

A visão dominante era negativa, principalmente no Rio de Janeiro (que perderia a condição de capital da República), em São Paulo e daqui para o sul. O gasto era grande e os recursos, minguados.

Eu compartilhava esse sentimento negativo, e olha que um de meus bisavôs fizera parte, no Império, da “missão Cruls”, que demarcara o território da futura capital do Brasil... Brasília foi construída onde desde aquela época se previa fazer a capital do País.

Não é que Malraux tinha razão? Não que a obra deixasse de ser custosa ou mesmo impulsionadora da inflação. Mas um país também se constrói com projetos, sonhos e, quem sabe, alguns devaneios...

Juscelino fez muitas coisas, algumas más, mas não é por elas que é lembrado. Brasília, sim, ficou como sua marca.

Não o conheci. Vi-o pessoalmente uma vez, sentado, solitário, num banco no aeroporto de “sua” cidade. Aproximei-me e o saudei; pouca conversa, mas muita admiração. Ele já havia sido “cassado”. Passa o tempo e fica na memória das pessoas sua “obra”, Brasília.

Não estou recomendando que Bolsonaro faça algo semelhante. Não sou ingênuo para pretender que minhas palavras cheguem ao presidente e, se chegarem, sejam ouvidas... Como estive no Planalto, às vezes me ponho no lugar de quem ocupa aquela cadeira espinhosa: é normal a obsessão por fazer algo, para o povo e para o País. Como o presidente será julgado são outros quinhentos. Maquiavel já notava que os chefes de Estado (os grandes homens... na linguagem dele) dependem não só de astúcia, mas da fortuna (da sorte).

O governo atual não teve sorte. São de desanimar os fatores contrários: a pandemia, logo depois de uma crise econômica que vem de antes, com o produto interno bruto (PIB) crescendo pouco (se é que...), e uma “base política” que depende, como sempre, mais do “dá lá toma cá” do que da adesão popular a algo grandioso. Ganhou e levou; mas mais pelo negativo (o não ao PT e aos desatinos financeiros praticados) do que pelo sim a uma agenda positiva.

Agora se tem a sensação (pelo menos, eu tenho) de que o presidente não está bem acomodado na cadeira que ganhou. É difícil mesmo. De economia sabe pouco; fez o devido: transferiu as decisões para um “posto Ipiranga”. Este trombou com a crise, pela qual não é responsável. Não importa, vai pagar o preço: tudo o que era seu sonho, cortar gastos, por exemplo, vira pesadelo, terá de autorizá-los. E pior: como é economista, sabe que a dívida interna cresce depressa, e sem existir mais a alternativa da inflação, que tornava aparentemente possível fazer o que os presidentes querem – atender a todos ou à maioria e ganhar a reeleição. Só resta o falatório vazio. Este cansa e é ineficaz num Congresso que, no geral, também quer gastar e igualmente pensa nas eleições.

Cabe aqui um “mea culpa”. Permiti, e por fim aceitei, o instituto da reeleição. Verdade que, ainda no primeiro mandato, fiz um discurso no Itamaraty anunciando que “as trevas” se aproximavam: pediríamos socorro ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Não é desculpa. Sabia, e continuo pensando assim, que um mandato de quatro anos é pouco para “fazer algo”. Tinha em mente o que acontece nos Estados Unidos. Visto de hoje, entretanto, imaginar que os presidentes não farão o impossível para ganhar a reeleição é ingenuidade.

Eu procurei me conter. Apesar disso, fui acusado de “haver comprado” votos favoráveis à tese da reeleição no Congresso. De pouco vale desmentir e dizer que a maioria da população e do Congresso era favorável à minha reeleição: temiam a vitória... do Lula. Devo reconhecer que historicamente foi um erro: se quatro anos são insuficientes e seis parecem ser muito tempo, em vez de pedir que no quarto ano o eleitorado dê um voto de tipo “plebiscitário”, seria preferível termos um mandato de cinco anos e ponto final.

Caso contrário, volto ao tema, o ministro da Economia, por mais que queira ser racional, terá de fazer a vontade do presidente. Não há o que a faça parar, muito menos um ajuste fiscal, por mais necessário que seja. E tudo o que o presidente fizer será visto pelas mídias, como é natural, como atos preparatórios da reeleição. Sejam ou não.

Acabar com o instituto da reeleição e, quem sabe, propor uma forma mais “distritalizada” de voto são mudanças a serem feitas. Esperemos...

SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBICA




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